PARTE 2: A DOUTORA DA CAPITAL

Hellen foi chamada no escritório da Professora Aline pela manhã, pensou que era algo a respeito de sua bolsa, ou orientações sobre seu projeto de doutorado, em fase final, com as graças de todas as deusas.

Mas não era sobre nada disso, Aline a recebeu com um sorriso franco e pediu que sentasse diante dela nas poltronas simples do escritório.

-Preciso pedir um favor para você. E para ser totalmente honesta, não será nada muito agradável para alguém que está terminando seu doutorado. Apesar de servir muito para seu campo de pesquisa. - Hellen franziu a testa e ela ergueu a mão para se explicar. - Entenda que você não está sendo obrigada a nada, é um favor pessoal. Eu a conheço a pouco, mas acredito que você é a pessoa certa para essa função, não apenas por seu campo de estudo, mas porque você é sensível e inteligente, e já tem minha total confiança.

-Agradeço a consideração. - Sorriu brevemente. - Do que se trata este favor, doutora Aline? - Muitas explicações, como se fosse pedir para que fizesse uma coisa ilegal, algo não estava certo.

-Me desculpe, eu fico cheia de rodeios mas não é à toa. Tenho essa amiga, uma boa amiga devo dizer, seu nome é Uyara Manuela, é veterinária no interior, uma cidade muito pequena, tomada por grandes fazendeiros, esse pessoal do agro, sabe como é. - revirou os olhos. - Ela tenta sozinha preservar o máximo a natureza e boas práticas com os animais, seja de fazendas, ou selvagens. Não costuma enfrentar muitos problemas porque é ótima em seu trabalho, eles precisam dela. Bem, estão ocorrendo casos estranhíssimos na região, de cães que são atacados por algum animal até agora não identificado. Ele suga o sangue dos cães, e eles morrem depois de um tempo, em decorrência de alguma substância provavelmente presente na saliva do que os ataca. Ela não possui muitos recursos, por isso me pediu ajuda, eu não poderei ir até o interior neste momento, estou orientando muitos projetos, tenho minha própria pesquisa que precisa de atenção total ao menos até que atinja alguns objetivos. Por isso, gostaria que você fosse auxiliar a Manuela, leve todo equipamento necessário, descubra o que está acontecendo, e então poderemos até, quem sabe? Descobrir alguma espécie, ou uma modificação significativa em espécies já conhecidas.

-Fico muito honrada por sua confiança em mim e no meu trabalho, mas isso atrasaria bastante meu doutorado. Em qualquer outro momento, aceitaria com toda certeza essa tarefa, mas agora, eu…

-Eu sei, isso prejudica seu prazo, você tinha intenção de terminar seu doutorado logo. Sei sobre seus planos para o futuro, e não pediria isso se não fosse realmente importante, e urgente.

-Não entendo sua urgência, ela parece uma preocupação um pouco estranha, me desculpe mas não entendi porque isso parece tão grave, sei que são seres vivos, cãezinhos pelo amor de deus! Mas o que é tão importante para uma professora de seu nível se preocupar tanto Aline?  

-Você é uma mulher inteligente mesmo. - Aline riu. - Manuela é responsável por proteger uma espécie de reserva ambiental, e se os fazendeiros e moradores da região começarem a ficar impacientes, vão querer caçar nas terras protegidas por ela, e no pouco que resta de mata nativa por ali. Ela tem pressa, e eu também, porque é necessário descobrir logo o que ataca esses cães, para neutralizar ameaças maiores ao bioma. E claro, se isso ganhar atenção de forma torta, podemos ter empresas privadas, com seus pesquisadores contratados, querendo se intrometer nas terras dela, e da reserva próxima a cidade. 

-Compreendo. Você tem certeza de que sou a melhor pessoa para ir até uma cidadezinha do interior?

-Você vem do interior Hellen, tenho certeza sim, porque você está acostumada aos ânimos e humores de uma cidade pequena.

