Capítulo 08 - Compasso

AS PREPARAÇÕES PARA A CERIMÔNIA DE PASSAGEM SORETRAT iniciam logo cedo, foi assim também no Rito de Passagem de Bawarrod, eu apenas me esqueci desse detalhe e de que Danielle estaria na antessala do castelo esperando pela condução de Soretrat, vestindo uma armadura UV, antes mesmo do sol se por.

Costumo voltar para casa entre quatro e cinco horas, para não correr o risco de que me vejam e como já estou bem longe das vistas de qualquer um, não preciso mais de uma ilusão visual para esconder quem sou. Abro a porta do castelo e tomo um susto que me deixa simplesmente congelado. Danielle está em pé, segurando o capacete e precisa estreitar os olhos por causa da luminosidade, mas é notório que ela me reconhece de imediato, embora eu esteja semi-disfarçado, usando óculos escuros, touca e roupas que furtei para me misturar melhor na multidão.

Há um quadrado de luz do sol alaranjado no chão que ilumina até os joelhos de Danielle. Sorte que ela está de armadura, ou seria uma ferida feia. Minha sombra se projeta dentro do quadrado da porta, não tem nem o que fazer, o que negar ou o que dizer. Ela me viu chegar da rua, em pleno dia, sem uma armadura UV. Preciso mexer em suas memórias, por mais relutante que eu seja a essa ideia.

É falta de respeito usar seus poderes em outros vampiros para benefício próprio e especialmente as memórias, os pensamentos, são campos bem densos nesse aspecto. Eu tenho a moral duvidosa, mas nesse aspecto, não costumo interferir.

— Querida? Onde você está? — A voz de Dorian soa perto, mas ele ainda não entrou na antessala e não pode nos ver. Talvez tenha sido atraído pelo barulho da porta abrindo, a fechadura destrancando. — Está saindo?

Ai, droga, estou ferrado!

— Querido por favor vá buscar aquele relicário com fotos de nós dois e das meninas? — De capacete, Danielle se adianta, me puxando pelo braço para dentro da antessala, arrancando os óculos que estou usando e a touca que cobre meus cabelos. A porta bate com um chute que ela dá. — Quero usá-lo durante a cerimônia.

— Claro, um momento. — Dorian avisa e escutamos seus passos se distanciando.

Exalo ar e encaro minha irmã com surpresa, ela joga a touca e o óculos para dentro de uma jarra azul de porcelana que serve apenas de decoração. Não esperava que ela fosse me acobertar. Ela aperta um botão, tirando o capacete e me encara com seus olhos lilases, os cabelos castanhos escuros e ondulados caem por cima dos ombros da armadura preta.

— Eu sinto muito. — É tudo o que consigo dizer, talvez eu me sinta culpado por ela precisar mentir para o marido por mim.

— Não preciso dos poderes de Bawarrod para perceber seu espírito aventureiro e o desejo que tem por outra vida. — Danielle olha bem para mim e segura no meu rosto com as duas mãos, coberta por uma luva UV. — Te amo, meu irmão. Muito. E tudo que mais desejo é sua felicidade e proteção.

— Eu sei. — Pisco algumas vezes sem entender suas palavras, mas um pouco em choque por ela estar chorando.

— Preciso de explicações. Como você... O que está...?

—  Danielle, você sabe que estou em Renúncia e meu coração ainda é humano.

—  E pelo que Henri, o médico da família e meu cunhado me disse, isso deve deixa-lo mais fraco á luz solar e pelo que vi, você é imune. Milan, o que você fez? Isso representa algum perigo para nós?

—  Talvez... É melhor você não envolver-se. Quanto menos souber, melhor.

—  Não existe essa possibilidade, é meu irmão. Desembucha agora, ou eu terei que tomar providências. —  Seu olhar é firme, sua voz, não hesita, mesmo que haja lágrimas vermelhas nos cantos de seus olhos.

— Estou convencido que não sou Sirena. — Digo de uma vez, em um só fôlego, antes que eu me arrependa. — Ou Bawarrod.

Danielle toma um baita susto, segurando o ar nos pulmões. Acho que é muito para ela processar e eu já me arrependo de ter dito alguma coisa.

