Capítulo 04 - Shh. Guarde segredos!

MIL DUZENTOS E CINQUENTA E TRÊS, MIL DUZENTOS e cinquenta e quatro, mil duzentos e cinquenta e cinco...

— Zane! — A porta abre com um estrondo ensurdecedor e paro de contar os segundos. — Ótima notícia para te alegrar irmãozinho!

Com os cotovelos apoiados na mesa por cima de todos os relatórios do Centro de Pesquisa que eu deveria ter lido, mas não li, deslizo as mãos por meu rosto e encaro Thalise, minha irmã mais nova.

Toda vez que verbalizo que tenho três irmãs, sinto-me feliz, mas há um peso de mil toneladas pelas minhas costas. Há dezesseis anos, quando me tornei vampiro e fui coroado Imperador, essas três garotas sidhes apareceram em N-D44 alegando serem minhas irmãs de nascimento. Elas são as Guardiãs de Aesis e estavam procurando pelo quarto Guardião (da água), que, teoricamente, sou eu. Há uma marca em nosso corpo que confirma que somos nós, quando ficamos próximos pela primeira vez, a marca queimou com força na minha pele! Sem dúvida, somos irmãos, é o que dizem... Mas falo abertamente quando digo que tenho minhas dúvidas.

Danielle é a mais velha e tenho poucas memórias sobre ela, já as outras duas, Lauralyn e Thalise, eu não me lembro de nada. Elas ficaram conosco na colônia e as três se tornaram vampiras, foram coroadas princesas e já se casaram. O poder de Aesis fazem com que elas sejam vampiras muito fortes.

Não tenho quase memórias de Valkmaa, a cidade de onde elas vieram, eu era apenas uma criança quando caí do penhasco e fui dado como morto. Na verdade, nem sei como sobrevivi a queda, mas fui adotado e depois, roubado pelo vampiro que hoje chamo de pai e que me criou, Devon Riezdra.

— Terá que ser uma novidade boa mesmo.

Atrás de Thalise é possível ver Danielle e Lauralyn andando pelo corredor, ambas vindo para o escritório. Parecem felizes e a julgar pelo enorme sorriso da minha irmã ruiva, talvez eu realmente me anime. Thalise espera que Danielle e Lauralyn se juntem a nós na sala. Incomoda-me um pouco que não tive tempo de esconder os relatórios e resisto à vontade de virar todas as primeiras páginas de costas, ocultando os conteúdos, ou elas desconfiarão de que tenho algo a esconder.

— Kateus está vindo nos visitar em N-D44! — Thalise abre os dois braços magros, seu sorriso se intensifica. — Ele escreveu dizendo que vem nos visitar. Ai, mal posso esperar, ele deve está morrendo de saudades de nós!

— Finalmente. Ele nunca responde minhas cartas e se não as conhecesse, acharia que Kateus é fruto da imaginação de vocês.

Perdoe meu ceticismo, mas desde que fiquei sabendo que Kateus existe a ideia de ter um irmão mais velho me deixou eufórico e nos primeiros anos enviei muitas cartas, mas ele não se deu ao trabalho de me responder. Nas cartas que envia para Danielle, dificilmente ele dirige alguma frase para mim. Desisti. É como se Kateus não me aceitasse como irmão.

Lauralyn dá uma risada divertida e coloca as mãos na cintura, por cima do seu conjunto executivo de cor vinho.

— Até eu passei a duvidar! — Joga os cabelos castanhos claros e lisos para trás das costas, com um movimento de cabeça.

— No decorrer dos anos sempre que escrevíamos ele dava desculpas: "O povo precisa de mim aqui" ou "estava doente" ou "a viagem até aí ainda é perigosa por causa dos Anjos". — Danielle enumera, fazendo aspas com as mãos. Fico em dúvidas se ela está acusando Kateus ou justificando sua ausência por causa do que eu disse. — Quem vai saber os reais motivos? Kateus é muito reservado.

— Hm. Que tipo de reservas ele possui? — Pergunto. — A família toda é bem excêntrica.

— Kateus sempre demonstrou ser um bom irmão e cuidadoso conosco, mas nunca participou realmente da nossa vida. — Danielle empurra os cabelos castanhos e ondulados para o lado e coloca as mãos na cintura. Seu corpo bem curvilíneo está coberto por um vestido curto e grudado no corpo.

Ao contrário de mim, as três se adaptaram bem à vida de vampiro, a transformação delas foi um sucesso e são as mais fortes. Lauralyn virou uma vampira por Zegrath para se casar com Henri. Danielle escolheu ser vampira pela Casa Soretrat, que é bem feminista e cujas mulheres são valorizadas e possuem podres de proteção como um escudo magnético que protege as fronteiras. E Thalise resistiu em se tornar vampira, mas escolheu ser Bawarrod.

— Não diga isso Danielle, Kateus estava ocupado ajudando nossos pais a encontrar, Milan! — Thalise defende.

Tive que me acostumar com essas três me chamando pelo meu nome de batismo. Eu sei que em algum momento da minha vida eu fui essa criança chamada Milan. Vi em fotos, mas a imagem é tão distante do que eu sou e de como me sinto, que sempre me sinto estranho quando me chamam por esse nome. Já deu para perceber? Tenho um sério problema de identidade. Bawarrod no meu sangue não me ajuda nesse aspecto também, o Deus-Interior que vibra através do sangue percorrendo minhas veias é como uma pessoa diferente vivendo dentro de mim. Talvez eu encontre respostas com a vinda de Kateus. Eu espero.

— Mas nos negligenciou durante quinze anos! — Danielle pontua, buscando a razão. — Não sei o que acham disso, mas afeição é demonstrada com ações e não com palavras.

— Não sei dizer, realmente. Não sou muito bom em demonstrar meus sentimentos também. Deve ser coisa de família. — Forço um sorriso, mas confesso que estou curioso com Kateus, como ele é, quem ele é, se somos parecidos de alguma forma ou não. — O que mais diz a carta?

— Não muito. Kateus está chegando dentro de duas semanas e Logan também virá. — Apesar de responder a mim, Danielle olha para Lauralyn, que imediatamente perde o olhar como se consultasse suas memórias.

Soa como um assunto cheio de espinhos.

— Muito bem, vamos fazer os preparativos para sua chegada. — Mexo nos papeis em cima da mesa, devaneando. — Agora, se me derem licença...

— Claro, Milan! — Danielle puxa Lauralyn pelo braço, mas noto que elas saem deixando Thalise para trás, com um cutucão.

— Posso ajudar você, Thalise? — Junto as mãos em cima da mesa, percebendo que ela morde os lábios com nervosismo, como eu costumo fazer.

— Milan, eu espero que sim. — E sem pedir licença, senta-se na poltrona em frente a minha mesa, soltando um suspiro, colocando a mão na testa. — Eu quero ter filhos.

— Você resolveu se tornar vampira por Bawarrod, na época disse que queria ficar perto de mim, eu mesmo conduzi a sua transformação indo contra meus valores mais profundos... — Sem querer, minha voz soa como uma reprovação.

— Sei. E sou extensamente grata por isso, Milan! Você me deu do seu próprio sangue e por isso sou tão forte, afinal, você carrega o Deus Bawarrod em suas veias.

— Então sabe o que isso significa. Seu marido, Román, é um vampiro de Rynbelech e filhos híbridos não são permitidos pelo Conselho.

— Você é o Imperador, Kaiser disse que você pode tentar reverter isso! — Ela segura com força no braço da poltrona e joga o corpo para frente.

— Você falou com Kaiser?

— Falamos muito, estamos conversando bastante atualmente. Ele é muito gentil comigo.

— Oh, é? Comigo ele não fala nada.

— Mas ele retirou as acusações e não aceitou a coroa.

— O que me faz pensar sobre o que ele está tramando contra mim... — Resfolego.

— Vai falar com os nobres sobre meu desejo?

— Não consigo convencer os nobres a me apoiarem nas estratégias de guerra, nem na criação das pílulas de sangue, quanto mais sobre um tópico tão polêmico quanto você ter um filho híbrido com seu marido, Thalise.

— Pílulas de sangue? Não sei do que se trata... E polêmica por polêmica, você já devia estar acostumado. Mas tudo bem, tudo bem, Milan. — Thalise se levanta e me dá as costas. — Sei que não sou prioridade na sua vida ocupada de Imperador.

— Não faz assim... Eu vou ver o que posso fazer, tá bom?

Thalise deixa o escritório batendo a porta.

●●●

— Lembra quando Dean se afogou na banheira aos três anos e quase morreu? — Pergunto para Román, sentado no sofá do meu lado e fardado. Ele faz que sim com a cabeça, seus cabelos curtos não escondem mais seus olhos bicolores, uma deformidade de nascença e que o colocou em muitos apuros no passado. — Acho que Gavril teve algo a ver com isso.

— Gavril tinha cinco anos quando aconteceu. — Imediatamente, Román nega a hipótese.

Olho para Brenda, que olha para mim de um jeito confidente como se soubesse alguma coisa. Brenda é uma mulher forte e viril, devido a sua verdadeira origem de lobos-metamorfos ela é também muito teimosa e talvez por termos muito em comum, como o fato de termos perdido nossa família, mesmo que de formas diferentes, ficamos muito próximos. Os garotos possuem medo dela normalmente, mas é porque Brenda é realmente muito bonita. Ela se aproxima devagar, pé ante pé, o salto de suas botas explodindo no assoalho, mas o barulho é mínimo se comparado ao zumbido de vozes das pessoas que conversam, dão risada e tudo o mais.

— Certo. Ele tinha. Porém, em vez de ajudar, Gavril estava se divertindo vendo Dean se afogar.

— Você não pode afirmar isso. Ele estava em choque, provavelmente. — Román me dá o olhar do “você está insano”, ele abre bem os olhos e é possível ver todas as diferentes tonalidades entre o olho esquerdo e o direito. Um é branco, como os meus, depois que virei vampiro e o outro, vermelho. — Tenho muitos irmãos e brincávamos de afogar uns aos outros o tempo todo.

Poucos sabem disso, mas sua mãe era uma vampira de Soretrat que se casou com seu pai quando o homem mantinha o Deus Rynbelech em suas veias, porém, ela não conseguiu sustentar gerar um vampiro de sangue puro como esperavam, Román tem uma parte mínima do sangue misturado. Sua mãe tentou mais oito vezes e todos os filhos vieram com deformidades piores, alguns, tão notórios, que foram sacrificados pelo Conselho. Eles realmente possuem pavor de um vampiro que possa unir todos os poderes distribuídos em todas as casas, consideram uma heresia

— Claro que posso afirmar, Román. — Estendo a mão para frente para ele saber do que estou falando. Sei como as pessoas se sentem ao tocar nelas. São poderes de Bawarrod: posso ler pensamentos com o toque, trocar memórias, criar novas, ver antigas, sentir as emoções das pessoas e criar ilusões reais o suficiente para enganá-las. Além disso, eu sou forte, um dos mais fortes vampiros a já existir, mesmo com todas as particularidades sobre mim, como a Renúncia. — Fiquei com Gavril enquanto Henri cuidava de Dean e meus pais gritavam desesperados. Eu sei que o garoto é um sádico.

— Você é sádico. — Román ergue uma sobrancelha. —  Algo na criação de Devon transforma seus filhos em sádicos.

— Não nesse nível! Eu tenho compaixão e até choro quando animais morrem. — Defendo-me. Não tenho vergonha de admitir que me comporto como a sociedade espera de uma garota às vezes. Muitas vezes.

— Ouvi sobre os esquilos e o cavalo. Tenho que concordar com Zane. — Brenda, que já está parada na minha frente segurando uma taça de margarita interfere na conversa, ela simplesmente não consegue fechar a boca quando tem uma opinião e eu admiro isso nela, essa força. — Gavril é sádico! Aquele garoto me assusta profundamente. Outro dia farejei seu cemitério de râmsters.

— Râmsters morrem fácil. Ainda mais nesse frio. — Román a desafia.

— Os dele duram uma semana. Aliás, você sabia que aumentaram a produção no petshop para atendê-lo? Acho estranho! — Brenda dá um gole em seu drink. — Se ele faz maldades com râmsters pode fazer esse tipo de maldade com Dean.

— De qualquer forma foi há anos atrás, esqueçam isso. — Román pisca os dois olhos coloridos várias vezes para se livrar dos pensamentos.

— Eu deixaria para lá, mas hoje cedo Gavril prendeu os dedos de Dean em uma gaveta. Pura maldade. — Pego a taça de vinho de cima da mesa de centro. Olho para Brenda. — Não diga nada para Jay.

— Eu deveria dizer. — Brenda ameaça. — Aproveitando para dizer a ela onde você tem ido todas as manhãs.

— Faça isso e conto a ela de seus encontros na floresta com Évolus Mordecai.

— Não seja estúpido. Ele está me ajudando a encontrar meus irmãos lobo! Mordecai é o Deus-Lobo e ele pode farejá-los.

— Quinze anos de ajuda e isso tem outro nome, minha irmã. — Provoco, sorrindo e piscando um olho.

Brenda estreita os olhos. Ela não dirá nada, nem eu. Temos um acordo.

— Crianças. — Román resfolega. — Por essas e outras que não tenho filhos.

— Você não tem filhos por outros motivos não por isso. — Lanço olhos acusativos para cima de Román.

Estou falando de Nytacha, uma ex-namorada de Román que morreu grávida e assassinada. Ela era humana e havia um filho híbrido em sua barriga, o que é proibido. Eu queria conversar com ele sobre isso, mas se eu verbalizo o nome da ex-namorada, é capaz de Román atirar em mim.

— Você também não quer ter filhos. Lucretia, eu entendo que ela não queira engordar e capaz que contratasse uma barriga de aluguel, mas você adora crianças. Está sempre envolvido com os órfãos da guerra e me lembro de como você curtiu o nascimento de seus irmãos e sobrinhos. O que está acontecendo realmente, Zane?

— Também queria saber. — Brenda joga os olhos azuis em mim duramente, enquanto desliza os dedos por seu cabelo rebelde e loiro-trigo.

Droga! Como posso ser Bawarrod, o mestre das ilusões, se não consigo enganar meus melhores amigos? Estou entre duas pontas de facas agora. Engulo em seco, procurando me manter firme na mentira.

— É uma decisão nossa. — Meu discurso é decorado. — Somos jovens, queremos curtir a vida, filhos podem esperar. — Dou um gole no vinho para não usar palavras demais, ou vou me entregar.

— Realmente, seria bem estressante explicar aos seus filhos porque seus pais namoram uma terceira pessoa. — Román ergue as sobrancelhas e eu conheço esse olhar, foi o mesmo que ele me enviou quando eu disse a ele ao quatorze anos que não tenho preferência de gênero. — Três é um número ímpar, você sabe disso, não sabe?

— Três é um número primo. — Brenda ergue sua taça batendo com a de Román em um brinde.

— Três é o número exato, não sejam carolas. — Reviro os olhos.

— Se puder convencer seu pai disso, talvez você fique em paz. — Román zomba.

— Oh, papai é muito mole com Zane, por isso que ele é assim, sem limites. — Brenda continua.

— Cale a boca, vocês dois. — Arfo.

O que eu sei sobre a minha vida é que nasci entre a Finlândia e a Groelândia, quando fui encontrado por Devon, Príncipe da Casa Riezdra. Morei uma década em Toronto, vivendo na Sociedade dos Vampiros e através de suas regras, ocasião em que conheci Lucretia, Román e muitos nomes. Depois de um ataque a minha família, o Clã Riezdra mudou-se para Chelsea, Manhattan. Três meses no estado de Nova Iorque e descobri que a vida podia ser muito interessante fora da Sociedade dos Vampiros...  Quando os alienígenas atacaram o planeta, eu já tinha certeza que era bissexual.

Mas minha família? Parece a Máfia italiana. O castelo em que moramos é grande, dá até para se perder dentro dele, o que criou o hábito de fazermos as refeições todos juntos. Significa que todo café, almoço e jantar parece uma festa de família. Não é ruim, eu adoro normalmente e fui um dos grandes responsáveis para que isso acontecesse, para que o hábito se criasse, mas conhecem arrependimento? É o meu nome do meio agora.

Enquanto minhas irmãs contam sobre a carta de Kateus minha prima, Caedyn, filha de Dorian, sinto uma urgência em fugir. Passeio os olhos no salão e sou atraído para um ponto em específico. Conversando com Henri perto da janela enquanto a aurora boreal brilha no horizonte, Kaiser olha para mim com o peso de uma âncora. É um olhar tão frio, seco e afiado que machuca como um tiro e eu preciso ir embora. Não sou um covarde, mas também não sou masoquista. Eu tinha esquecido como era sentir raiva e amor por ele, mas digamos que Kaiser tem se esforçado bastante para me lembrar disso desde que regenerou das cinzas. Ele não aceitou a coroa que ofereci, mas não deixou por menos: moveu uma ação contra mim que está atualmente em análise pelo Conselho.

Eu fui seu Escravo-de-Sangue. Kaiser alegava que o meu sangue tinha um sabor peculiar e único, fui leiloado em uma festa da nobreza e ele deu lances altos. Quem me comprou, no final, foi a Princesa de Zegrath que na época era Celeste, minha mãe adotiva. Pode parecer confuso de princípio, mas eu fui criado no meio dos vampiros desde criança, para ser herdeiro da Casa Riezdra e tinha uma irmã adotiva, Lisa, que seria herdeira da Casa Zegrath. É assim que funciona: os vampiros quando não podem ter filhos adotam humanos. Com a guerra contra os alienígenas tudo se complicou, meus pais se separaram e passaram a ser inimigos. Celeste viu a oportunidade de me presentear a Kaiser, o Imperador na época.

Outra coisa comum que vampiros fazem: quando querem se casar, presenteiam seus pretendentes e uma forma muito comum é oferecer um escravo, ou escrava, de sangue muito poderoso. Eu fui esse presente. Enquanto eu era escravo, fui transformado em vampiro e a ligação da Relação-Sanguínea me deixou confuso. Ao mesmo tempo, eu e Lucretia, a herdeira da coroa do Império e também uma vampira de Bawarrod, nos envolvemos. Eu fui transformado em vampiro, em herdeiro. O homem que hoje não se lembra de quem eu sou e que tinha um discípulo, me deu de seu sangue para sobreviver e me colocou nessa posição. Entende? