PARTE 3: OS HUMANOS

Os três homens estavam armados com espingardas e facas, andavam pela mata, o pouco que ainda existia na região, como se estivessem fazendo um grande serviço para a humanidade. 

Era um pouco de crendice, muito de preconceito, medo do que não conheciam. Lembravam das histórias contadas sobre os monstros indígenas, seus ataques aos "pobres homens brancos”. Então sentiam, realmente, que a importância do que faziam deveria ser reconhecida. Se imaginavam carregando o monstro sanguinário, fosse ele real ou sobrenatural, até a cidade, e mostrando a todos o poder do homem branco sobre as feras da natureza.

Viram quando a indígena que cuidava dos animais passou com seu carro. Ela os irritava um pouco, uma indígena dona de terras, herdeira de fazenda e ainda por cima com formação superior, alguém que tinham de chamar quando seus animais adoeciam. Isso não era correto para eles, acostumados ao preconceito encrustado, acostumados ao genocidio e estupro, não a relação de igualdade com os povos originarios daquela terra. Ainda heranças da colonização que assaltou toda América Latina.

Andaram por algum tempo, já era noite fechada quando ouviram alguns sons nas folhas úmidas que cobriam todo o solo da mata. Se prepararam apontando suas lanternas e armas para todos os lados, porque o som vinha de toda parte em volta deles. Não era acidental, estavam sendo cercados, os sons eram para que se assustassem, fosse quem fosse, estava fazendo um bom trabalho, pois eles suavam frio, gritavam impropérios e engatilhavam suas potentes máquinas de matar.

Naquela noite, porém, toda a potência e poder destrutivo não foram suficientes, apagaram antes de poderem ver quem os atacava, fecharam os olhos pela última vez, e caíram um ao lado do outro inconscientes, morreram sentindo pouca dor, pois essa era a característica do que os agredia, mas não tiveram possibilidade de reação. 

Entraram, Uyara, Hellen e Luiz, no aconchegante restaurante de Cléber. Seu proprietário havia feito gastronomia em uma renomada faculdade, e depois estágio na Europa. Mas resolveu voltar para casa, fazer sua comida simples, extremamente saborosa, e atrair visitantes de muitas cidades, que vinham até ali para comer sua comida e sair dando glórias ao chef incrível que fazia aquelas maravilhas.

-Bem vindas! Sentem aqui meninas, vou adiantar tudo na cozinha e já me sento aqui com vocês. - Olhou Luiz que conversava com um dos fazendeiros da região, e fez uma careta. - Ele parece irritado, o que foi?

-Provavelmente uma piadinha sobre o fato de ele ter ou não lavado as mãos, esses caras são uns escrotos mesmo. - Uyara revirou os olhos. - Até parece que somos nós os famosos pelo pouco asseio.

Hellen riu, não estava acostumada a conviver com indígenas, mas concordava inteiramente com sua anfitriã.

-Vou resolver. - Cléber aumentou o tom de sua voz poderosa de barítono, mas ainda parecia amigável. - Luiz, meu amigo! Venha sentar, vou m****r servir suas bebidas e já me sento para conversarmos. - Foi até o amigo e passou o braço por seus ombros, sorriu para os clientes e o conduziu para a mesa. - Se você quiser eu mando retirar eles daqui. - Falou baixo e piscou um olho para o amigo.

Luiz sabia que Cléber faria algo assim ele mesmo, era alto e bastante forte, sua presença irradiava uma força tranquila, o que o tornava ainda mais assustador quando se irritava. Um dos motivos para, mesmo sendo negro e homossexual, não ter problemas com os moradores da cidade, eles respeitavam o Chef pela sua comida formidavel, e por sua força ameaçadora, ainda que de fato fosse uma pessoa maravilhosa e justa.

-Não precisa, eles não merecem comer sua comida, mas você merece pegar o dinheiro deles. - Riu mais tranquilo, sentou entre Uyara e Hellen e respirou fundo.

-Deixa pra lá Luiz, eles que se danem! - Uyara colocou uma mão sobre a dele e sorriu.

Ele apenas a olhou piscando um olho e segurando sua mão, como se fosse cruzar os dedos com os dela. Ela retirou a mão disfarçando e iniciou a conversa bem humorada.

-Últimos momentos pra falar de trabalho, o Cléber vai voltar e se dissermos algo sobre cães mortos ou autópsias perto dele, ele vai nos tirar daqui!

-Tem razão, e eu quero muito comer essa comida cheirosa que ele está preparando. - Luiz esfregou as mãos sorrindo. - E aí doutora? Descobriu alguma coisa?

-Não muito, a substância encontrada nas feridas ainda parece estranha. Na verdade parecem muitas coisas misturadas, de muitas espécies. É isso que infecta os cães, pelo que entendi, esse “veneno”, que na verdade não se parece com veneno nenhum.

-Muitas coisas?

-Material genético, mas ainda estou analisando, meu equipamento ficou trabalhando por mim essa noite, amanhã cedo eu volto para a clínica e descubro o que realmente é isso.

-É bem estranho, parece essas lendas da região. Estou quase acreditando no tal lobo, ou em alguma entidade. - Luiz riu bebendo um gole generoso de seu suco de laranja.