-Bem, você até que tem razão. - Levantou e piscou demoradamente, não acreditava que diria o que estava prestes a dizer. - Posso arrumar tudo até amanhã, parto pela manhã, vou deixar a lista dos equipamentos com o pessoal do laboratório, eles vão pedir para que autorize a retirada.

-Não se preocupe, farei a autorização assim que me entregarem. - Levantou também, e deu um abraço curto e um pouco envergonhado em Hellen. - Obrigada, muito obrigada mesmo.

Hellen saiu dali séria, não seria fácil enfrentar uma cidade do interior, mas compreendia as motivações da professora, e sabia bem como funcionava a mente de um povo que parecia sempre querer resolver as coisas pela força, sabia disso melhor do que ninguém. Ultimamente eles eram ainda mais livres para portar suas grandes armas, uma espécie de extensão compensatória de seus corpos. Os ódios não faziam mais parte de locais obscuros, ou fóruns de internet da deep web, não, ultimamente os ódios e desrespeitos pareciam ter tomado força. O desrespeito à natureza, minorias e povos originais era encabeçado pelo próprio Estado, o que parecia tornar todos os crimes legais, todos os ódios justificáveis.

Ela, como mulher trans, sabia disso melhor do que ninguém, com 36 anos, já havia superado a expectativa media de vida de mulheres como ela, sair de casa todos os dias era uma vitória, andar nas ruas e voltar ilesa era uma vitória. Não tinha certeza de que conseguiria ser vitoriosa também no interior, algo que nunca quis pôr à prova. 

Após sua transição, sua expulsão de casa por conta de quem era já havia sido “perdoada”, a mãe e ela se reconciliaram depois da morte do pai, sua mãe pediu perdão, ia visitá-la com frequência, e disse que cuidaria dela após sua cirurgia, mas ela jamais retornou para sua pequena cidade, não quis se expor as violências que costumava sofrer quando ainda era muito jovem, quando ninguém sabia afinal o que ela queria ser da vida.

A viagem também atrapalharia seus planos, apesar de estar com medo, por conta de alguns problemas de saúde, estava esperançosa, logo depois da conclusão do doutorado, faria a redesignação. Quanto mais demorasse para concluir seu doutorado, mais demoraria para realizar esse sonho. De qualquer forma, não era mais ou menos mulher por isso, apenas para ela, era importante fazer isso.

Ainda estava bastante indecisa, sem vontade de ir, era necessário iniciar uma pesquisa é claro, e os argumentos de Aline eram bastante válidos, queria ajudar a proteger a natureza sempre, era parte de quem era. Por outro lado, deixar todo seu planejamento para uma aventura no interior não parecia nada satisfatório, estava quase ligando para a professora e desistindo de sua viagem, até chegar em casa a noite e comentar com o namorado, Eduardo, sobre o pedido da professora. A reação dele havia sido a pior possível, como se quisesse controlá-la e tentar descredibilizar seu trabalho, ela acabou por se animar mais com a possível pesquisa, e descoberta de uma espécie, ou de modificações em hábitos de espécies já conhecidas. Apenas para provar para ele que fora convidada não porque era a única que aceitaria, mas porque era a melhor das biólogas doutorandas.

Hellen pegou a estrada cheia de buracos e caminhões às 5:30 da manhã do dia seguinte, tomada por sentimentos conflitantes, entre o medo das reações a ela, até o fracasso de não descobrir nada, indo para os óculos cor de rosa, com uma aceitação inacreditável, respeito por parte de todos devido a seu excelente trabalho na resolução de tudo. Ouvia música alta e tentava se livrar da ansiedade cantando clássicos do punk rock, não estava dando muito certo, mas se manteve firme nas tentativas. Eram 11:30 da manhã quando contornou a rótula de entrada da pequena cidade, depois de passar por inúmeras fazendas cheias de soja plantada, o vento nas folhas fazia aquele balé que, se esquecermos o que causa ao solo e a destruição das florestas para seu plantio, até que parece bem bonito.

