A Queda das Espadas
A Queda das Espadas
Por: MTimberleick
Prólogo

As chamas lamberam a floresta fazendo fumaça erguer-se seguida do laranja carmim do fogo. A luminosidade machucava os olhos e o calor espalhava-se até ali, na torre quilômetros de distância da queimada e protegida pelas pedras do castelo.

Era uma visão que deslumbrava a garota e assustava também. O fogo subindo mais alto que as muralhas, a energia quente roçando-lhe a pele e a estranha excitação de encarar a morte, mesmo que tivesse ciência da impossibilidade dela alcançá-la atrás do que a guardava, fazia-a sentir o coração bater mais forte.

 As chamas haviam sido convocadas pelos magos do lorde Fearblood, criaturas embutidas em túnicas e dadas a leitura dos mais diversos tipos de escrituras, pessoas cuja lealdade ao povo e ao lorde que os comanda não podia ser questionada. Além deles haviam milhares de soldados… e mais uma centena de aventureiros.

A garota sabia estar segura, ninguém chegaria até ela com aço e fogo e se viessem ela os aguardaria com iguais armas. As cenas fantásticas que tinha conhecido por intermédio dos livros na biblioteca do castelo e que passavam-se em batalhas como a que estava eclodindo nos portões não eram o único meio pelo qual conhecia confrontos.

Desde a primeira vez que proferiu ter desejo por empunhar no corpo a armadura negra que ostenta o símbolo de sua família, e protagonizar lutas onde seu sangue ferveria e sua vida faria sentido, o lorde Fearblood passou a prepará-la. Lutar uma batalha em nome do que era certo, da justiça e da paz, como os hérois que admirava, mantivera em mente tentando aguentar a rigidez dos regimes de treino do pai.

Porque na vasta quietude da fortaleza dele era dificil não esquecer que havia coisas por experimentar lá fora. Não possuía amigos, não fazia excursões fora do castelo e muito menos nutria romances com belos rapazes. Seus horizontes, mesmo com a majestosa vista da cidade pelas janelas, eram tão cinza quanto os tijolos da torre onde se encontrava. 

Ela esticou a mão para fora e agarrou o ar que corria além daquelas pedras. Um arrepio percorreu seu corpo, eletrizando até sua alma abaixo da carne e ossos. Havia saído do castelo, mesmo que só parte do braço, estava do lado de fora juntamente aos heróis sobre os quais tanto lera. Arthur, Netuno, Aquiles e até o questionável Judas, o fundador daquela cidade. Por um momento se permitiu sorrir, um sorriso melancólico e pesaroso, mas um sorriso. O último que daria enquanto ainda lembrasse o significado do súbito desaparecimento da barreira que a prendia à fortaleza.

O lorde da Cruz do primeiro, Jaime Fearblood, o cavaleiro branco, estava morto. Ele era seu pai e a pessoa cuja força vital alimentava a barreira que impedia sua saída. Isso, por mais estranho que lhe parecesse, fez desejar que o homem que nunca a abraçou ou demonstrou afeto de forma física a embalasse nos braços e permitisse que a menina choresse sobre sua camisa. Mas aquele desejo continuava tão tolo como quando lorde Fearblood andava por cima do assoalho do castelo. Limpou as lágrimas com a manga do vestido, virou-se e partiu. Tínhamos pouco mais que sangue em comum. Tínhamos pouco mais que sangue em comum. Tínhamos pouco mais que sangue em comum. Repetiu como uma prece enquanto descia os largos degraus internos da torre, sentindo o medo crescer num ritmo acelerado dentro do peito e o corpo exigir mais força para se mover. Ao percorrer o pátio, sob o sol dourado e a fragrância das flores que ali haviam sido plantadas há centenas de anos, outra remessa de lágrimas escapou. 

As rosas murchavam e os lírios, margaridas e orquidias tomavam para si o tom cinza das pedras austeras que formavam o castelo. Morriam assim como lorde Fearblood, deixando-a para os rostos solenes dos quadros e os livros na biblioteca. Talvez a mãe dela viesse buscá-la, talvez também houvesse sucumbido diante de alguma lâmina, talvez a garota devesse voltar para o topo da torre e esperar que o futuro fosse tecido pela mão dos outros. Mas no momento em que seu braço atravessou para fora do castelo soube que precisava partir. O mundo, a glória e o amor ficavam além daquelas paredes. Por mais que seu rosto começasse a inchar com a umidade, as maçãs da face estivessem a ruborizar e que seu nariz começasse a congestionar. Por mais que eu nunca venha a ver meu pai de novo…