-Era só o que faltava mesmo! - Uyara riu, algo passou em sua mente, mas logo saiu. Não poderia ser, quer dizer, se não fossem animais até poderia, mas não, não com cães indefesos…

-Em que você está pensando Uyara? - Hellen a olhava curiosa.

-Em nada, acho que só estou cansada mesmo. - Sorriu e quase secou o copo de caipirinha em sua frente, desceu rápido e ela sentiu aquele formigamento gostoso do álcool entrando em seu corpo. Mas como ia dirigir em seguida, resolveu parar de beber e pediu um suco, não deveria nem ter tomado nada.

Conversaram por mais um tempo sobre o que poderia ser responsável pelos ataques, depois Cléber se juntou a eles e mudaram de assunto, Hellen se sentiu acolhida com seus novos amigos. Pareciam muito unidos, e apesar de se conhecerem desde crianças, a tratavam como se pertencesse a seu grupo há tanto tempo quanto qualquer um deles. O jantar foi incrível, Cléber parecia se superar a cada refeição preparada, sua equipe era competente, os garçons educados e sempre atentos aos clientes, não era a toa que todos adoravam seu restaurante, e que vinham de diversas cidades, muitas vezes apenas para uma refeição.

Quando retornavam do jantar Uyara e Hellen ouviram sirenes da polícia e dos bombeiros, e logo depois uma ambulância. Não era normal ouvir sirene alguma na cidade. Uyara diminuiu a velocidade e ouviu atentamente os sons, parecendo realmente preocupada.

-O que foi?

-Nada, só que não costumamos ouvir tantas sirenes juntas na cidade. Deve ter sido alguma coisa grave. – Riu da expressão de Hellen. – Eu sei que para vocês da cidade isso deve parecer provinciano, mas todos se conhecem aqui, e quando alguém morre pode ser seu vizinho ou o pai ou mãe de um amigo. 

Cléber ligou para ela perguntando onde estavam, ele ia fechar o restaurante quando viu os carros de socorro passarem rápidos e ficou preocupado. Quando todos chegaram em casa foram tomar um café e conversar.

-Será que foi outro fazendeiro metido a machão? – Cléber revirou os olhos.

-Se for eu espero que a delegada dê um jeito nele e que ele jamais veja o sol novamente. – Manuela levantou as sobrancelhas, brava.

-Violência doméstica?

-Sim, infelizmente é bem comum por essas bandas. Menos agora que a doutora Maria assumiu a delegacia, mas ainda assim são muitos.

-Pois é Hellen, os homens daqui tem uma masculinidade bem frágil. Se é que você me entende. – Cléber levantou e atirou um beijo para cada uma. – Espero que durmam bem, tenho que acordar cedo amanhã para ir na feira, qualquer coisa, gritem histericamente e talvez eu acorde. Ah Manu meu bem, você está fedendo a estrebaria, deveria tentar chegar no quarto do Fabrício para variar. - Falou retirando um feno debaixo dos cabelos dela com a ponta dos dedos.

-E porque eu faria isso? Quando entrar lá ele vai achar que somos namorados e não queremos isso não é mesmo? Boa noite linguarudo!

Hellen sorriu e se despediu também. Uyara ficou mais um tempo, fechou a casa e acendeu um baseado na área dos fundos, alimentou os cachorros e os prendeu em casa, tinha cinco cães e não queria que eles fossem as próximas vítimas de seja lá o que estivesse na cidade. Os gatos estavam dentro de casa já, se davam bem com os cães, e cederam espaços nos sofás da sala para eles. Quando estava quase terminando de fumar, seu telefone tocou, não atendeu, tocou novamente, riu olhando a foto de Luiz. Ele enviou uma mensagem pedindo que atendesse. – O que você quer a essa hora?

-Preciso que você venha até aqui agora! 

-Aqui onde? Você está em casa?

-Não, venha até o necrotério, foram pessoas agora Manu, a delegada está aqui e quer falar com você sobre isso. E traga a Hellen também.

-Certo, eu já chego aí. – Desligou e apagou o baseado, foi até o quarto de Hellen. – Garota! Precisamos voltar pro trabalho, a delegada quer nos ver.

Hellen acabava de sair do banho, respirou fundo e começou a se vestir desanimada e pensativa, mas por que uma delegada ia investigar a morte de cachorros? Só se não fossem cachorros, parou antes de terminar o pensamento. É claro que não poderia ser, apenas não poderia ser. Sentiu uma fisgada na perna, e passou a mão sobre as marcas antigas, mas ainda bem visíveis, em sua coxa. Não que realmente estivesse doendo depois de tanto tempo, mas era aquela dor fantasma, que a fazia lembrar de quando era muito jovem, quando foi marcada por algo que jamais descobriu o que era, quando foi salva por ser quem era. Saiu para a área e Manuela entregou a chave da grande caminhonete, Hellen a encarou de lado.

-Foi mal doutora, eu pensei que ia apenas tomar banho e dormir, fumei um e agora não estou em condições de dirigir.

