Dia seguinte

Karina

No dia seguinte, eu acordo tarde. Dez horas. Não levanto com pressa. Depois de me trocar, caminho tranquilamente até a sala. Meu pai está lendo um jornal, enquanto mamãe arruma as flores em um vaso, que fica no canto da sala, em cima de um lindo aparador.

Audrey é uma mulher de 50 anos e usa os cabelos grisalhos naturais. O branco misturado ao preto deixa-o com uma cor acinzentada. Seus olhos verdes, iguais aos meus, me focalizam e ela abre um sorriso.

— Bom dia — digo a todos.

— Bom dia — eles falam quase em coro.

Papai deixa o jornal de lado e me encara com curiosidade.

— Como foi a festa?

Eu disfarço meu nervosismo com essa simples pergunta e respondo sem colocar emoção na voz. 

— Foi legal.

Jonas sorri.

Legal? Já vi que você não gostou. Esse “legal” não me convenceu.

Eu me dirijo à mesa de jantar, que está arrumada com o café. Sento-me diante dela e digo, de maneira desinteressada:

— A maioria das pessoas, eu não conhecia. Fiquei mais com Raissa.

Mamãe se aproxima e se senta à minha frente.

— Filha, mas e a festa em si? Dizem que eles capricham na decoração e que é muito animada.

Eu suspiro.

— Ah, isso é verdade. A decoração estava linda. Cheio de véus amarrados, as pilastras enfeitadas com fitas douradas, plantas ornamentais em cada canto, uma mesa enorme de guloseimas e uma mesa de bebida. Música árabe, dançarinas de dança do ventre. Você sabia que eles não bebem álcool?

Meu pai sorri, surpreso.

— Para mim essa festa seria sem graça, então.

Mamãe encara meu pai com o semblante fechado.

— Você não pode nem pensar em bebida, sua pressão sobe muito.

Meu pai pega o jornal, e eu vejo quando ele mostra a língua para ela, sem que ela percebesse. Eu dou risada do seu gesto e encho uma caneca de café e corto um pedaço de bolo.

— Bem, vou tomar meu café lá fora, aproveitar o sol. O verão está indo embora e quero pegar uma cor.

Lá fora, me sento à beira da piscina, a uma mesa que está com o guarda-sol fechado. Olho a água convidativa, respiro o ar da manhã, o cheiro de rosas. Fecho os olhos tentando a todo custo parar de pensar em Hassan. Já basta a noite insone que tive pensando nele.

Ouço a campainha, nem preciso ir lá para saber quem é. Com certeza é Vitor. Dito e feito, logo vejo a porta de tela se abrir e ele caminhar em minha direção.

Vitor é meu amigo desde os tempos de faculdade, nós nos conhecemos há dois anos. Não é novidade seu interesse por mim, mas já conversamos sobre isso. Eu nunca o iludi. Pelo contrário, sempre o incentivo a sair com outras mulheres. Sempre deixei claro meus sentimentos em relação a isso.

Embora ele seja um rapaz bonito, alto, forte, bronzeado, ombros largos, cabelos castanho-claros, olhos castanhos inteligentes cobertos por um charmoso par de óculos, que lhe dá um ar intelectual, eu nunca consegui vê-lo mais do que um amigo.

— Oi, Vitor.

Vitor sorri para mim. E passa os olhos rapidamente pelo meu curto vestido jeans.

— Vim te convidar para sairmos. Que tal pegarmos um cinema hoje à tarde? Está passando um filme que você gosta. Jurassic World. Você não vai na casa daquela amiga sua, vai?

— Verdade? O novo?

 — Sim — ele sorri de maneira triunfante.

Vitor sabe que eu gosto de todos os filmes do Jurassic World. E ir à casa de Raissa? Ah, não mesmo. Não pisarei lá tão cedo.

— Tudo bem. Mas antes ligarei para ela. Para deixar claro que não irei lá. Ontem ficou meio em aberto de eu ir ou não.

— Ótimo! Sabia que esse filme te faria sair da toca.