— Não sei ao certo porque você acha isso, mas estou do seu lado, Milan. Vou te ajudar. — Se compromete. — Mas, por favor, não duvide nem por um segundo que você é nosso irmão. — Seus olhos alcançam os meus, e é como se ela pudesse olhar dentro da minha alma e ler todas as inseguranças que existem lá. — Você é.

Eu pisco e comprimo os lábios, com vontade de chorar. Lágrimas escorrem dos meus olhos e Danielle me abraça forte.

— O que está havendo? — Dorian aparece na porta e estranha.

Danielle me solta na hora e eu limpo rapidamente as lágrimas, embora todos eles saibam que por estar em renúncia, choro água e não sangue como os vampiros fazem.

— Ai, amor! — Danielle vira-se para Dorian. — Estou tão nervosa, Milan estava me ajudando. Sou tão feliz por ter pessoas como vocês do meu lado!

— Ajudando? — Dorian olha para mim, desconfiado.

— Ela queria saber como é a cerimônia. — Engulo em seco. Ter que mentir para meu tio é difícil, mas seria pior se fosse meu pai.

— Querida, você podia ter me perguntado! Já passei por essa cerimônia, não precisava acordar Zane, ele deve estar exausto. — Ele diz me encarando. Acho que ele pensou que minhas roupas são um pijama. Ele estende para ela uma corrente com um pingente. — Aqui está o seu relicário.

— Bem, vou me deitar então, se está tudo bem. Nos vemos após a cerimônia, minha irmã. Tio, com licença. — E atravesso a antessala saindo.

Caminho apressado, deixando Danielle e Dorian para trás e chego até meu quarto. Abro a porta e entro, mas ao invés de ir para o banheiro tomar banho como faço todos os dias, me jogo por cima do colchão entre Lucretia e Lennon, colocando os braços cruzados por cima dos meus olhos.

— Eu sou tão idiota!

— Zane? — Lucretia dá um pinote, acordando. Ela segura nos meus braços, tirando-os de cima do meu rosto. Posso ver que está nua, por dentro do lençol de cetim, uma visão agradável.

— O que houve? — Lennon apoia a cabeça na mão, o cotovelo no colchão e vira-se para mim, sua mão enlaça o meu corpo, invadindo por dentro da camiseta laranja que estou usando, deslizando quente pela minha barriga.

— Danielle me viu chegando em casa e eu contei tudo a ela. Sobre Sirena e Bawarrod.

— Quê? — Lennon e Lucretia têm a mesma reação, boquiabertos e estáticos, como se não pudessem acreditar que eu tenha sido tão estúpido.

— Depois de tudo o que conversamos, Zane? — Lucretia arfa, revirando os olhos.

— Combinamos de investigar em segredo. — Lennon me lembra, se debruçando sobre mim.

— Foi um momento de desespero, as palavras escaparam, me desculpem! — Suplico, alternando o olhar de um para o outo, sentindo-me como a pior pessoa do mundo. Seguro com uma mão no rosto de Lucretia e a outra repouso nas costas de Lennon. — Ela estava na antessala quando cheguei, esqueci totalmente da Cerimônia hoje.

— Podemos confiar nela? — Lucretia pergunta.

— Talvez, eu simplesmente joguei nela as informações, não deu tempo de explicar… Foi bem confuso.

— Escute. — Lennon segura no meu rosto e faz eu olhar para ele, seus olhos escuros e intensos me prendem. — Ela quer o seu bem. É uma mulher íntegra, fará o que pode para te ajudar.

— Tem razão. — Exalo ar. — Ela não arriscaria contar à alguém. Podemos confiar nela.

— Daremos um voto de confiança a ela, mas você precisa ter mais cuidado, Zane. — Lucretia ergue minha camiseta, beijando minha barriga e descendo devagar.

— Eu sei. Ei, espere... — Tento segurá-la, puxando-a para cima, mas não acho que Lucretia está me dando uma escolha aqui e como a garota mimada que é, consegue sempre o que quer. Lennon se encarrega de me empurrar e me manter deitado no colchão.

— Você é um menino levado. — Ela sussurra, abrindo o botão da calça jeans. — O que vou fazer com você?  — Descendo o zíper, Lucretia me procura com a língua úmida.

