Capítulo 1

MELISSA

O quarto está imerso em breu, mas levantando-me da cama consigo enxergar a enorme janela coberta pela persiana e alguns tímidos raios de sol se precipitando dentre as minúsculas frestas. Alcanço a janela mal conseguindo respirar. Meu coração saltando no peito. Com as mãos trêmulas, consigo abrir a persiana, só o bastante para o sol de início de verão banhar o espaço à sua frente. Enfim reconheço o lugar, apesar de achar que estava perdida em algum iglu no Alasca devido ao frio congelante, estou no quarto de Rick. Estou a salvo em seu apartamento em frente à praia de Copacabana.

Ele começa a se mexer na cama e a cobrir os olhos, o sol parece estar o incomodando. É atordoante observá-lo dormir, sempre tão agitado e inquieto em seu sono. Volto-me para a janela e deixo que o ar fresco da manhã exerça seu efeito calmante sobre mim, porém, hoje nem a brisa do mar que entra pelo quarto faz meu coração suavizar.

Fico bem na ponta dos pés colocando a cabeça para fora da janela, fecho os olhos e deixo com que a lufada de ar faça meus cabelos se alvoroçarem ao redor do meu rosto. Inspiro profundamente algumas vezes, até sentir meus pulmões bastante oxigenados. Quando começo a sentir que o tremor em meu interior está quase controlado, sinto duas mãos firmes em minha cintura puxando-me para trás com rispidez.

- O que você pensa que está fazendo? – Pergunta Rick extremamente assustado.

- Estava só pegando um arzinho. – Eu respondo um pouco desorientada e ofegante.

- Melissa, você estava com metade do corpo para fora da minha janela para pegar um arzinho? Você ficou louca? – Ele me questiona, visivelmente preocupado e aturdido, talvez pelo fato de acordar e dar de cara com a namorada quase se jogando pela janela do seu quarto no décimo andar.

- Eu tive um pesadelo terrível. Não conseguia me acalmar e você sabe que a brisa do mar é o melhor calmante para pesadelos. – Tento me explicar.

- Pensei que meu abraço fosse o melhor calmante que existisse pra você, em qualquer ocasião. – Sua voz fica carregada com uma pontinha de tristeza.

- Desculpe, não quis te acordar.

Foi então que ele me abraçou forte e amparou meu corpo no dele. Descansei minha cabeça em seu ombro, pensando em como parecia errado não conseguir relaxar com seus braços ao meu redor, as mãos familiares acariciando minhas costas, com todo o seu amor por mim. Mas tremor ainda estava presente. Nunca havia tido um sonho ou pesadelo tão real na vida, na verdade ainda estou tentando decidir se foi ou não real.

- Com o que você sonhou que te deixou desse jeito? – Ele me pergunta, se afastando um pouco para olhar nos meus olhos.

- Não posso te contar.

- Como assim não pode? Por quê?

- Minha mãe costuma dizer que faz mal contar pesadelos antes do café da manhã. – Após dizer isso em voz alta eu soube exatamente o que viria em seguida. Ele riu, é claro.

- Como pode fazer mal, meu amor? Isso é mito. - Ele até tenta se controlar, mas não resiste.

- Não, não é mito. O pesadelo se realiza. Eu não posso correr o risco, foi assustador demais, real demais. – As lágrimas descem pelo meu rosto e as lembranças do pesadelo enchem minha mente, o choro incessante do bebê desconhecido ressoando em meus ouvidos e eu sem conseguir chegar até ele.

- Calma, está tudo bem. Não vai acontecer nada de mal com você, eu estou aqui pra te proteger, ok? – Ele volta a me prender em seu abraço sufocante. – Vamos tomar café? Aí você vai poder me contar porque esse pesadelo quase a fez se jogar pela minha janela. – Ele me dá um sorriso encorajador e segura minha mão, me guiando até a cozinha.

Sento-me no banco alto de frente para a bancada de mármore da cozinha enquanto ele prepara um café para nós dois. Desesperada por ocupar minha mente, tento direcionar meus pensamentos para algo seguro, como o tamanho descomunal desse apartamento. Rick mora em uma cobertura grande demais para dividir apenas com os pais. Bem, tecnicamente a empregada também mora aqui, mas ela passa o seu tempo livre quase integralmente no quartinho dos fundos. Acho que caberiam confortavelmente umas três famílias neste lugar. Para mim, é uma casa fria, móveis chiques em cores pastel e o espaço parece sempre muito... vazio.

Minha casa na Tijuca é bem menor e aconchegante. Meu lar, com minha mãe, padrasto e irmão, o lugar onde me sinto inteira e onde eu desejava estar agora. Quando sento nesta cozinha, sempre fico meio perdida, nunca preciso fazer nada, a empregada está sempre à disposição para me servir, muito bem vestida com seu avental imaculadamente branco. Até essa manhã eu achava que o Rick não sabia nem ligar a cafeteira. Pelo visto eu estava enganada.

- O café ficará pronto em alguns minutos. – diz ele, orgulhoso de si mesmo. - O que você quer comer? – Ele pergunta, mas em seu rosto posso notar o pedido silencioso “por favor, algo fácil de se preparar, por favor”.

- Torradas seria bom. – Eu me apresso em facilitar as coisas e um sorriso o ilumina.

Rick se vira para pegar os pães e colocá-los na torradeira e eu volto para o meu devaneio, sempre fugindo do som que permanece à espreita. Acompanho os movimentos dele com os olhos, é visível como ele não se encaixa nessa posição, cozinhando para alguém. Sua austera superioridade paira sobre o cômodo. Começo a recordar como nos conhecemos, o início do nosso relacionamento conturbado e tudo o que atravessamos até aqui.

 Nós frequentávamos a mesma escola no ensino médio, ele sempre foi um rapaz bonito, alto, ombros largos e moreno de sol. Os cabelos claros sempre cortados bem baixinho. Seus olhos cor de mel eram dois pontos doces em uma face rígida e confiante.

Rick fazia o maior sucesso com as meninas de todas as turmas, eu inclusive o achava bastante atraente, apesar de ser muito reservada e não demonstrar nenhum interesse. Não sei se foi a minha indiferença que o atraiu, só sei que desde o primeiro dia de aula ele colou em mim como chiclete.

Ele me pediu em namoro diversas vezes, mas eu sempre me fazia de desentendida e mudava de assunto. Eu não queria nenhum compromisso naquela época, estava totalmente focada nos estudos, tinha planos de carreira, estava pensando em meu futuro como artista plástica, na minha pequena galeria ao lado de um bistrô francês.

Após um ano brincando de gato e rato, não tive mais como escapar. Ao sair do estúdio de ballet onde eu fazia aula todo sábado à tarde, ele estava na porta à minha espera com uma expressão firme no rosto que eu nunca tinha visto antes. Rick segurou meu braço e me beijou de supetão na frente de todas as meninas que saiam do estúdio com seus tutus esvoaçantes. Tamanha foi a minha surpresa que deixei cair as sapatilhas que trazia nas mãos. Depois disso não houve mais nenhum pedido de namoro ou nada parecido, estávamos comprometidos um com o outro, eu simplesmente sabia.

Nossas famílias se davam bem e nosso namoro parecia certo, então não criei objeções. Com ele eu me sentia protegida e amada. Ele quase nunca me deixava sozinha e acho que eu deveria apreciar toda a sua devoção, mas, com apenas 15 anos de idade, meus sentimentos estavam confusos, não sabia dizer se o que eu sentia era paixão, amor ou apenas carinho e amizade. Pode ser que eu não quisesse estar em um relacionamento, mas, já que eu estava, precisava tentar retribuir a atenção que ele me dedicava.

Eu sempre fui muito tímida, normalmente sentava nos cantos da sala e só conversava com algumas poucas amigas, porém o Rick e sua popularidade me tiraram do meu mundinho. Nós fomos o assunto da nossa pequena escola durante semanas, as garotas me olhavam torto, na certa procurando entender por que ele tinha me escolhido. Os garotos, bem, eles nem ousavam me olhar, já que Rick sempre parecia ameaçador ao meu lado.

Os anos foram se passando e eu acabei me acostumando a tê-lo pairando sobre mim. No começo nós dificilmente brigávamos, eu fazia de tudo para contornar as suas crises de ciúmes infundadas e para manter a paz, mas quando o controle dele começava a me sufocar e eu ameaçava pôr um fim na nossa relação, tudo mudava da água pro vinho, como o sol que aparece após a tempestade.

Quando Rick completou 18 anos, teve de se alistar no exército, como todo rapaz brasileiro. O seu avô, General Henrique Borges, quis que seu neto herdasse dele mais que o nome, queria que ele seguisse carreira no exército e honrasse o conhecido nome para as futuras gerações. Rick nunca gostou realmente de estar no exército, mas sabia que só tinha a ganhar agradando o avô, já que seu pai tinha sido renegado por não ter sido apto a servir à pátria.