Foi até o consultório de Manuela instruída por uma menina - única pessoa que concordou em falar com ela, o pior lado de seus pensamentos quase venceu até que a menina se aproximasse sorrindo simpática  - , que lhe deu a indicação correta. O centro da cidade era praticamente uma rua, onde todos os comércios e serviços se concentravam, a placa grande em frente a casa antiga informava que ali era a clínica veterinária.

Manuela viu o carro estacionar e correu até a porta já com um sorriso no rosto.

-Oi! Bem-vinda, é Hellen certo? Sou Uyara Manuela, a Aline disse que você viria de carro, muito difícil para encontrar o consultório? – Se antecipou e deu dois beijos na recém-chegada, a conduzindo para o interior da clínica, até a sala espaçosa da recepção.

-O GPS não funciona, mas uma boa alma me indicou onde ficava seu consultório, só precisei perguntar para umas dez pessoas até que alguém respondesse para mim. – Ainda não sabia qual seria a reação de Manuela quando a visse, talvez a professora a tivesse avisado, mas ainda assim, sempre era difícil conhecer pessoas do interior, e estava irritada, detestava ser ignorada apenas por ser quem era.

-Eu lamento por isso, o pessoal aqui às vezes é filho da puta, mas nem todo mundo eu te garanto. Ao menos eu não sou, e não vou deixar ninguém ser enquanto você for minha convidada, e minha salvadora na verdade. – Sentou cansada em um sofá na sala de espera de sua clínica veterinária, e fez sinal para que a mulher também sentasse. – Fico realmente feliz que você esteja aqui, já estou na fase do desespero Hellen, você nem imagina.

-A Aline me disse, a situação é bem estranha realmente, esses ataques sem explicação me deixam bastante impressionada, quer dizer, me deixavam quando vivia no interior, agora, na capital, é muito mais raro que essas notícias cheguem aos jornais. Me diga tudo que já sabe sobre os casos.

-Você é uma menina do interior também? - Hellen acenou concordando e ela fez uma careta, querendo dizer que entendia sua interlocutora. - Antes de mais nada, eu vou instalar você, não vou te atropelar com toda a confusão que essa cidade virou, sei que a viagem até aqui é cansativa.

-Ah sim, onde é o melhor hotel da cidade? – Levantou e foi até a porta.

-O único você quer dizer? – Uyara riu. – É aqui perto, mas eu ia preferir se você ficasse na minha casa, assim não vai gastar com a estadia, e como você vai me ajudar aqui, nada mais correto do que eu te dar um teto e comida gostosa. 

-Não sei, talvez eu tire sua privacidade e … - Hellen realmente não gostava de ficar na casa de ninguém, ainda mais de uma completa desconhecida.

-O hotel daqui é horroroso! Eu estou falando sério, e depois a casa é bem grande, você vai ter um quarto só seu e eu garanto as três refeições diárias que o Cleber vai fazer para nós. Ele tem o melhor restaurante da cidade e moramos juntos.

-Você é casada?

-Não! A Deusa que me livre. Ele e eu somos amigos desde a escola, e depois da faculdade voltamos para a cidade para enfrentar nossos demônios juvenis e trabalhar enquanto cuidávamos de nossas famílias. Minha mãe e o pai dele se casaram depois de enviuvar e nós queríamos ficar perto deles, e ... vá lá, da cidade também. Vamos, eu vou acomodar você, alimentar você, e depois trabalhamos.

Depois de chegarem a casa, um chalé confortável, aconchegante de madeira, Hellen se acomodou no quarto de hóspedes (melhor do que o de muitos hotéis em que já esteve). E foi encontrar Manuela na cozinha.

-Tudo o que sei fazer é café, e talvez macarrão instantâneo. Mas não vou servir isso para você. Pega esse café e daqui a pouco vamos à cidade almoçar.