— Uhm. — Meu corpo inteiro reage ao seu toque quente e preciso.

— Shhh. Não diga mais nada. — Lennon desliza o polegar pelos meus lábios de forma sensual e me beija, mordiscando minha boca.

Lucretia crava os dentes em mim, dou um gemido de dor e de prazer ao mesmo tempo, preciso fincar as unhas nas costas de Lennon até sangrar para dividir um pouco da dor. Os dentes de Lucretia são afiados e ela nunca alivia a força da mandíbula, mas meu corpo rapidamente recebe o choque do prazer que a mordida de um vampiro causa.

Em resposta, Lennon me segura mais firme e morde minha boca, enchendo a língua com o gosto do meu sangue, ele empurra o meu rosto para o lado e morde o meu pescoço com vontade. Seus dedos dentro da minha boca me impedem de gritar e o entorpecer de sua mordida arranca de mim qualquer disposição para reagir.

Qualquer que seja o problema, pode esperar alguns minutos.

●●●

Lennon enfia a língua quente e úmida na minha orelha, segurando forte meus cabelos castanhos na nuca.

— Pare com isso, não me responsabilizo pelas reações de Devon quando tem alguém em cima de mim. — Aviso, mordendo a boca, eu não quero realmente que ele pare.

Lennon ri e balança a cabeça, ele solta a manta de lã sobre meus ombros e se debruça na sacada, olhando para baixo, no jardim, Devon está tentando ensinar Dean a melhorar sua tacada de basebol e Gavril impaciente, espera com a bola na mão, pronto para arremessar.

— Acha que Dean é o favorito do seu pai?

— Não! Eu sou.

— Eu não sei, Zane, talvez você tenha uma concorrência à altura ali. — Lucretia, ao meu lado, debocha enquanto come um camafeu que solicitou aos empregados. Perdemos a hora do café na sala de jantar. — Sempre achei que pais fossem demonstrar um sentimento diferente entre filhos adotivos e filhos legítimos, mas fica claro que Devon não tratou Derek ou Gavril diferente de você, mas Dean…

— Ele é o mais novo, por isso. — Resfolego e apoio os braços na bancada, observando Devon rir divertindo-se com os dois filhos.

Eles estão fazendo um quarto de campo, só de treino, e Devon está ensinando aos dois. Acho que Devon se vê em Dean, ambos adoram esportes e possuem muito em comum. É fato que Dean se parece muito com Devon, fisicamente, inclusive o cabelo bem claro, tia Izobel já falou que Devon era bem loirinho quando moleque.

Devon se abaixa atrás de Dean, na posição de aparador de bola e dá o sinal para Gavril arremessar. Muito sério, Gavril analisa a curva da bola, o vento e ajeita o boné. Ele arremessa com força e com precisão, fico até achando que a bola vai acertar bem o nariz de Dean, mas com um giro do bastão Dean acerta a bola com força e ela voa longe, para o final do campo. Gavril sai correndo atrás da bola, reclamando e Dean começa a correr o quarto de campo para fechar o perímetro. Suas perninhas pequenas parecem querer dar passos maiores do que conseguem e Devon incentiva Dean a não desistir de correr. Ele vai fazendo as bases, e está quase conseguindo a volta completa quando Gavril recupera a bola e volta correndo para impedir.

Dean alcança a última base, mas ao invés de cair no chão e bater a base, ele se joga em cima de Devon abraçando-o. Devon gira ele no ar, orgulhoso e o sorriso de um para o outro é de pura alegria. Devon beija Dean na cabeça, enquanto Gavril fica pulando raivosamente por achar que perdeu.

Eu tenho que colocar as mãos no rosto e me forçar a não chorar. Tudo o que mais quero é que meus irmãos, primos e sobrinhos possam crescer e ter mais dias tranquilos como esse, porém cada vez que penso nisso, o desespero me consome. A tragédia da Guerra é iminente. Uma questão de tempo se eu não puder fazer alguma coisa.

— Tudo bem? — Lucretia olha para mim de forma inquisitiva, é como se ela pudesse ler meus pensamentos agora.

Ela estica a mão para me fazer um carinho, mas me afasto, fugindo.