O pai do Rick era uma pessoa boa, mesmo tendo sido humilhado a vida toda pelo General Borges. Ele se dedicou aos estudos como ninguém e abriu a sua própria empresa aos vinte e oito anos, a Borges Guiando LTDA, que cuidava de transportes de qualquer tipo de carga ou correspondência. Coincidentemente meu padrasto trabalhava na empresa dele como supervisor de automóveis. Uma semana após Rick anunciar nosso namoro para a família, meu padrasto foi promovido à Gerente Geral da filial mais importante da Borges Guiando LTDA, na Zona Sul, ganhando quatro vezes mais o valor de seu salário como supervisor. Uma coincidência grande demais para ser verdade.

Mesmo contra sua vontade, Rick permaneceu prestando seus serviços ao país por quatro anos. No começo eu me preocupava bastante, afinal ele era levado em alta conta nos treinamentos de guerra por causa de seu sobrenome. Além disso, ele ficou baseado em Manaus durante dois desses quatro anos em que esteve servindo ao exército, o que é uma distância razoável do Rio de Janeiro, minha querida cidade maravilhosa de onde eu nunca saí.

Apesar da distância e do pouco tempo que passávamos juntos nesse período, nosso relacionamento sobreviveu aos trancos e barrancos. Graças aos ótimos recursos digitais existentes nós podíamos nos comunicar algumas poucas vezes durante a semana, mas eu sabia que ele não estava contente, pois ficar sem notícias minhas o deixava transtornado. Foi uma grande surpresa pra mim quando ele chegou numa quarta-feira à tarde lá em casa dizendo que tinha voltado pra ficar comigo e que nunca mais iríamos nos separar.

Eram duas notícias sendo dadas de uma vez só, uma boa e uma má. Ele voltou porque me ama e acredita no nosso relacionamento. E eu não terei mais um minuto de liberdade. Precisei de uns minutos para administrar o que estava acontecendo e abrir um enorme sorriso, recebendo-o de braços abertos. Afinal, o que mais eu podia fazer? São anos juntos, e no fundo eu o amo, não amo?

Por um lado, é bom saber que ele voltou por mim, mas o nosso relacionamento já não é mais o mesmo de seis anos atrás. Muitas coisas que eu tentava levar numa boa antigamente, agora eu não aceito tão bem assim. Nosso namoro anda na corda bamba, mas é claro que ele não admite isso de maneira alguma.

Eu estou cansada das caras feias e do ciúme excessivo só por eu cruzar com um conhecido na rua. Se qualquer homem desconhecido chega perto demais de mim, ele praticamente explode e ficava agressivo. Com a proximidade dele estamos brigando mais e eu estou cada dia mais sem vontade de procurar reconciliação depois das nossas discussões.

A verdade é que esses dois anos que ele esteve lá e cá tornaram nosso relacionamento tolerável, mas agora que está aqui em tempo integral eu me sinto extremamente sufocada e não sei o que fazer.

- Ei, em que mundo você está? – Ele pergunta, agitando as mãos em frente aos meus olhos.

- Desculpe, só relembrando algumas memórias mais seguras do que “o pesadelo”.

- Ok, então. – Sorri como se me chamasse de boba – Suas torradas e seu café. Agora me conte esse tal pesadelo aterrorizante.

Eu resumo rapidamente tudo que se passou no sonho, ainda vívido em minha mente. Ao terminar não consigo mais segurar toda a tensão contida e meu corpo recomeça a chacoalhar, o café frio respingando da caneca na camisola que eu ainda estou vestindo. Ele tira a caneca das minhas mãos e a deposita na bancada.

- Então foi isso? Você estava perdida no meio do mato e começou a ouvir um bebê chorando. Só? – Pergunta com as sobrancelhas arqueadas.

- Como assim, só? Foi desesperador ouvir aquele bebezinho precisando de socorro e eu sem conseguia ajudar. Foi terrível. – As lágrimas voltam a jorrar de meus olhos.

- Amor, não tem nada de tão assustador assim nesse sonho. – Ele diz, como se achasse minha reação exagerada. – Pensei que tinham alguns extraterrestres dominando a Terra ou zumbis comedores de cérebro. – Começa a me fazer cócegas, sabendo o quanto eu odeio quando faz isso.

- Isso não tem graça, Rick! Sério, pode parar com isso, foi realmente assustador pra mim. Parece que... que... significou alguma coisa. Quase como um presságio. – Só me dou conta disso depois de pronunciar as palavras e é exatamente isso que parece, um presságio.