Virou em direção a porta do armeiro e com um empurrão a escancarou.  Era um espaço razoavelmente amplo, preenchido com mesas de pedra escura riscadas por linhas vermelhas cintilantes erguendo-se como pequenos montes do piso de igual material, sobre as bancadas, cerca de dez pelo que lembrava de ter constatado uma vez, haviam armas das mais variadas e até mesmo munição para bestas, arcos e zarabatanas. Na parede ao fundo, forrada de tecido carmim e de extremidades revestidas de finas placas douradas, pendiam nos suportes armaduras forjadas a partir dos materiais mais exóticos que alguma vez se teve notícia em todo o continente e, de acordo com um dos lordes que certa ocasião almoçaram junto a garota e o pai, até mesmo na província submarina de Atlântida onde os deuses honrados e a língua eram outros tais componentes se mostravam escassos ou inexistentes.

Talvez só estivessem tentando agradar seu anfitrião, mas não seria agora que começaria a pensar nisso.

Seis armaduras já tinham repousado naquelas barras de suporte, mas agora duas delas jaziam longe daquele leito permitindo que a estranha sombra da ausência preenchesse o centro e o canto a esquerda. Uma delas a negra e feroz Fafnir, escura como o céu à meia noite e aterradora com os entalhes que faziam-na assemelhar-se ao dragão cujas escamas foram a base de sua fundação. Ela fora o produto pelo qual a mãe abdicara da garota e mesmo sua sombra irradiava um sugestivo ímpeto agressivo na jovem herdeira do lorde Fearblood. Levava -a imaginar-se destruindo cada pedaço de escama, aço e mana que criou Fafnir e, se ainda algo sobrasse, atirar-lhe sobre a face da mulher que a gerou.  Mas agora sabendo que o pai falecera tudo que aquilo trazia eram mais lágrimas para correrem quentes por suas bochechas e um desejo estúpido pelo calor de abraços. Como a garota tola que percebera há tempos ser certamente almejaria.

Enxugou novamente os olhos com a manga do vestido e pôs-se a remover da parede a prateada armadura de Semiramis, a primeira mulher a governar todos os demônios e a responsável por dar um fim a guerra do Branco e Vermelho. Não era nem de longe uma das suas figuras favoritas da história, a forma como ela dizimou até mesmo as pequenas crias de dragão e empalara aqueles que desobedeciam suas ordens soou assombroso demais para a garota, mas inegavelmente havia possuído uma armadura formidável. A jovem desocupou uma mesa próxima atirando ao chão lanças e maças e porretes para lá colocá-la.

Era um conjunto belo e reluzente de placa de peito, capacete equipado com uma viseira, luvas, a parte que cobre os membros inferiores, a dos braços e ombros. Brilhava como a lua e todos os pedaços estavam delineados por um fino, mas luminoso e gentil, azul cobalto. E emanava uma aura atraente que fazia com que a garota precisasse se esforçar para não correr a mão sobre a centena de escamas de dragão e metal que foram fundidos até tornar-se aquela armadura. Linda como se lembrava das visitas que já a fizera junto ao pai e até mesmo só, mas o mais importante de fato era sua praticidade.

Os dedos da garota deslizaram sobre a placa reluzente injetando mana e fazendo pequenos círculos azulados surgirem um após o outro até que a armadura em si tornou-se luz e então uma nuvem de minúsculas partículas que dançaram ao seu redor antes de sumir. Agora tudo que precisava era visualizar o equipamento para que ele surgisse perfeitamente ajustado ao seu corpo. É a habilidade dos sonhos, percebera há tempos quando experimentou outras armaduras que levaram uma eternidade até finalmente serem vestidas. 

Virou-se depois para as armas e sem pensar muito pegou uma espada curta de aço prateado. Diferente das armaduras, a arma não possuía qualquer propriedade mágica digna de nota. Era simplesmente afiada e fácil de manejar comparada às demais, cujas habilidades não eram grandes o bastante para sobrepor a praticidade.

Com ela na bainha se dirigiu a cozinha onde pegou um grande vaso de sangue congelado, a mão começando a tremer com a perspectiva do que encontraria do lado de fora, enrolou em um pano e guardou numa mochila. Na mesma, em uma ala diferente, o livro com a profecia que lera no alto da torre de onde avistara os primeiros sinais de fogo, se encontrava. Estava saindo. Iria resolver o problema do maligno presságio e trazer a paz.

O grande mal se ergue e trará mortes incontáveis

Só quando as espadas caírem sobre a carne de um herói e o fim extinguir seu corpo

Com o cálice em mãos o incapaz poderá impedi-lo

Rei e senhora dançarão sob aço

E o rumo disso ditará o desfecho do mundo

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