— Estarei no escritório. — Deixo a sacada, não sem antes testemunhar um olhar de tristeza percorrer de Lucretia para Lennon.

●●●

— Você está linda. — Kaiser elogia Thalise assim que a vê com um vestido todo rendado e cinza nas cores da Cerimônia de Soretrat e com joias com pedras de cristais rosados. Há uma enorme fenda em sua perna e um laçarote na cintura.

— Obrigada, você também está. — Thalise retribui ao sorriso e o reverencia, enquanto os olhos de Kaiser brilham de satisfação e alegria em vê-la. Se Román pudesse ver isso agora, estaria se quebrando.

Estamos vestidos como manda o protocolo, nas cores da cerimônia. A Cerimônia de Passagem é um dos ritos mais importantes da Sociedade dos Vampiros e quando vemos a manifestação quase pura do Deus-Interior. Lembro-me de quando passei por essa cerimônia ao lado de Kaiser e percorro os olhos por ele, cada dobra da roupa no seu corpo, procurando reconhecer se por acaso, Bawarrod ainda está nele e não em mim.

Passo o braço pelos ombros de Lucretia, ela está com uma saia transparente e sexy, mas sinto que o estilista escolheu um traje que mais parece um pijama para mim do que qualquer outra coisa. Como é de praxe, usamos o mesmo estilista e por fazermos parte dos quatro únicos vampiros de sangue Bawarrod de toda a sociedade, chegaremos juntos no Templo de Nether.

Thalise abre um sorriso sedutor e dá o braço com Kaiser, ela vira-se para mim e para Lucretia, sorrindo:

— Você também está um gatinho, meu irmão! — Pisca um olho, repassando elogios. — E Lucretia, sempre elegante.

— Obrigada Thalise, você está estonteante. — Lucretia envia para ela um sorriso mais brilhante que os diamantes em seu colar.

A limusine chega, de lataria preta e lustrosa, com uma estatueta dourada na ponta do capô, com o símbolo do ouro alquímico. Um soldado armado abre a porta e deixo que Kaiser e Thalise sejam os primeiros a sentar. Entro por último, após Lucretia. O interior é de couro vermelho e o veículo bem espaçoso de forma que não preciso ficar muito perto de Kaiser, embora apenas o fato de estar fechado em mesmo local que ele já me desespere o suficiente. Os perfumes se misturam no ar. Kaiser estoura uma garrafa de espumante, Thalise dá uma risada divertindo-se e Lucretia pega as taças.

— Ai, eu nunca estive em uma cerimônia dessas, estou nervosa por Danielle! — Thalise estende a taça.

— Fique tranquila, é um ritual de passagem extremamente tranquilo, o mal-estar que causa é momentâneo. — Kaiser enche a tulipa até a boca.

— Mal-estar? — Thalise abre bem os olhos surpresa e passa a mão no cabelo ruivo, jogando-o por cima do ombro. — Que tipo de mal-estar?

— Fraqueza, desmaios, esse tipo de coisa é comum. — Lucretia estende a taça também, mas olha por cima do ombro para mim. — Não com Zane, ele não desmaiou, mas depois ficou se sentindo febril, certo? — Lucretia me entrega sua taça e pega outra para ela.

Os olhos de Kaiser caem afiados em mim, provavelmente me vendo como um adversário. Talvez eu não tenha desmaiado porque Bawarrod não passou para mim e todos os efeitos que senti tenham sido do banho tóxico.

— Por alguns dias, depois passou. — Respondo e olho para a janela, evitando mais conversas, notando que o espumante está escorrendo pelas mãos de Lucretia.

— Ai, Kaiser! — Ela reclama.

— Sinto muito. — Ele pigarreia.

Um silêncio constrangedor se faz entre todos nós até chegarmos ao nosso destino.

Quando chegamos à entrada do Templo de Nether, abrem a porta da limousine, eu saio primeiro e estendo a mão para Lucretia, depois sai Kaiser e faz o mesmo, para ajudar Thalise, porém, Román que está na porta e parecia justamente nos esperar, se intromete e estende a mão para Thalise primeiro, tomando o lugar de Kaiser.