Eu me levanto sorrindo. Vitor, satisfeito, já se desmancha em sorrisos.

Passo pela sala e vejo mamãe confabular com meu pai. Com certeza é a respeito de Vitor. Eles torcem para que eu enxergue no bom menino um bom marido. Audrey sabe que Vitor quer ir além da amizade. Ela vive me dizendo que ele é um ótimo rapaz, trabalhador, estudioso, sereno, com aquele jeitão pacato de ser. Com 25 anos, já trabalha como engenheiro eletrônico em uma indústria de componentes eletrônicos como Account Manager.

— E Vitor?

— Está lá fora. Só vou ligar para Raissa para dizer que não vou lá hoje.

Mamãe abre um sorriso de orelha a orelha.

— Vai sair com Vitor? Ele nos disse que irá te convidar para assistir àquele filme que você gosta tanto.

Ah, um complô!

— Sim, eu aceitei.

Minha mãe olha para o meu pai com um sorriso vitorioso. Será que eles apostaram entre si se eu ia aceitar ou não? 

Está me parecendo.

Na biblioteca, disco para Raissa, mas quem atende é a empregada. Escuto gritos e vozes. Uma era a voz de Hassan, e a outra não identifiquei. Com o coração agitado, peço então para a empregada anotar o recado, dizendo que eu não irei à casa de Raissa, que surgiu um imprevisto. Desligo o telefone com aquela sensação ruim dentro de mim de que algo está acontecendo na casa de Raissa e é sério. 

Quando saio da biblioteca, mamãe está conversando com Vitor, ele me aguarda sentado no sofá.

— Vitor, por que você não almoça conosco? — ela pergunta.

— É claro, será um prazer.

Deus! Que horas iremos ao cinema?

Matinê? Ou ele ficará o tempo todo aqui até a hora de ir?

Está parecendo isso mesmo!

Mamãe sorri para ele.

— Por que vocês não aproveitam o dia na piscina? Jonas, temos uma sunga extra, não temos?

Meu pai tosse, engasgado com o suco. É claro que ele dará a dele para Vitor.

— Temos, sim, vou lá pegar.

— Não precisa, Senhor Jonas — Vitor diz rapidamente.

Eu soltei o ar, em puro alívio. Meu pai se sentou novamente. 

Ah, Deus! Quando meus pais se unem para algo, sai de perto. Eu detesto esse jeito deles. 

Encaro Vitor, séria.

— Vamos lá fora? Quero tomar sol. Pegar uma cor, estou muito branca.

— É claro — ele diz, satisfeito. 

Vitor se levanta. Mamãe sorri de orelha a orelha Ele vai na frente, eu não o sigo de imediato, e encaro os dois.

— Eu sei o que vocês estão fazendo! Parem! Isso é algo que vocês não verão acontecer.

Mamãe se faz de desentendida. Meu pai, mais adiante, nem tira os olhos da televisão. Pisando duro, vou para fora. Vitor está lá, pensativo. Quando ele me vê, se endireita na espreguiçadeira.

— E então? Como foi a tal festa?

Eu me sento e, sem olhar para ele, dou toda a descrição de como foi, desde a decoração, as pessoas, as danças, músicas e os tipos de comida. Tudo muito impessoal. Omiti que dancei com Hassan, a ousadia dele, quando me beijou.

— E Hajid? O homem poderoso no mundo hoteleiro, como ele é?

Meu coração se agita no peito.

— Bonito. Maduro. Rico — digo friamente.

Eu relanceio o olhar para Vitor, que está avaliando meu rosto, desvio meus olhos dos dele e os fecho, sentindo o calor gostoso do sol na pele. Fico vinte minutos estirada no sol, então me levanto e puxo minha espreguiçadeira para a sombra.

Vitor coloca seus óculos e me observa com um sorriso.

— Você é tão branquinha, que já ficou vermelha.

Eu forço um sorriso para ele.

— Verdade.

Ele, então, retira os óculos novamente e se deita ao sol. Eu pego o livro que tenho lido que está em cima da mesa desde ontem. Tento ficar entretida nele, mas só consigo olhar para ele, sem nada ler, o tempo todo em retrospectiva, me lembrando de Hassan e de tudo que aconteceu.

No almoço, mamãe caprichou na comida e o tempo todo ficou incentivando Vitor a comer, colocando as coisas em seu prato. Meu pai abriu um vinho e encheu o copo dele.

Deus! O que eles querem? Embebedar o rapaz? Talvez eles o achassem lento demais comigo. Talvez eles queiram que ele apresse as coisas.

Vai saber!

Eu encaro Vitor. Ele já está vermelho como um pimentão, depois de beber tanto vinho. Eu dou risada, achando graça nisso. Eu daria tudo para gostar de Vitor, já até me forcei a gostar dele, mas nunca consegui vê-lo como homem. Ele nunca me despertou o desejo.

Deus!

Já Hassan, só de pensar nele me dá uma onda de calor. É como se tivesse uma força invisível que me puxa para os braços dele, com o desejo de beijar aquela boca, passar as mãos em seus cabelos. Nunca na vida imaginei que eu pudesse me sentir tão atraída por uma pessoa.

Não poderia ser Vitor o homem que mexesse com meus neurônios?

Por que tinha que ser Hassan? Um homem aventureiro, um colecionador de mulheres? Um conquistador barato? 

Depois do almoço, meus olhos estão fechando de sono, pela noite maldormida, eu bocejo. Mamãe levanta rapidinho.

— Vou fazer café.

Ela morre de medo de que eu desista de ir ao cinema.

Vitor, que está sentado ao meu lado, me observa.

— Se quiser, podemos ir agora. Tem uma sessão antes dessa, dá tempo para pegá-la ainda.

Eu bocejo novamente.

— Não. Se eu for agora, vou dormir no cinema. Só eu tomar café, passa meu sono — digo, e volto minha atenção para a televisão, que está passando um programa interativo de perguntas e respostas.

Mamãe logo nos serve o café. Vitor pega uma xícara e eu outra. O tomo em pequenos goles, está muito quente.

Meu pai vem com o jornal na mão em minha direção.

— Olha isso.

Eu deixo a xícara vazia de lado e pego o jornal. A foto de Hassan abraçado à irmã está na coluna social.

Deus! Hassan está lindo ao lado da irmã. Raissa está com um sorrisão no rosto, feliz pelo irmão finalmente ter voltado dos EUA. 

Antes de ele chegar, ela só falava nisso.

Leio o artigo:

Hassan Hajid Addull Ala, 40 anos, ao lado de sua irmã Raissa Hajid Addull Ala, 20 anos, foi recebido com uma festa de boas-vindas pela família.

O telefone toca, mas eu continuo a ler:

O Shams Sfaga é o hotel que mais tem se expandido pelo mundo. O empresário aplicou recentemente R$ 700 milhões na construção de cinco empreendimentos: no Canadá, México, Cuba, Porto Rico e recentemente nos Estados Unidos. As unidades já estão em funcionamento e devem gerar vendas no valor de R$ 1,3 bilhão. Os hotéis, além de receberem pessoas de todo o mundo, se especializaram no mundo árabe. Têm até uma ala para os muçulmanos.

Meu pai sai da biblioteca e olha para mim.

— Filha, telefone. É Raissa.

Vitor fecha a cara.

Meu Deus! Ele podia pegar leve com seu olhar!

Meu sono sai na hora. Com o coração agitado por pura adrenalina, eu atendo.

— Karina, eu recebi o recado — ela diz, chorando. Deus! O que aconteceu agora? — Eu estou tão mal. Você pode vir aqui?

Eu estremeço.

— Raissa, você está chorando? O que aconteceu?

— Houve uma confusão aqui em casa hoje de manhã. Mamãe e meu irmão brigaram feio. Isso me deixou extremamente triste. Meu irmão ameaçou voltar para os Estados Unidos. Mamãe disse a ele que vá. Mas eu não quero. Allah! Quando eu penso que as coisas vão se acertar entre eles, acontece isso.

— Mas por que eles brigaram?

— A vida toda eles brigam, quando meu pai estava vivo a briga era sempre na ausência dele, mas depois que meu pai morreu a rixa entre eles se tornou aberta.

Eu não quero ir, então tento consolá-la.

— Daqui a pouco eles fazem as pazes.

— Não. Não acredito. Ele saiu transtornado, batendo a porta de casa. Nunca vi meu irmão daquele jeito, e acho que você está certa, ele deve ter algum trauma ou algum motivo para agir assim. Ele não tem uma atitude normal — então disse, chorosa: — Por favor, Karina, venha até aqui! Eu preciso falar com você, senão vou enlouquecer.

Eu suspiro e digo:

— Tudo bem, estou indo para aí agora.

Quando saio da biblioteca, imediatamente Vitor procura meus olhos. Eu já fui falando:

— Desculpe-me, Vitor, mas preciso sair. Uma amiga está passando por um momento difícil. Vou lá dar uma força para ela.

Vitor diz, mal-humorado:

— Essa sua amiga por acaso é Raissa?

Eu aceno um sim com a cabeça ante seu olhar duro. Meu pai e minha mãe, quando veem que o clima está esquentando, saem da sala de fininho.

— Ela deu uma festa ontem, saiu na coluna social com um sorriso estampado no rosto e agora está passando por um momento difícil? E você precisa parar sua vida e sair correndo para socorrê-la?

Deus! Ele nunca falou comigo assim antes. Será que ele está se sentindo ameaçado pela volta de Hassan? Só pode ser isso!

Eu respiro fundo.

— Vitor, eu não esperava sua compreensão.

— Karina, você percebeu que desde que você conheceu essa sua amiga, você quase não sai da casa dela? — ele diz, irado.

Incomodada com o tom dele, explico a situação com má vontade:

— Vitor, Raissa é muito sozinha. Eles falam tanto em família, mas nunca vi família mais desunida. Cada um para o seu lado. A mãe de Raissa é uma mulher fútil, e o pai, que era mais carinhoso e lhe dava atenção, morreu há um ano de câncer. O irmão dela é outro que vive viajando e não consegue dar atenção a ela. Ela conta comigo para conversar e desabafar.

Vitor se levanta.

— Tudo bem, Karina. Vai lá servir de babá para essa garota, que para mim é mimada — ele segura os cabelos com ira. — Deus! Não sei por que ainda insisto em sair com você.

Ele está visivelmente abalado.

— Vitor… — digo, e vou até ele, toco sua mão em um gesto afetuoso. — Eu já te disse isso. Você precisa conhecer gente nova. Namorar, sair mais. Não depender tanto de mim para sair.

Vitor me olha ofegante.

— Karina, você pensa que eu já não tentei? Mas, quando me vejo, estou aqui, mendigando a sua atenção. Mas deixa para lá. Bem, vou indo.

Ele se vira e sai da sala com passadas largas. Passa pela minha mãe sem se despedir, como um furacão.

— Vocês brigaram?

— Não sei… acho que sim.

— Você o dispensou para ir à casa de Raissa?

— Sim — digo, enfrentando o olhar de desaprovação dela.

— Deus! Karina, como pode fazer isso com o rapaz?

— Mãe, eu não vou lá para passear. Ela me ligou chorando. Está passando por algum problema.

— Eu nem vou tentar entender. Eu não sei o que você viu nessa menina mimada.

— Mamãe, você está muito enganada. Raissa não tem nada de mimada. Ela é apenas uma menina rica, triste e solitária. Ela é cercada por riquezas e futilidades, mas não tem carinho e nem amor da família.

Audrey se emociona.

— Ai, então vai! Você quase me levou às lágrimas agora.

Eu lhe dou um sorriso e a abraço.

— Mamãe, ela tem tudo, mas não tem a família maravilhosa que eu tenho.

Eu a abraço e deposito um beijo em seu rosto. Minha mãe me olha, agora as lágrimas estão a ponto de cair de seus olhos. 

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