-Manú eu jamais dirigi um carro tão grande, isso parece um caminhão!

-Não seja exagerada, não há nada que uma mulher não possa fazer, eu te ajudo se tiver dúvidas quanto ao trajeto. - Piscou um olho e entrou no banco do carona.

-Por que a delegada nos chamou? E por que ela investigaria a morte de cães? - Hellen já sabia, lá no fundo, qual seria a resposta de Manu.

-Tudo o que Luiz me disse é que foram pessoas agora. Sei tanto quanto você na verdade, não quis perguntar, mas quero muito ter ouvido errado, quero muito estar chapada e chegar lá para descobrir que o Luiz quer só conversar, ou que sequer me ligou.

Hellen não falou mais nada, se concentrou na imensa máquina que dirigia, tentando não pensar em muita coisa de seu passado, ou compará-lo com o que estava ocorrendo ali.

Parecia que a cidade inteira estava na porta do necrotério, os únicos dois carros de polícia trancavam a passagem quando as mulheres chegaram. Contornaram a multidão e entraram escoltadas por dois policiais que cumprimentaram Manuela e acenaram simpáticos para Hellen.

-Maria, tudo bem? – Manuela apertou a mão da mulher alta e forte, com cabelos muito compridos pretos, presos em um rabo de cavalo alto e olhos grandes bem maquiados. – Essa é a doutora Hellen, Hellen essa é a doutora Maria, a delegada da cidade.

-Muito prazer doutora, pode me chamar apenas de Maria.

-O prazer é meu, apenas Hellen por favor. – Sorriu e apertou também a mão de Maria, um aperto forte e quente de uma mão enxuta e macia.

-O que aconteceu Maria? O Luiz me disse que eram pessoas.

-Sim, as vítimas agora não são mais cachorros. – Fez sinal para que elas entrassem novamente no necrotério. – Houve uma caçada hoje no final do dia, queriam encontrar o tal “monstro” que estava matando os cachorros. Me parece que encontraram, só que não souberam lidar com ele, ou eles. 

-Três vítimas novamente Manu. – Luiz as chamou com a mão. – Só que desta vez não estavam vivas, até porque não sobrou muito sangue.

-Que merda! Vamos fazer os exames e ver se possuem o mesmo veneno. Alguma marca?

-Aqui, como um vampiro com quatro dentes. – Luiz deu de ombros, não fora uma boa piada. – Marcas nas pernas na altura da veia femoral, lesões nessa região são fatais. Os três foram feridos no mesmo local, como as marcas eram iguais às dos cães, achamos melhor chamar vocês.

-Uyara, você tem alguma ideia do que é isso? Que animal deixa essas marcas afinal? As pessoas estão comentando que você disse serem animais que sofreram alguma mutação. 

-Maria, eu não sei realmente. Trabalhei com algumas hipóteses, podem ser morcegos, mas eu não falei sério a respeito das mutações, foi apenas pra assustar os fazendeiros, afinal, não estamos falando de um desenho animado. Na vida real essas coisas não acontecem. Penso que talvez, mas muito talvez, possa ser uma espécie conhecida ou desconhecida, que mudou os hábitos alimentares por conta da degradação do meio ambiente, e agora está perto das cidades, atacou os cães porque ficavam em seu caminho, e os humanos porque os ameaçavam.

-Você não tem certeza disso, tem? - Maria sentiu uma ponta de esperanças, mesmo que isso fosse apenas uma hipótese, perguntou com a ilusão de ouvir um “sim” de Manuela.

-Não! Isso são hipóteses nada científicas, nenhuma prova que possa sustentar elas apareceu ainda Maria.

-Eu preciso dizer alguma coisa para a população, você viu como está ali fora?

-Eu sei. – Coçou a cabeça e suspirou. – Vamos estudar e ver se achamos alguma coisa. Mas não acho que vai ser fácil de explicar. Ao menos já sabemos que, seja lá o que for, não anda sozinho, esse ataque deve ter sido ao mesmo tempo, e bem rápido.

-Nossa que animador!

Uyara riu e encarou a delegada. Sua barriga roncou e ela se afastou indo procurar uma coisa para comer na cozinha, estava chapada afinal de contas.

-Manu, quê que você tem? Vai comer agora?

-Tenho larica Luiz, me deixa. – Parou com um resto de hambúrguer a centímetros da boca e encarou a delegada. – Maneira de falar é claro.

-É sério Manuela! Você estava fumando maconha? – Maria a encarou sacudindo a cabeça.

-Eu não nego nem confirmo Maria. - Falou com a boca cheia, como a delegada continuava com aquele olhar de reprovação, ela continuou. - Ah qual é! Eu estava fora do meu horário de serviço e em minha casa!

-Ah sim, segundo a legislação de nosso país, neste caso você pode... ah eu acho que não.

-Você vai me prender?

-Não, eu preciso de você. E também concordo com a legalização, apesar de que jamais você vai me ouvir repetir isso novamente.

-Por mim tudo bem, eu esqueço e você esquece. – Piscou para ela e engoliu inteiro o pedaço de hambúrguer, não fez nem cócegas. – Posso pedir para um dos seus garotos pegar uma coisa pra comer na conveniência? Pra conseguir enfrentar a noite de trabalho.