- Esse negócio de presságio não existe, não há como sabermos o futuro, esse negócio de previsão é furada. Você não pode acreditar desse jeito em um sonho bobo. – Ele responde imediatamente, me reprovando como se fosse um professor exemplar e eu uma aluna levada que acabou de errar a tabuada.

Me recordo de um vídeo que assisti no You Tube um dia desses. Falava exatamente disso, homens fazendo mulheres se sentirem burras e idiotas. São chamados de Mansplaining, eu acho... Afasto esse pensamento para não me aborrecer com ele ainda mais.

- Você não entende. Era como um filho gritando por uma mãe. Eu tinha que salvá-lo, mas não pude, não fui capaz. Isso é tão frustrante. Mas você nunca entenderia, talvez fosse por isso que eu não queria te contar afinal. – Eu digo, deixando transparecer toda a minha mágoa.

- Eu entendo sim, só que vocês mulheres tem essa coisa com crianças e ficam sensibilizadas demais. Você só precisa relaxar, tente esquecer. Não. Significa. Nada. Foi só um sonho tirado do fundo do seu subconsciente. Isso nunca vai acontecer, ok? – Ele tenta me convencer, sem sucesso.

- Tudo bem. – Eu respondo secamente, ainda um pouco chocada com a insensibilidade do meu namorado.

- Vamos voltar pra cama, ainda é muito cedo. – Diz, bocejando.

- Não, eu não quero dormir. Não quero fechar os olhos de novo. – Eu continuo olhando fixamente para frente com os olhos marejados.

- E quem disse que precisamos dormir? Eu ficaria acordado com prazer com você do meu lado. – Ele diz, se aproximando de mim com aquele jeito sexy. – Meus pais só voltam amanhã do congresso da transportadora, que eu não fui só pra ficar com você. Temos a casa toda só pra nós. – Ele abre um sorriso largo e malicioso.

- Hum, não vai rolar. Preciso ir pra casa. Agora. – Eu me esquivo e levanto do banco dirigindo-me ao quarto para me trocar.

- Como assim ir embora? Você ouviu o que eu disse? A CASA TODA SÓ PARA NÓS DOIS. – Ele me seguia como uma sombra. Quando me viro ele está parado na porta do quarto me olhando incrédulo.

- Eu não posso ficar, Rick, não hoje. Tenho que me dedicar à minha monografia. Em duas semanas eu tenho que apresentá-la a uma banca super rígida e tudo precisa estar perfeito. – Eu lanço novamente a minha mais recente desculpa para fugir dele.

- Ah não, Melissa, lá vem você com essa história de monografia de novo. Ela já está pronta a mais de um mês, tenho certeza de que isso é só desculpa. Na semana passada foi a mesma coisa para não ir ao cinema comigo. O que mais você precisa consertar agora? – Ele se aproxima de mim indignado.

- Rick, você sabe como isso é importante pra mim, a minha monografia deve ficar impecável! Se a minha nota não for no mínimo excelente eu nunca vou conseguir a minha bolsa de intercâmbio pra estudar na França.

- Eu não quero mesmo que você vá. – Ele fala baixinho entre os dentes.

- Eu ouvi isso. É muito insensível da sua parte. Eu sempre estive do seu lado, te apoiei em todas as suas decisões, você passou dois anos longe de mim e mesmo lá de Manaus você só queria me controlar, como sempre. Mal nos falávamos como dois namorados normais e agora você quer me impedir de realizar o meu sonho? – Eu o confronto enquanto lido com minhas roupas. Agora a raiva começa a tomar conta de mim de verdade. Só quando chego ao banheiro para escovar os dentes vejo no espelho que pus a blusa do lado avesso.

- Eu sei que o tempo que passei no exército afetou muito o nosso relacionamento, mas eu te amo, Mel, foi por você que eu voltei. Quero recuperar o tempo perdido. Quero passar o maior tempo que eu puder ao seu lado. Eu prometi que nunca mais iríamos nos separar. Minha pra sempre, lembra?

- Lembro, Rick, mas acho que essa promessa foi um erro, você não tem o direito de me pedir para desistir do meu sonho. – Pego minha bolsa e me apresso em direção à porta. Dá pra ver claramente que ele está tentando controlar a raiva, os punhos fechados e os braços apertados ao lado do corpo.

- Eu não estou te pedindo isso, mas eu mal voltei pra você e já vamos nos afastar de novo? Eu preciso de você comig... – Eu abro a porta. – Mel, espera, você venceu, eu te levo pra casa.

- Não precisa, eu pego um taxi. – Bato a porta bruscamente.

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