— Obrigada, meu amor! — Thalise abre um sorriso para Román, não sei feliz em vê-lo se debulhar de ciúmes ou se simplesmente nem percebeu a disputa que esses dois indivíduos fazem sobre ela.

Abstraio olhando para o Templo de Nether. No topo, existe algo semelhante à uma esfera armilar. Nós chamamos de Compasso, uma espécie de relógio e mapa astronômico. É um universo em miniatura de tudo o que os humanos e vampiros podem ver quando olham para o céu a noite. O centro é a Terra, as argolas são as posições dos astros no firmamento. É como o universo funciona. Há um relógio, que marca a hora do planeta com uma precisão incrível, desde os Princípios do Tempo(1).

Os humanos hoje em dia já não fazem mais uso desse mapa celestial. Era, antigamente, usado para navegação e acho engraçado pensar que no passado, ninguém sabia dizer exatamente quando a primeira esferar armilar havia sido criada e que talvez fosse o primeiro século antes de Cristo. Já para os vampiros, bem, esses nunca pararam de utilizá-lo e acreditam — retificando, eles têm certeza — que a primeira vez que uma esfera armilar foi criada e usada, foi por Nether.

Nether é o grande arquiteto do universo, o único com capacidade para manipular o tempo e a vida, então provavelmente esse tenha sido um de seus instrumentos para a criação.

Aprendemos que Nether era um Deus solitário e que criou o universo e povoou os planetas. Não satisfeito, ele andou entre nós, humanos e vampiros, mesclando-se como uma pessoa comum. Como um Deus pode ser comum no meio de sua própria criação, eu me pergunto? Nunca entendi e nem acho que seria possível, mas foi o que aconteceu até que Nether decidiu dividir-se em nove partes. Eles dizem que Nether usou o Compasso para ensinar aos vampiros sobre os Mistérios do Universo.

Estudamos esse tipo de coisa no Colégio da Sociedade dos Vampiros, enquanto temos que usar um uniforme idiota. Sorte dos meus irmãos e sobrinhos que eles estudam no Colégio do Exército agora, o uniforme é melhor. A educação? Não sei. Eu nunca terminei os estudos, para dizer a verdade, o ataque dos alienígenas me arrancou dessa Sociedade e vivi no meio de humanos com suas loucas teorias sobre Deus e os Anjos. Fez muito sentido para mim.

De qualquer forma, não é fantasia. Nether existiu, nós todos somos provas disso e sua ossada está no Templo como prova. Basicamente, quando humanos estudavam na escola sobre os Deuses da Mitologia Grega, Romana, Persa, Egípcia, Bíblica, qualquer coisa… eles estudavam sobre Nether. A diferença é que os vampiros sabem que todas essas manifestações são realmente as Nove Casas e Nether, não trata como história de criança. Para os Vampiros, essa capacidade de imaginar e criar histórias fantásticas é coisa de humanos. Os vampiros acreditam que eles são os detentores da verdade.

Será?

Não posso evitar senão erguer a cabeça e olhar para a esfera armilar no alto do Templo de Nether. Está tudo errado. Nem mesmo os vampiros entenderam exatamente para o que ela funciona. Não é a Terra o centro da esfera. É outra coisa. Mas, ao mesmo tempo…  O que eu sei sobre os mistérios do universo, de qualquer forma?

— Zane? Você ao menos está me escutando? — Lucretia me dá um puxão no braço.

— Quê? — Olho para ela, sem ter noção do que ela estava me dizendo antes, me perdi em pensamentos. — Não, desculpe.

— Que falta de educação deixar a esposa falando sozinha. — Kaiser aproveita a oportunidade para me ofender.

— Não enche o saco. — Arfo e puxo Lucretia, para entrar no Templo de Nether.

O interior do templo foi decorado para receber Soretrat e saudá-la, as bandeiras rosa e prata com o símbolo da borboleta de Soretrat estão em cada arco. No centro do salão é possível ver a poltrona prateada de Soretrat, feita de prata e cravejada de safiras em formato de borboletas.

Despeço-me de Lucretia com um beijo e me aproximo dos demais membros do Conselho. Cumprimento Román com um aperto de mão, Lauralyn com um beijo no rosto e meu pai com uma reverência. Ele beija a minha testa e coloca a mão na minha nuca.

— Estamos esperando Amabile Taseldgar e então iniciaremos. — Devon anuncia sério. — Vá se trocar.

(1) Período que equivale ao Genesis

●●●

Uma liteira prata e rosa atravessa pelo salão trazendo Emily. Ela é uma senhora de cabelos brancos e que se locomove com uma bengala prateada com uma borboleta na ponta, pois suas pernas já são fracas. Dizem que ela está com quase 520 anos, mas ela aparenta uma senhora com noventa. Ela está usando a coroa de Soretrat, parece leve, mas sei como essas coroas podem ser pesadas. O aro principal é largo e prateado, cravejado de safiras, há penas cor-de-rosa compridas que me lembram um cocar de índio e broches de prata e pedras no formato de borboletas nas penas.

Ajudada pelos soldados, Emily sai da liteira usando um vestido colado com um grande decote, cor-de-rosa com bordados prateados por toda a extensão. É extravagante o suficiente para que todo o salão, que deveria ficar em silêncio, cochiche. Emily parece cansada, o ritual para tirar Soretrat do seu sangue faz isso com os vampiros, eles se sentem fracos e ficam mais frágeis. Os soldados ajudam que a senhora se sente na cadeira.

Todos nós nos levantamos, tivemos que, por cima das roupas cinzentas, colocar uma túnica toda prateada, como se nenhum de nós fosse importante hoje, apenas Soretrat. A única indicação de nossas Casas é através das joias. Eu, fantasiado de Bawarrod, claro, com a coroa presa no aro da cabeça.

Cada coroa possui um significado único. Bawarrod por exemplo, é uma coroa com seis espinhos de metais dourados e compridos saindo pela lateral, perto da testa, que simbolizam as luzes do ouro e a propagação mental da consciência. Riezdra, o segundo filho e responsável pelos poderes energéticos utiliza uma tiara dourada com aros transpassados, duas cobras enroscadas e próximos à orelha duas estruturas de cristal como duas asas. Os olhos das serpentes são vermelhos e de rubi. Taseldgard, a terceira filha e representante do inconsciente oculto em todos nós utiliza uma tirada em “v” e na testa um único rubi em forma de rosa, símbolo da casa. Por si só, a rosa já é bastante simbólica, mas fica na testa, pois é onde fica a visão da intuição. Rynbelech, o quarto filho, utiliza uma tiara prateada que me faz pensar em elfos, mas que possui triângulos isóceles em várias posições simbolizando os elementos alquímicos, ligando-os ao símbolo da prata, que é a lua. O quinto filho, Mordecai, usa uma corrente no rosto como uma mordaça de cachorro, com um dente de lobo entre os olhos. Lunysum, o sétimo filho, uma coroa de cristais de magnésio, que para quem não sabe, é simbolizado pelo tridente na alquimia. Zegrath, a nona filha, usa uma coroa de titânio e pérolas ao redor do rosto como um colar suspenso, e, como a morte, não podemos ver o seu rosto por inteiro, um véu preto o cobre.

Marie-Louise, a Sacerdotisa e Princesa da Casa Blonard se posiciona em frente a nós e diante de Emily, usando uma túnica lilás com um véu branco preso a uma tiara dourada grossa e antiquada na cabeça. Ela segura um cetro de cristal e o Livro de Nether, não aquele que fica no prédio do Conselho, uma réplica.

— Eis o Livro de Nether, que nos dá o direito de governar! Nossa espada é força em nosso sangue e sem essa espada não somos nada, não podemos fazer nada e não temos o poder. — Ela toca a capa do livro com o cetro abençoando e para ganhar o direito de conduzir a passagem.

De verdade, não é a Sacerdotisa que realiza, mas o poder que ela pega emprestado de Nether para fazê-lo, teoricamente essa permissão foi concedida na reunião em que decidimos quem seria Soretrat. Uma vez que ela ganha a permissão, ela estende o livro para Emily, que beija a capa.

Blonard vira-se para nós, os membros do Conselho, que estamos de costas para a porta:

— É de acordo com o Conselho que Soretrat será transportada para um novo Receptáculo, jovem e de sangue forte, preparado para o recebimento do Deus Interior?