-Não será necessário, gatas e gato! - O pai de Manuela entrou com uma cesta de comida cheirosa, sanduíches e doces mais um café gourmet que somente ele sabia fazer. – Muito prazer moça bonita, sou Anthony, o pai da Manu. – Esticou uma mão cheia de anéis com as unhas pretas, usava a cabeça raspada, uma camiseta dos Ramones e calças pretas, tatuado em todos os lugares onde havia pele visível, exceto no rosto, e com um forte sotaque, não era brasileiro com certeza.

-O prazer é meu. - Apertou a mão dele e quando se virou, falou baixo para Manuela. - Você não disse que seu pai havia morrido? – Ele parecia familiar.

-Não, eu disse que minha mãe ficou viúva, do marido dela. Com quem ela casou depois de me ter. Meu pai foi só um roqueiro que passou pela cidade na fase certa da lua. Né pai?

-Não comento este tipo de coisas. – Distribuiu sanduíches e serviu cafés, depois deu um beijo na filha e a chamou na sala de espera do necrotério. – Que merda é essa Manu?

-Não sei ainda, pai, mas acho que as coisas estão ficando complicadas, apenas se cuide e feche tudo em casa. Tá bem?

-Você não sabe mesmo quem é responsável por isso? - Ele a encarou parecendo bravo.

-É claro que não sei pai, não tem nada a ver.

-Isso é a cara dela, você sabe que é.

-Pai, isso é uma bobagem, ela jamais faria uma coisa como essa, ferir animais. E a forma dos ferimentos também, impossível que tenha sido ela, não é assim que age. O que você tem é um pouco do preconceito europeu, seu velho roqueiro inglês. – Riu e deu mais um beijo nele entrando novamente.

Anthony fechou os olhos sacudindo a cabeça preocupado, não era preconceito, ele costumava repetir a si mesmo. A verdade era que não a tinha como uma entidade inferior, mas sim superior, e cruel, que o impediu de casar com a mulher que sempre amou, mãe de sua filha e a mais linda e encantadora que já conheceu. Ele não costumava entregar guloseimas à toa, queria informações. Sabia que se fosse algo sobre Ela, a filha estaria envolvida, se preocupava, sempre quis tirá-la da cidade, mas a mãe não deixou, a avó quase o envenenou com chás de ervas misteriosas. Ele resolveu, há muito tempo, que se não poderia tirar a filha de lá, ficaria por perto para uma eventualidade, diminuiu a frequência de shows na mesma época em que Manu assumiu, estava semi aposentado, e sempre com seu jatinho pronto para uma fuga rápida, sempre pronto para salvar a filha do que quer que pudesse a prejudicar. Pois tinha uma certeza apenas, cedo ou tarde as funções de Manuela a colocariam em problemas graves.

-Seu pai é famoso! – Hellen encarou Manuela com os olhos arregalados, lembrara de onde o conhecia.  – Mas o que ele faz aqui no meio do nada?

-Segundo ele, essa é a melhor cidade para se aposentar, levar uma vida tranquila longe das drogas e das mulheres. Mas acho que ele ainda dá umas escapadas às vezes. E tem sempre a quase última turnê de despedida.

-Eu era louca por ele quando era mais nova, ele foi meu primeiro amor roqueiro. Punk rocker na verdade. - Hellen riu se lembrando dos cabelos coloridos e das roupas pretas de couro que usava.

-Não diga isso a não ser que queira sair com ele, aquele coroa não vai esquecer e vai adorar.

-Não a mim Manuela. – Hellen a encarou sacudindo a cabeça.

-Amada! A você sim, acredite! – Terminou de comer e foi até os corpos. Luiz ligou uma música alta e parecia absorto em seu trabalho. – Alguma coisa?

-Não muito, vou coletar material das lesões, pode ser um tipo de cânulas, que são usadas para sugar o sangue. Porque depois de hoje, acredito que não seja um animal, mas trabalho humano.

-Também penso assim Luiz, - Maria se aproximou deles. – Estava tudo muito limpo na cena, toda essa perda de sangue faz alguma sujeira, provavelmente essa substância que não sabemos o que é deve anestesiar as vítimas, e depois algum tipo de instrumento é introduzido e faz a sucção. Eu realmente espero que não seja um assassino em série, essa cidade não está preparada para isso. 

-Eu sei que todas essas evidências são bem válidas, mas vocês sabem que encontramos saliva nas feridas dos cães, o que descarta o tal instrumento mecânico. – Hellen sorriu amarelo, não queria pensar no que estava fazendo aquilo.

-Também lembrei disso Hellen, por isso pensei que fosse algum animal, apenas não consegui identificar qual animal com o equipamento que tinha aqui e a quantidade de material genético nas feridas.

Hellen parecia mais nervosa do que nunca, se desculpou e foi até os fundos da sala abrindo a porta e pegando outro cigarro de Luiz. Fumou em silêncio e com pressa, não queria mesmo falar de seu passado, mas era tudo muito parecido.

Manuela pegou uma bolsa de academia em seu carro e foi até o banheiro de Luiz, tomou um banho, vestiu uma roupa limpa e depois serviu mais café para todos. Passaram a noite fazendo testes, Hellen voltou para a clínica e testou todo o material que encontrara nas vítimas humanas. A delegada se despediu e voltou para sua equipe, ainda tinha que acordar os filhos, dar café da manhã e m****r eles para a escola.

As 6:30 da manhã a multidão já não era a mesma, todos voltando para seus afazeres diários, a vida não poderia parar. Fabrício chegou depois das últimas pessoas saírem, quase sete horas da manhã, estava preocupado, ligou para Manuela diversas vezes e ela não atendia. 

-Manu! O que foi que aconteceu? Porque você não atende seu telefone? – Se aproximou dela e ela o encarou tentando pará-lo com os olhos.

-O que aconteceu? – Se desvencilhou do abraço e parou atrás de uma mesa onde o último cadáver descansava com o peito sendo costurado novamente por Luiz. 

-Eu é que pergunto! Você não me atendeu, não estava em casa e o Cléber sequer sabia o que estava acontecendo, eu o acordei e ele ficou meio bravo comigo, disse que se você não estava em casa deveria ter dormido fora!

-Eu não dormi na verdade, fiquei aqui ajudando o Luiz. Mas por que isso?

-Porque me preocupei com você! E queria saber o que estava acontecendo, a cidade não fala em outra coisa. 

Luiz levantou a cabeça e os encarou contrariado. Estavam discutindo enquanto ele costurava um homem!

-Vocês podem por favor sair de cima do pobre defunto e me deixarem terminar meu trabalho? Estão saltando perdigotos sobre o corpo e talvez eu os acuse de assassinato se encontrar DNA de vocês aqui! – Soltou um palavrão jogando a pinça que segurava com violência sobre a mesa, e se afastou bravo. Não era apenas a interrupção e desrespeito é claro, ver Uyara discutindo com o namorado, ou seja lá o que Fabricio era, não o agradava. Saber sobre eles já era suficiente para acabar com seu humor.

-Me desculpe Luiz, nós vamos para a clínica. Eu vou pegar a Hellen pra tomar café então não posso demorar. - O encarou muito brava, e saiu do necrotério sem olhar para trás, sabia que ele estava atrás dela de qualquer forma.

-Eu sei, mas o que eu vou dizer!? Porque ninguém acreditaria em mim! – Hellen ouviu passos e fechou os olhos, tomara que não tenham ouvido. – Certo, eu te ligo depois.

-Tudo certo por aqui? – Manuela não entendeu a agitação de Hellen.

-Claro! Eu estava te esperando para ir tomar café, mas se você estiver ocupada posso ir sozinha sem problemas. – Encarou Fabricio e o cumprimentou com um aceno.

-Não, não, eu já vou me liberar, me dá cinco minutos, pode ser? - Apontou para o homem bonito ao seu lado. - Esse é Fabrício, um amigo e cliente da clínica. Fabricio, essa é a doutora Hellen.

-Muito prazer doutora, bem-vinda a cidade. Infelizmente nessas circunstâncias, mas espero que aproveite os ares do campo. – Esticou a mão e sorriu charmoso.

-Prazer em conhecê-lo. - Hellen o olhou impressionada, pensou mesmo que era uma espécie de caipira quando ouviu Cléber e Uyara falarem dele, mas parecia um perfeito cavalheiro, lindo, educado. Bem, pensou sorrindo, não era Luiz, talvez esse fosse o motivo para a veterinária não querer nada sério com ele.

-Vamos para minha sala. – Fez sinal para ele e sorriu sem jeito para a doutora. – E aí? Qual o motivo dessa histeria?

-Não é histeria Manu! A cidade está um caos, tem bandos armados passando de carro pelas estradas e eu soube das mortes. Daí ligo para você e você não atende, vou até sua casa e o Cléber não sabe de você, sua mãe está viajando e seu pai para variar não atende o telefone quando sou eu porque ele me acha um “cowboy provinciano”! 

-Você costuma ligar para meus pais? Por que?

-Porque eu sei lá! Eu conheço eles a minha vida inteira e...

-Caralho Fabricio! Eu já disse que isso não é um relacionamento, você não tem que saber o que aconteceu comigo porque não tem que se preocupar comigo, nada em minha vida é da sua conta! 

-Você poderia ser menos vaca comigo, sabia? – Ele sorriu com desdém. – Mas eu não sou o doutor dos mortos, então não mereço um mínimo de respeito e consideração não é mesmo? Eu sou só o fazendeiro com quem você descarrega seu stress em cima de montes de feno. Sou o cliente com benefícios, talvez nem seja o único.

-É, talvez você não seja. Mas nada disso é da sua conta, porque sabe, não te devo satisfações da minha vida. E também não quero saber da sua. Agora vai embora daqui porque eu não dormi ontem à noite, e não comi hoje pela manhã. Você não imagina o que pode acontecer nessas situações. – Não esperou que ele saísse, bateu a porta e o deixou sozinho, fazendo sinal para que Hellen a seguisse. – Vamos até a padaria da Juci, ela é ótima e faz um café quase tão bom quanto o do meu pai. – Entrou no carro e arrancou com pressa. – Me desculpe por isso Hellen, você não precisava ouvir aquelas bobagens de manhã cedo.

-Não tem problema, mas posso perguntar, por que tratar ele assim? Pareceu meio dura, sabe, sua reação.

-Porque ele é um machão que acha que deve proteger as pobres fêmeas com quem dorme. Ele não tem que invadir minha clínica, ou pior, o necrotério fazendo perguntas sobre o que eu fiz ou deixei de fazer. Ele não pode!

-E também não pode aparecer e parecer seu namorado na frente do Luiz, certo? - Sorriu como quem tem um segredo.

-Não, na frente de ninguém na verdade. O Luiz não é diferente de ninguém em minha vida. 

-Ok! – Hellen concordou colocando os óculos escuros, não era da sua conta, e não queria discutir com ela por uma coisa dessas.

Uyara deu de ombros e resolveu mudar de assunto.

-Você recebeu notícias ruins? Me desculpe a intromissão, mas você pareceu agitada. 

-Não, meu namorado estava me enchendo para que descansasse, que eu deveria dormir à noite e deixar o trabalho para o dia. Que uma boa noite de sono é melhor para a imunidade etc., etc.... – Não era totalmente mentira, antes da última ligação ela realmente havia ligado para o namorado e discutido com ele.

-Ele se preocupa com você, e está certo na verdade, a falta de sono prejudica a saúde. Você tem problemas na sua imunidade?

-Não exatamente, sofri um acidente quando era mais jovem e isso prejudicou minha produção imunológica, mas não é nada demais. E ele só está falando isso porque tem medo que eu não possa fazer minha cirurgia em um futuro próximo.

Uyara segurou a mão dela e sorriu, mas não disse nada. Não imaginava que tipo de acidente prejudicaria a imunidade de alguém, mas não quis perguntar mais nada. 

Chegaram na padaria, um café aconchegante e com cheirinho de pão na chapa. Manuela cumprimentou Juci e pediu pães de queijo e café com leite. Hellen pediu um pão na chapa e café preto, não sentia muita fome pela manhã.

-O que você acha que é? – Manuela tomava o café e enchia a boca enquanto falava.

-Sinceramente? Deveríamos pesquisar casos em outras cidades, sempre existe uma história pregressa. 

-Mas você acha que é obra humana?

-O material genético não confirmou isso, me parece algum híbrido de várias espécies, inclusive humana, mas temos aí canídeos, felinos, veados e diversas outras. 

-O que isso quer dizer? Que misturaram deliberadamente saliva de todas essas espécies para nos confundir? É um trabalho bem profissional. Que merda!

-Eu não sei, mas deve ter histórico, sempre tem.

Maria entrou com os dois filhos pela mão, os sentou em uma mesa, fez o pedido e se aproximou delas.

-Eu vou liberar os pestinhas e já conversamos, vocês podem me esperar?

-Claro! Esperamos e bebemos café, a manhã perfeita! – Manuela sorriu e acenou para as crianças, dois meninos, gêmeos de cerca de 7 anos. A vida da doutora Maria não era nada fácil, cuidar dos filhos sozinha e tocar a delegacia era uma maratona diária.

-Pronto! Eles terminam e vão para a escola com as meninas da Juci. – Respirou fundo e fez sinal para que trouxessem o de sempre, café forte e puro com ovos mexidos e torradas. – Novidades?

-Encontrei saliva de diversas espécies nos corpos, enviei um relatório para seu e-mail. Mas adianto que nada foi muito conclusivo. 

-Uyara? – Encarou a veterinária pegando a xícara de café e tomando um gole generoso.

-A Hellen disse que deveríamos pesquisar algumas notícias em cidades próximas, sabe ver se há um padrão. – Deu de ombros. – É um começo.

-Sim, na realidade já pedi para meu pessoal fazer isso, e acreditem ou não, eles encontraram algumas coisas bem bizarras, mas bem antigas também, o que sempre significa generalizações e crendices, ou seja, pouca informação de verdade.

-Como assim? Essa coisa de lobisomem e demônios que o povo fala? – Manuela riu, era só o que faltava.

-Não exatamente, aconteceu há alguns anos em uma cidade próxima, parece que atribuíram tudo a um culto, mas não prenderam ninguém. Alguns cães e cerca de seis homens, sem boa parte do sangue dos corpos, mas não eram três por vez, apenas um. Tem mais um caso relativamente perto, foram mais vítimas conforme o delegado de lá.

-E substâncias encontradas nos corpos?

-Não fizeram exames, os cães morriam lentamente, os humanos eram encontrados já sem vida, mas depois de desaparecer por alguns dias. – Passou a mão na testa, preocupada. – Foram ataques semanais, se começarem a matar três pessoas por semana não sei o que vai ser dessa cidade. De qualquer forma, pretendo ir até algumas dessas cidades eu mesma, conversar com os delegados e policiais, talvez tenham alguma informação que possa elucidar ao menos um pouco esse mistério.

-Bem, se for humano, tenho certeza de que você vai encontrar Maria. - Manuela piscou um olho para ela.

-É, eu também queria ter essa certeza, mas por enquanto tenho apenas esperanças. - Sorriu sobre a xícara. - Soube que o Fabricio estava pela cidade procurando você, chegou a falar com um dos policiais, ele quem disse onde você esteve a noite toda.  - Manuela fez uma careta e ela continuou. - Vocês já assumiram esse namoro?

-Não, porque não há namoro, somos amigos, com benefícios. Ponto final. - Levantou secando a xícara e esticou os braços bocejando. - Você precisa de algo mais, ou estamos liberadas para nosso sono da beleza?

-Se não for pedir muito, precisava de relatórios completos, por email, dos resultados das pesquisas, e de suas impressões dos cães e dos humanos. - Maria sorriu amarelo.

-Mas é claro! Fazemos isso sim, aproveitamos para almoçar e ir para casa à tarde, tudo bem por você Hellen?

-Sim, na verdade ainda tenho uns testes para terminar, mandamos tudo para você Maria, até meio dia.

-Eu agradeço, mesmo meninas. - Maria sorriu e levantou. - Agora preciso correr para a delegacia, e tentar organizar o caos dessa cidade.

As três saíram para voltar ao trabalho, quando entrava no carro, Uyara parou para falar com Luiz, que se aproximava indo tomar café. Ele sorriu para Hellen e olhou Uyara sério, moveu os lábios para dentro, e entrou sem dizer nada. Ela apenas deu de ombros e suspirou dirigindo de volta para a clínica.

O dia transcorreu sem maiores imprevistos, almoçaram com Cléber e foram para casa dormir um pouco, não havia mais o que fazer e precisavam descansar. Depois de dormirem algumas horas, levantaram e foram tomar café na varanda espaçosa, ver o pôr do sol.

-É muito bonito aqui, e grande! Não tem plantações ou criação? – Hellen tomava café e fumava tranquilamente.

-Eu sei, é meu paraíso. - Sorriu olhando em volta. - Não somos fazendeiros, essa casa pertencia a minha avó materna, minha mãe passou para mim quando ela morreu. Eu deveria cuidar da construção, fazer as manutenções sabe como é, e não deixar que destruíssem a mata original que cerca tudo. Óbvio que não faria isso, é um dos poucos lugares daqui sem pesticidas e pum de vacas.

-E ainda não fizeram nenhuma oferta? Os fazendeiros devem ficar loucos por essa terra.

-Ah sim, já fizeram muitas propostas, mas eu nunca vou vender. – Ouviu passos e latidos ao longe, levantou e soltou um palavrão. – Você precisa entrar, esses desgraçados foram longe demais. – Entrou junto com Hellen e abriu um armário quase invisível na cozinha, retirou uma calibre 12, carregou e correu para a entrada da mata, deu um tiro e gritou para aparecerem.

Em poucos segundos viu cães de caça e as luzes das lanternas. Se aproximando, cerca de dez homens apareceram com as mãos para cima. Manuela abaixou para acariciar os cães e levantou apontando a arma para o peito de Fabrício.

-Que merda vocês acham que estão fazendo na minha propriedade!? 

-Calma Manu, estamos apenas caçando essa coisa que está atacando as pessoas! – Fabricio fez sinal para que os outros baixassem as armas e se aproximou. – Vai atirar em mim?

-Talvez, você invadiu e segundo as leis que vocês tanto amam, se eu fizer não serei presa. – Baixou a arma e respirou fundo. – Vocês não podem caçar em minhas terras! Sabem disso e não vou admitir que desobedeçam!

-Manu, isso é para o bem de todos, inclusive o seu! Por favor, precisamos procurar e deter essa coisa!

-São seus funcionários?

-Sim.

-Então dispense eles e vamos conversar, eles que saiam pela frente e não pisem na minha floresta novamente, porque da próxima eu atiro para derrubar! – Virou as costas e sentou com a arma no colo.

-Você parece um daqueles fazendeiros de filmes. – Hellen riu e sentou ao lado dela, já fazia muito tempo que não vivia no interior, era uma garota da cidade agora, não estava mais acostumada com isso.

-Me desculpe por isso, mas se eu não ameaçar eles não vão parar, conheço esse pessoal.

-Posso me sentar ou você vai continuar com essa coisa no colo? – Fabricio se aproximava depois de dispensar seus homens, cumprimentou Hellen com um aceno amigável e encarou Uyara.

-Senta aí vai, - largou a arma ao seu lado e entrou para pegar uma bebida, trouxe cerveja para todos e sentou novamente.

-Porque você não nos deixou procurar? Já pensou se essa coisa estiver aqui? Eu dei ordens para que não atirassem em nenhum animal normal que vive aqui, apenas se fossem ameaçados.

-Você sabia que tem onças nessa floresta? E sabia que quando um otário provinciano armado aparece esses animais sempre atacam, porque sabem que vem merda! Você não tem esse direito!