-Muito obrigada. – Pegou a caneca agradecendo silenciosamente por sua anfitriã gostar de café. – Afinal, com o que estamos lidando aqui? A professora disse que haviam cães vitimados e que uma substância foi encontrada nos testes?

-Isso mesmo. Desde o início do mês aparecem uma vez na semana três cães com marcas profundas, como se fossem quatro canos enfiados e usados para sucção, hoje foi o segundo grupo da semana, o que ainda não havia acontecido. Ficam muito agressivos e quase exangues, depois de alguns dias eles morrem ainda agressivos, mas cada dia mais fracos. 

-Algum tipo de raiva?

-Não exatamente, apesar de ficarem agressivos, parecem sempre agitados e assustados. Como se afetasse o temperamento deles, mas os deixando mortos de medo, a agressividade vem daí, uma reação ao terror eu diria. 

-E a substância?

-Bem, isso eu te mostro quando voltarmos para a clínica, junto com os primeiros e últimos vitimados. – Como Hellen a olhasse desconfiada ela deu de ombros. – Ainda não enterrei os primeiros corpos, estão no necrotério da cidade. Não tem muitas mortes por aqui então tem espaço de sobra lá.

Seguiram para o almoço, Hellen foi muito bem tratada por Cleber, ele foi atencioso e cozinhava como poucos. Almoçaram todos juntos, com a condição imposta por Cleber que não falariam em cães mortos. De volta a clínica, Hellen não se conteve e perguntou para Manuela, despretensiosamente.

-Por que afinal vocês não são um casal?

-Quem? Eu e o Cléber? Bem, porque ele é meu amigo desde criança, e gay é claro. 

-Ah... 

-É eu sei, ele aprendeu a disfarçar vivendo aqui. Mas eu vivo dizendo para ele parar com isso. Enfim, às vezes ele me ouve e sai com o namorado em público, mas ainda está em desconstrução, precisa do tempo dele. E você? É casada?

-Não, tenho um namorado. – Deu de ombros. – As coisas só não estão muito bem, ele não entende minha demora em certas decisões, e ter priorizado meu doutorado ao invés de... – Se deu conta de que ia falar de algo muito íntimo para uma desconhecida, mas Uyara era assim, parecia ter intimidade com todo mundo, o que fazia com que as pessoas se abrissem com ela, ao mesmo tempo, nunca se abria com ninguém.

-Entendo, ele que se ligue, não se encontra uma mulher linda e ainda doutora em qualquer esquina. - Piscou para ela e a levou até os fundos da clínica, uma sala grande com gaiolas espaçosas, seis delas, dentro de cada uma havia um cão que parecia fraco e bravo. - Estes são os últimos, apenas nesta semana foram seis. Eles demoram cerca de uma semana para morrerem, não importa os medicamentos, soro ou alimentação que dei a eles.

-E os ferimentos? - Hellen sentiu um arrepio percorrer seu corpo quando Manuela os mostrou.

-Ali, ao lado do pescoço. - Mostrou as quatro marcas, feridas abertas perto da cabeça dos animais. - Depois aplicamos tranquilizantes para podermos examinar esses garotinhos, agora vamos ver os corpos. - Seu telefone tocou e ela atendeu sem ver quem era. - Oi Fabricio! A Satine? Mas olha só, me sinto velha já, fiz o parto quando ela nasceu, agora farei o parto dela! - Riu divertida. - Tudo bem, estou resolvendo umas coisas, mas assim que me liberar vou aí. Desligou e fez sinal para Hellen. - Vem comigo, vou te mostrar os que já morreram. Hellen?

A doutora estava parada olhando os cães, com uma expressão entre o choque e a tristeza, seus olhos cheios de lágrimas, e as mãos trêmulas. Algo a atingiu com força, lembranças de uma outra vida, um outro tempo em que tudo era mais triste e confuso. 

-Tá tudo bem? - Uyara se aproximou e segurou seu braço.

-É claro, tudo bem, acho que foi uma queda de pressão, só isso. - Sorriu fazendo uma careta. - Estou mesmo ficando velha, não se preocupe, vamos lá.

Uyara a olhou preocupada, mas viu que não era pressão, era algo que ela não quis dizer, não seria inconveniente insistindo, ainda não se conheciam o suficiente para esse tipo de intimidade. Fez um sinal apontando a porta e saíram da clínica, acessando, pela porta da frente, um prédio ao lado, onde um jovem com cara de poucos amigos as aguardava atrás de um balcão. 

– E aí garoto? Essa é a doutora Hellen, ela veio me ajudar e tem acesso livre em todos os lugares em que eu tenho, certo?

-Sim senhora. Preciso de um documento pra dar a entrada pra ela. – Quando Hellen entregou o documento, a carteira de motorista, com seu nome social, ele devolveu e sorriu maldoso como apenas os adolescentes podem ser. Usava preto como um descolado roqueirinho do interior, mas a mente ainda era pequena. - Preciso do RG senhora. - Hellen retirou o documento solicitado da carteira, tinha todos eles atualizados, mas Uyara não permitiu que ela entregasse seu RG.

-Preencha a ficha agora. – O encarou séria. Indicou a porta para sua colega e a apresentou ao médico legista, doutor Luiz. Que acenou do fundo da sala, fechou a porta que dava para um pátio pequeno nos fundos depois de depositar o toco de cigarro que terminava de fumar em uma caixinha de madeira ao lado da porta, e sorrindo com uma mão esticada para Hellen. – Esse é o doutor Luiz, Hellen a doutora que falei que viria. 

-Muito prazer, seja bem-vinda doutora. – Ele era jovem, lindo com o cabelo castanho liso e maior do que deveria para o gosto de Hellen, mas tinha alguma coisa que fazia com que todos e todas o olhassem com mais desejo do que normalmente se sente por um médico legista, tinha a pele bonita e lisa, perfeita sem absolutamente nenhum sinal ou marca. Os olhos amendoados e o nariz perfeito de indígena.

-O prazer é meu doutor, e eu sou doutoranda. 

-Ah titulos, titulos! – Uyara riu. – Ah, me esqueci de uma coisa, pode ir mostrando os cães para ela Luiz, por favor. – Saiu e fechou a porta com cuidado atrás de si, caminhou decidida até o jovem, e com o dedo a centímetros do nariz dele sibilou, baixo e com raiva. – Se você tentar constranger a doutora mais uma vez eu vou até sua mãe e conto o que você faz com seus amiguinhos queimadores de back! Duvido que ela vá deixar você ensaiar mais uma vez na sua vida seu fedelho careta! – Ele a encarou com os olhos arregalados e ela continuou. – Não adianta tocar rock and roll e fumar maconha se sua cabeça é igual a de qualquer outra pessoa deste fim de mundo! Porque quando você for tentar a sorte na capital, tocar na noite, e frequentar lugares incríveis, o que você acha que vai encontrar? 

-Tudo bem doutora, me desculpe. Eu fui...

-Um fedelho babaca e preconceituoso. Que isso não se repita. – Se afastou dele e piscou um olho. – Comporte-se! Evolua garoto, isso é o melhor que pode fazer por você mesmo.

Quando retornou Hellen a encarou séria.

-Isso está estranho Uyara, eles parecem fracos realmente, mas não parece ação de nenhum veneno, os dentes e gengivas com coloração e textura bons, mas parece que foram mal alimentados, parecem desnutridos.

-É eu sei, foi isso que me fez chamar ajuda. 

-Perfume novo? – Luiz se aproximou e respirou fundo, com o nariz bem perto do pescoço dela. – Eu gostei.

-Não, você que só cheira corpos o dia todo. – Se endireitou e caminhou para longe, pegou um cigarro de uma carteira perto da porta, acendeu e foi para a rua.

-Então esse é mais um motivo para você ainda não ser casada, está esperando o doutor te conquistar. – Hellen sorriu e pegou um cigarro também, falava baixo se aproximando dela.