— Sim, Soretrat possui minha permissão. — O Conselho responde em uníssono. Mantenho minha boca fechada, por sorte, estou de costas para o salão e Blonard não está me vendo agora.

— Tragam o Receptáculo. — Ela estende o cetro para cima, com o livro apoiado no braço.

Escuto os sinos sibilando, sei que são seis vampiras, duas na frente e quatro atrás que escoltam Danielle, ou o que sobrou dela nesse momento. No Ritual de Limpeza eles banham seu corpo com um produto tóxico, é basicamente um veneno, você se sente fraco e cansado, não consegue pensar em exatamente nada.

É possível escutar a comoção das cadeiras se mexendo, as pessoas se levantando para ver Danielle passar e o som dos sinos ressoa pelas paredes de um jeito hipinótico que me ensurdessem. Eu me sinto tonto, de repente. Os sinos representam a propagação da energia, som é vibração. Todo o universo e tudo o que tem nele é vibração.

As primeiras vampiras param na borda, são as que seguram o sino. Depois, Danielle aparece, usando um vestido todo transparente de renda rosa com bordados prateados e uma longa cauda. Em sua cabeça, já está o aro que prende a coroa. Ela se move automaticamente, acompanhando os comandos que as sacerdotisas de Blonard dão.

Duas mulheres param ao seu lado, segurando as adagas de corte, ambas prateadas e com as pontas com borboletas. Parecem adagas normais, mas elas foram forjadas com o Sangue de Nether. São objetos sagrados e cada uma das Nove Casas possui o seu kit, eles ficam guardados em segurança.

Por fim, chegam as duas últimas sacerdotisas, uma segurando um incensário para elevação espiritual e a outra o cálice com o Compasso. A fumaça branca se espalha pelo local, com um cheiro doce capaz de me causar enjoo. Eu me lembro de acampar e queimar marshmallows na fogueira, também me lembro de vomitar depois de comer vários.

— Benquisto e estimado sejas, ó, Receptáculo. — Os membros do Conselho saúdam a chegada de Danielle. Não eu, até esqueci de que eu precisava erguer a mão para elas.

Os vampiros dizem que Nether tem uma consciência única e que ela funciona através do Conselho quando unidos e em transe, eles deixam de ser as Nove Casas e agem como um. Eu deveria estar em transe também, sendo Nether e não Zane nesse momento. Acho engraçado que funciona sem mim. Se eu não sou Bawarrod, quem é então? Queria saber se por um acaso, se eu virasse para trás e olhasse Kaiser, ele estaria acompanhando a cerimônia em meu lugar, se Bawarrod está em seu sangue.

— Seu sangue é dígno de carregar o poder de Soretrat. — A sacerdotisa fala. — Por favor, aproxime-se e ajoelhe-se perante nossa Deusa Soretrat.

Danielle dá alguns passos e se ajoelha diante de Emily. Blonard bate o cetro de leve na cabeça de Danielle, abençoando o Receptáculo. Não dói, na verdade, a gente nem sente nada nessa hora, mesmo se batessem com força, o corpo está todo anestesiado.

— A ti, Receptáculo, confiro poderes de ser o representante de Soretrat, bem como de Nether no mundo impuro dos homens. É teu dever e tua obrigação velar pela justiça e equilíbrio. Que seja responsável pela harmonia do universo e que garanta as aplicações das leis universais às quais serão regentes para que Nether seja sempre presente em cada dia em que viveres. — A voz da Sacerdotisa soa forte e potente, um sussurro dos Membros do Conselho a acompanha, mas eu não sei o texto! Socorro. — Você deve lealdade a Nether e terá um legado abençoado se for digno de tal feito. Que em ti, Nether encontre linhagem de sangue e sua dinastia Soretrat.

Blonard coloca a o livro em frente a Danielle, que o beija na capa também.

— Que em ti, Nether encontre linhagem de sangue e sua dinastia Soretrat. — O Conselho repete. Eu mordo a boca. — Erga suas mãos. — A sacerdotisa ordena.

Com as palmas para cima, Danielle obedece. As duas sacerdotisas que seguram as adagas se aproximam e pegam suas mãos ao mesmo tempo, fazendo um corte profundo. Com o sangue pingando, elas colocam as adagas nas mãos de Emily e fazem a mesma coisa. Com dificuldade, Emily se levanta, as sacerdotisas precisam ajudá-la e finalmente ela dá as mãos para Danielle.

É como se uma linha imaginária de pura energia se partisse no universo. Meu coração dói e me sinto estranhamente fraco, mas disfarço bem. Emily cai para trás e as sacerdotisas seguram-na desmaiada. Danielle coloca as duas mãos no ventre como se sentisse dor e cai para frente, apoiando as mãos no chão.

Dorian sai de seu lugar na plateia e tenta se aproximar, mas as sacerdotisas que estão na frente do palco não deixam e sussurra que está tudo bem, ele troca olhares comigo, percebendo-me consciente, viroo rosto e disfarço.

As outras sacerdotisas lá em cima erguem Danielle, enquanto Blonard tira a coroa de Soretrat de Emily e coloca na cabeça de Danielle. Emily é carregada por soldados para fora do palco, a colocam em uma poltrona na lateral e há um corpo médico preparado para atendê-la com sangue. O mesmo aconteceu com Kaiser, se bem me lembro, quando disseram que ele havia sentido os efeitos da ausência. Os Deuses-Interiores sugam sua energia e depois, você fica tão fraco sem o poder deles no seu sangue que pode chegar a morrer!

— Você é agora Soretrat, Sexta Filha de Nether! — Blonard grita em voz alta. — Levante-se e tome o trono que é de seu direito!

Danielle fica em pé, seus olhos lilases agora possuem uma amabilidade ainda maior do que a que eu conheço, é um choque notar tão nitidamente o poder de Soretrat e a consciência da Deusa-Interior nela. Soretrat passeia os olhos pela sala como se quisesse conhecer a todos os presentes. As pessoas se levantam enquanto os sinos soam freneticamente. Danielle é guiada até o trono de Soretrat, onde ela agora, pode se sentar.

— Nós vos saudamos, Soretrat! — Blonard vira-se para a plateia e ergue o cetro.

— Nós vos saudamos, Soretrat! — O Conselho repete.

— Nós vos saudamos, Soretrat! — A assembleia de vampiros também.

A cerimônia se encerra com uma música e Danielle, agora Soretrat, mostra um sorriso de satisfação sentada na poltrona. Nós podemos cumprimentá-la agora e sou o primeiro a fazê-lo. Entregam-me um ramalhete de flores cor-de-rosa, as favoritas de Soretrat, e paro diante da Deusa, sorrio e jogo as flores em seus pés, ela segura em meu rosto e beija minha testa.

— Eu tenho um presente para você, minha irmã. — Digo, segurando em suas mãos.

Ela olha nos meus olhos curiosa e um panapaná multicores voa por detrás da cadeira e todos os vampiros presentes soltam um “oh”, maravilhados.

— Obrigada, Bawarrod. — Soretrat diz.

Eu me afasto e Soretrat recebe os cumprimentos dos demais membros do Conselho, mas é Soretrat que beija a cabeça de todos, eles chamam de Beijo da Ninfa, dizem que quando Soretrat beija sua testa assim, coisas boas são trazidas à você. Não sei se acredito nisso.

Tiro a túnica, me livro do aro de Bawarrod com certa pressa e me aproximo de Lucretia na borda do palco, ela ainda segura as flores cor-de-rosa com o braço e eu pego o ramalhete dela para ajudá-la. A fila para saudar Soretrat é grande, decido acompanhá-la para que possamos ir juntos para o salão.

— Você está fazendo isso, cretino? — Ela pergunta sorrindo e segura uma borboleta de asas vermelhas que voou entre nós na mão.

— É só uma ilusão, cretina. — Digo baixinho, revelando o segredo, mas ela faz uma expressão estranha, como quem toma um susto e não sabe exatamente de onde veio.

— Não é, não. — Lucretia abre a mão e a borboleta está esmagada e morta.

— Compraram borboletas, era só o que faltava! — Escuto uma mulher troncuda da Casa Lunysum resmungar.

O que eu fiz?

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