-Eu queria proteger você! Mas que merda! – Bateu a garrafa sobre uma mesa lateral e levantou bravo. – Você sumiu ontem à noite Manu! Não me importo que você não queira me dar satisfações de nada! Mas preciso me certificar, de alguma forma, que você não corre riscos! – Fez uma pausa e encarou Hellen, que neste momento não sabia bem o que fazer, queria sair dali, mas ao mesmo tempo não sabia como fazer isso, e tinha a história de onças a metros de onde estavam. - Me desculpem por isso, doutora, eu não sou sempre esse machão esquentado, apenas quando ela me afasta e se coloca em risco.

-Eu vou entrar e comer alguma coisa, sabe, me manter afastada de onças. Se precisar, me chame Uyara. – Hellen entrou sorrindo sem jeito.

Manuela ficou quieta, muito, muito brava. Mas também não queria m****r ele a merda nesse momento, ele não estava fazendo “por mal”, se bem que, bem também não fazia.

-Você não vai falar nada? - Ele riu, foi mais um soluço.

-Se você realmente quer saber, isso, seja lá o que for, não ataca mulheres. Ou fêmeas no geral, sempre cães machos ou homens, já aconteceu em outras cidades. Eram vocês que corriam risco agora, não apenas de levar um tiro, mas de serem atacados. Eu posso andar nessa floresta, como sempre fiz, aliás, e nada vai me acontecer. E depois, não acho que seja um animal que faz isso.

-Bastante informação, por que você acha isso?

-Porque existem algumas coisas, as quais não posso contar, que talvez não sejam características ou técnicas usadas por animais. – Mordeu o lábio e respirou fundo. – Você sabe que não tem o direito de vir até aqui e dar um show, sabe que não é assim que as coisas funcionam. Eu entendo que você se preocupou, os nomes das vítimas não haviam sido divulgados ainda, mas isso não te dá o direito de me cobrar satisfações ou correr pras minhas terras e me defender. Eu não preciso ser defendida, ou salva. 

-Você nunca vai entender, não é? E também não vai deixar que me aproxime. – Passou as mãos no rosto e riu desconsolado. – Por que afinal você fica comigo?

-Porque é bom, eu e você nos divertimos. Mas acho que não está mais rolando, certo? Nós não queremos a mesma coisa, você quer mais do que eu posso te dar, eu não quero tudo o que você tem para mim. É melhor parar com isso de uma vez.

-Certo. – Deu de ombros. – Talvez você devesse pedir para o Luiz parar de enrolar e te comer logo, é isso o que você quer a tanto tempo, não é?

-Some daqui! E se eu te encontrar de novo nas minhas terras eu atiro em você. - Ela levantou e apontou o portão para ele.

Ele riu debochado (ou despeitado), e saiu caminhando lentamente. Manuela entrou e pegou outra cerveja. Hellen estava sentada na sala de estar, lendo um livro.

-Não se preocupe com as onças, elas não vêm até aqui. Temos um acordo verbal de não invasão de nossos espaços particulares. – Riu e alcançou outra cerveja para ela. – Jamais um deles andou por aqui ou atacou meus cachorros, gatos e convidados.

-Você está bem?

-Não, mas vou ficar, sou ... como é mesmo a palavra da moda? Resiliente. 

-Ele gosta mesmo de você. Ao menos é o que parece.

-Não, ele gosta do sexo, eu também. Mas ele é um garoto do interior e não sabe transar sem se comprometer. – Deu de ombros. – E depois, que fazendeiro não gostaria de casar com a dona dessas terras, derrubar todas as árvores e plantar muita soja ou criar muito gado aqui?  

Hellen arregalou os olhos acenando, fazia sentido. Mas era uma romântica, pensava que sempre era amor. 

Fabricio caminhou em silêncio até onde os carros estavam, estrategicamente longe da entrada e da vista de Manuela. Seus homens estavam esperando por ele. Os dispensou e entrou em seu próprio carro, escorou a cabeça no encosto do banco e suspirou desanimado, ficou um tempo assim, pensando.

Cometeu um erro indo até as terras, sabia que ninguém poderia entrar, mas pensou que ela não ficaria sabendo. Queria a deixar segura, tinha aquela ânsia por não conseguir ficar mais tempo perto dela, como se quisesse controlar seus movimentos, para que nada ou ninguém a tirasse dele. 

Como os ouviu ele ainda não sabia, mas Manu era assim, tinha esses instintos, desde pequena. Ele lembrava dela com as cobras e as onças, a forma como sempre andou pela mata e pela cidade com a mesma desenvoltura. Acreditou, com todas as suas forças, que conseguiria conquistar ela, quando voltou para a cidade, ele já estava trabalhando com o pai, aprendendo tudo sobre os negócios, a viu no restaurante recém inaugurado de Cléber, se aproximou e relembraram coisas da escola, ela parecia interessada, imaginou uma aliança em seu dedo de mãos longas e bonitas, a imaginou como sua namorada, depois noiva, depois esposa. E então, mãe de seus filhos.

Errou, ela não seria dele, não de verdade. Era frustrante, porque agora, além de ter certeza que não a teria como sua para sempre, também não a teria mais sequer às vezes, passou dos limites, e sabia disso. Dirigiu para casa e se embebedou, sozinho e triste, como imaginou que acabaria seus dias.

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