-O que é isso? O Luiz? Não, somos amigos faz bastante tempo, namoramos quando éramos muito muito muito jovens mas nada mais.

-Se você diz. Ah, não há necessidade de me defender cada vez que alguém tentar me tratar com preconceito, você vai ficar cansada e será meio inútil também. Deixe que eu mesma me defenda.

-Você é minha convidada, está fazendo um grande favor para mim, eu não vou admitir que se canse com esse pessoal cheio de preconceitos, deixe que eu mesma resolva. Aquele pirralho precisava de um corretivo. E depois, não faço ideia do que você está falando. – Riu e chamou Luiz com a mão. – Vamos jantar no Cléber hoje? Já que não tem muita vida noturna na cidade, pensei em tomar uma cerveja e conversar, sabe como é, sermos bons anfitriões.

-Claro, vou adorar. Mas hoje saio daqui somente às 20h. Pode ser?

-Sem problemas, a doutora aqui ainda vai anestesiar aqueles cães que estão no consultório e depois eu preciso passar na fazenda do Fabrício, ele disse que tem uma vaca prenhe e tenho que iniciar o pré-natal da garota. Alguma coisa ainda para você examinar?

-Não, está tudo visto. Vou recolher o material deles e testar, preciso montar meu equipamento, mas faço isso enquanto você estiver examinando a vaca. Só preciso de ajuda com algumas coisas.

-Não se preocupe, o estagiário te ajuda a descarregar o carro e montar tudo. – Luiz sorriu e chamou o adolescente recém repreendido o fazendo acompanhar Hellen. 

Ele apenas acenou educadamente, e acompanhou a doutora, foi muito prestativo. Quando terminava de carregar as caixas, parou mordendo o lábio sem saber como iniciar o pedido de desculpas. Hellen não facilitou, ele deveria remediar seu comportamento, quem sabe até aprender algumas lições com esse pedido de desculpas. Depois de algum tempo de exitação e bochechas vermelhas, pigarreou e sorriu amarelo.

-Doutora, eu sinto muito se pareceu que estava fazendo alguma coisa para constranger você, prometo que não vai se repetir, estou aprendendo a ser melhor, a Manu me ajuda bastante, me disse que um dia vou tocar na noite em bares descolados, mas que preciso abrir minha mente antes disso, ela tem toda razão.

-Tudo bem, você se arrepender e pedir desculpas já é uma boa evolução, mas acredite, exposição e ofensas bobas somente são bobas para quem as profere. Pessoas trans sofrem muito mais do que você pode imaginar, aceitamos algumas coisas, mesmo que não precisássemos aceitar. E lembre-se, sempre que quiser fazer alguma piada, ou expor alguém a constrangimento, que pessoas morrem todos os dias, de formas extremamente violentas, apenas porque existe um pensamento incrustado na sociedade, de que somos erradas, impuras.

Ele acenou concordando, segurou o braço dela demonstrando que entendeu, e saiu rápido. Hellen sorriu, talvez não estivesse perdido ainda. No meio do trabalho, se surpreendeu com a caneca cheia de café que ele levava para ela, junto com algumas bolachas caseiras amanteigadas, que segundo ele eram especialidade de sua mãe. Disse que era ainda sobre o pedido de desculpas e saiu apressado, era um bom menino no final das contas. 

Manuela instalou Hellen no consultório, sedou os cães e depois recolheu material,  prendeu novamente nos cercados reforçados antes que acordassem. Pegou o carro e foi até a fazenda de Fabrício, desceu e foi direto cumprimentar os funcionários. Que a aguardavam para que fosse conhecer a mais nova grávida da fazenda. Manuela sorriu e passou as mãos no pêlo brilhante.

-E então garota, como você está? – Começou a examiná-la enquanto conversava com o animal como se fosse uma pessoa.

Fabrício chegou e não foi notado, ficou em silêncio observando a veterinária, sorriu quando ela, ainda falando com a vaca, mencionou ele e o modo como chegava sorrateiro e não se anunciava.

-Você estava tão concentrada que eu não quis interromper. – Chegou perto dela e segurou sua cintura a puxando para perto. Ele era bonito, bronzeado e forte como um bom trabalhador da terra, com a diferença que nunca precisou de fato trabalhar, nascera rico e herdara a fazenda de seu pai, atualmente aposentado e aproveitando a vida em algum país da Europa. Os olhos azuis brilharam e ele a beijou.

Manuela o puxou para um canto da estrebaria, abriu sua camisa e beijou seu peito, ele sorriu quando ela o mordeu de leve o pescoço e a levantou do chão, passando as pernas dela em volta de sua cintura e a encostando na parede de madeira, ela o abraçou forte e quando se afastou, ele arrancou sua camiseta com apenas uma mão, depois disso, tudo acontecia como se coreografado, ela correu as mãos até os botões das calças dele, e abriu com pressa, ainda o beijando. Ele encostou o corpo com mais força contra o dela, enquanto segurava seus cabelos. O restante das roupas desapareceu sem que notassem, e o feno foi, mais uma vez, macio o suficiente para eles.

Isso já acontecia a muito tempo, ela apenas deixava claro que somente aconteceria daquela forma, e ele fingia que não entendia o que isso queria dizer. E sempre insistia para que assumissem seja lá o que tinham um com o outro.

-Você sabe, eu tenho um quarto com uma cama bem confortável, você poderia esperar ao menos uma vez até que eu te levasse lá. – Passou a mão nos cabelos castanhos curtos dela e tirou o feno que grudou em alguns fios, estava deitado sobre ela, rindo feliz como sempre fazia.

-Mas daí qual seria a graça? – Riu e saiu debaixo dele, levantou se vestindo rapidamente.

-Você já vai mesmo? Não quer ficar e jantar comigo? - Sentou a olhando e mordendo o lábio.

-Não posso. – Ele a olhou curioso. – Tem uma cientista que minha amiga mandou para ajudar no caso dos cães. E por falar nisso, prenda os garotos à noite, não sabemos onde serão os próximos ataques.

-Eles estão presos desde o início do mês passado, depois do primeiro caso. Não tem nenhuma novidade ainda?

-Não, mas terá em breve. Ela parece competente e veio muito bem recomendada. - Terminava de vestir as calças e pegou os tênis estilo botinha os calçando ainda com os cadarços amarrados.

-É verdade que ele é… - Sorriu e abaixou o tom de voz, como se fossem falar de uma grande fofoca bombástica.

-Uma mulher muito inteligente, com cabelos loiros, olhos verdes e um doutorado quase concluído. Também veio da capital e dirige um hatch, não vai se dar bem nessas estradas.

-Eu quis dizer um homem, ou um trans. - Revirou os olhos.

-Uma mulher transexual, ela não é um homem, jamais foi. E por favor não seja preconceituoso, não faça com que me arrependa de ter trepado com você agora. - Fechou a cara e fez questão de falar daquela forma, para que ele se sentisse usado, mais uma vez.

-Não precisa falar assim! Me desculpe, ok!

-Tá, agente se vê. – Saiu antes que ele pudesse segurar seu braço, entrou no carro e dirigiu em alta velocidade, como sempre fazia. No caminho pensou ter visto algo no resto de floresta que ainda existia pouco antes da cidade, estava anoitecendo e por um momento duas lanternas a acompanharam, mas como estava rápido não prestou muita atenção, deviam ser caçadores, não poderiam estar ali, a área era protegida por lei ambiental, mas nada mais funcionava como antes, não respeitavam mais nada, e agora com a história dos ataques o humor do povo ficava ainda pior. Aumentou o volume do rádio do carro, cantando junto com Caetano Veloso e Chico Buarque, somente os clássicos a fazendo esquecer da conversa preconceituosa de Fabrício, e da presença dos caçadores na mata. 

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