CAPÍTULO 3

Catarina

Tenho a sensação de que minha alma saiu do corpo e só agora parece voltar. O estranho predador e eu decidimos não trocar nomes e nos deixamos ser apenas nós dois ali, em um mundinho único de um quarto de hotel.

Confesso que do quarto eu pouco me recordo. Mas dele? Cada detalhe. Cada mísero detalhe até eu amanhecer sozinha naquele lugar, com um bilhete ao lado da almofada.

Poderia ter me sentido ofendida, mas convenhamos, se trata de algo completamente casual e eu nunca mais o verei novamente. Ele me pedia desculpas, pois teve uma emergência e terminou de uma forma tão doce, que mais alguns minutos com ele eu sequer me reconheceria.

Nunca vou esquecer seus belos olhos, cigana”.

 – Nem eu esquecerei você, solitário predador. – Guardo o pequeno papel dentro da minha agenda. Sim, eu uso agendas de papel, por achar mais prático. E é em algum lugar da minha confusa organização.

Eu poderia tentar classificar essa noite como uma das melhores que eu já tive, pois o estranho fez questão de me fazer conhecer o Olimpo e cada poder condizente a um deus grego. Mas isso tornaria todas as anteriores tão desvalorizadas que poupo as pobrezinhas.

Afundando a vontade de que um repeteco seria mais do que bem-vindo, saio de forma digna do hotel direto para minha casa, avisando a Camila que eu estou bem.

Ao chegar, quase com o nascer do sol, coloco uma camisa bem larga e me jogo na cama em um sono profundo e digno de quem começou bem o fim de semana.

Mas minha mente parece ser logo puxada para longe da inconsciência pela campainha que soa estridente. Levanto no susto, a cabeça sem muita coerência, mas logo compreendo onde estou e que preciso me esforçar para atender a porta.

A porta? Seu Agnaldo liberou alguém para subir sem minha autorização?

Receosa, vou à área de serviço e pego uma vassoura. Ideia fantástica, eu sei. Começo a me mover silenciosa pelo corredor, vencendo a leve tontura e alcanço a sala.

Como eu queria ter um olho mágico nesse momento, meu Deus! Não instalamos por falta de tempo e agora pago o preço. A abro de supetão, pronta para avançar, quando me dou conta da situação estranha à minha entrada.

Uma moça baixinha me sorri, como se quisesse me vender um produto. Juro, parece aquelas vendedoras de cosméticos que estão encalhados e ela precisa urgentemente se livrar para não ter prejuízo.

Está com uma calça jeans básica, cabelos soltos e um boné, que se cair um pouco mais, cobre seu rosto.

Ela não tem cosméticos e, por um minuto penso que preferia comprar centenas deles a cogitar o que ela faria ali. Em seu colo, uma menina sonolenta e uma bolsa infantil disputam suas forças, ambas parecendo querer levá-la ao chão de tão pesadas.

– Bom dia. – Digo sem saber como agir.

– Catarina Assis?

– Eu mesma. – Ela sabe meu nome e isso não me deixa tranquila. É tipo empresa de cobrança que aparece nos momentos mais inoportunos com todos os seus dados. – Quem é você?

– Eu era amiga da Roberta. – Ela diz de forma atropelada, como se estivesse com pressa. – E ela deixou a Rebeca para você.

– Rebeca? – A olho como se seus cabelos fossem de medusa e eu precisasse sair correndo urgentemente.

E eu estava certa.

– Sua sobrinha. – Ela praticamente joga a menina.

– É o que? – Eu realmente queria estar mais sóbria agora para compreender as ações da mulher que coloca a criança no meu colo e segue pelo corredor, sem olhar para trás.

Como saindo de um transe e com a criança um pouco desajeitada em meu colo, corro tentando alcançá-la, mas a porta do elevador já fechou. A menina segue adormecida e decido que correr de camisa e calcinha pelo meu prédio atrás de uma desconhecida com uma criança na mão, provavelmente me tornaria caso de polícia.

Entro e fecho a porta, encarando aquele pacotinho de gente. Seus cabelinhos loiros são espetadinhos, deixam-na parecendo um pequeno sol.

– O que você tem a ver com a Roberta, hein, mocinha?

Deito-a no sofá de forma desengonçada – tanto eu, quanto a criança – e vou até a cozinha para chamar a portaria pelo interfone.

– Bom dia, dona Catarina.

– Bom dia! Alguém esteve aqui, mas sumiu quando atendi a porta. Autorizou a subida de alguém?

– Desculpa Dona Catarina, mas disse que era amiga da sua irmã e achei que a senhora gostaria de receber. Desculpa, ela parecia assustada com a menina no colo.

– A moça já saiu do prédio?

– Ela já foi, senhora.

– Obrigada. Vou ver se alcanço na rua.

Vou ao banheiro lavar o rosto e trocar de roupa, na esperança de que minha irmã esteja lá embaixo com a moça e que tudo isso seja um engano. Com o tempo que ela passou pela portaria, eu sei que provavelmente não irei alcançá-la, mas não custa tentar.

Esperança, o nome disso eu acho, coisa que não uso muito.

Estou com uma perna dentro da calça, equilibrando-me para colocar a outra, enquanto brigo com o camisão que eu deveria ter tirado antes de me trocar, quando ouço um som vindo da sala.

Um choro.

Chorinho, daqueles sofridos que dão aperto no coração e nos fazem querer chorar junto.

Esse choro.

Desisto da calça, a fim de facilitar meu equilíbrio e vou a caminho da sala. Meu Deus todo poderoso, que fôlego é esse?

Eu simplesmente me sento diante dela completamente atordoada sem saber o que fazer, me beliscando para saber se não é consequência da bebida colorida da noite anterior.

Doeu.

Pego o celular e abro o aplicativo de mensagens, completamente sem ação.

– Camila, tem um bebê aqui.

É só o que eu consigo dizer, antes da minha vida mudar completa e irrevogavelmente. O universo soube como enviar uma bela representante predadora da minha sanidade repleta de cabelos dourados, pulmões de aço e os olhinhos mais lindos que eu já vi na minha vida.

Remexo na bolsa vendo se encontro algo que a faça parar e a console um pouco e sinto lágrimas brotarem em meus olhos. Acho que é a primeira vez que realmente me sinto perdida na vida e não sei como lidar. Receber notícias assim, sem que Roberta venha falar comigo e me deixe uma criança que, em tese, é sua filha, me abala.

A menina parece ter uns dois anos, mas está tão magrinha, que eu não saberia distinguir com precisão. Meu Deus, um bebê!

Meu caminho sempre foi sem curvas, sem imprevistos e todo planejado. Um bebê inconsolável e que, ao menos hoje, depende de mim, já é uma curva enorme em uma estrada que não sei andar.

Acho uma pasta e a abro apressada, ansiosa em desfazer a ideia absurda de Roberta ter uma filha. Nenhum documento.

Uma carta.

A pessoa larga um ser humano com uma completa desconhecida e deixa uma carta, como se fosse uma encomenda que fiz pela internet.

– Eu preciso chamar a polícia, meu Deus!

Mas antes de assumir qualquer plano, a grafia no papel me chama atenção. Uma letra normal de uma pessoa que escreve com pressa. Roberta sempre teve pressa e nunca teve aquela letra bonita dos cadernos de caligrafia.

Sentindo as mãos tremerem, confiro a assinatura ao final e confirmo meus maiores medos. Solto o papel, inicialmente sem coragem, pegando a bebê para tentar niná-la. Ou chorarmos juntas.

O que acontecer primeiro.

Logo ela pega no sono mais uma vez e eu já não tenho nenhuma desculpa para não ler o pedaço de papel mais aterrorizante da minha vida. Minha mão coça para acordá-la e ter, de novo, um motivo para ignorar aquelas palavras que parecem gritar diante dos meus olhos.

Mas a menina segue dormindo plenamente, como se não tivesse sido empurrada para o colo de uma pessoa que não sabe, em absoluto, o que fazer.

“Catarina,

Eu poderia ter enviado uma mensagem, feito uma ligação ou até mesmo ido aí pessoalmente quando tudo começou. Mas confesso que tive medo, irmã.

Quando fui embora, eu esperava meu bebê, pois entrei em pânico. Eu errei muito às escondidas e agora as consequências nos ameaçam. Eu não podia arriscar você. Nem ela.

Fiz um negócio arriscado acreditando que ganharíamos muito dinheiro, mas deu tudo errado. Tão errado.

O pai dela e eu saímos da cidade e fomos para longe. Não foi fácil e sequer a registramos para que não fôssemos encontrados. Foi nossa única saída, pois, apesar dele ter como pedir ajuda a família, é orgulhoso demais para isso.

Se você recebeu essa carta é porque não consegui resolver tudo. Peço desculpas por ter sido tão ingênua e tão ambiciosa. Queria ter tido sua coragem, mas minha covardia me levou por caminhos mais fáceis.

 Por favor, jamais deixe que descubram que ela é minha filha, assim como para você é melhor não saber quem é o pai. Conheço-te, irmã, e, sei que logo os procuraria para que ela tivesse a família que você sempre achou não poder ser.

Mas foi para mim e apenas peço que também seja para ela. Ela é a única inocente que sofrerá as consequências se descobrirem.

Adote minha bebê e cuide dela como fez por mim. Você não errou comigo, todos os erros foram meus e dos meus sonhos exagerados.

Ela é doce como nossa mãe, mas teimosa como você. Desculpa interferir nos seus sonhos, mas te conheço e sei que será uma mãe tão brilhante, quanto é como arquiteta. Como foi minha irmã.

Ela se chama Rebeca, aquela que une.

E ela agora nos une por toda vida.

Com amor, Beta”.

Nesse momento, todas as minhas decisões na vida parecem me encarar, enquanto zombam abertamente de mim, que sempre fui voraz em tomar a vida nas mãos e fazer eu mesma meu próprio destino.

Rebeca abriu seus olhos mais uma vez, parecendo alcançar um ponto adormecido dentro do meu peito que eu nunca quis que fosse acessado. Seria mais seguro deixá-lo ali inerte, enquanto eu podia seguir livre sem sentir falta de algo que nunca tive.

Eu poderia dizer que foram as más decisões de Roberta que me trouxeram aqui, mas ali está o destino, de peito aberto mostrando o caminho da maternidade, sempre latente, mas nunca desperto em Catarina Assis.

E agora a porta foi aberta e é Rebeca quem me chama a trilhá-lo.

Meu destino começou a se entrelaçar de forma irremediável ao acaso, me despindo da tarefa de decidir o futuro, quando tudo o que tenho ao meu controle é o hoje, unido à única lembrança deixada pela minha irmã.

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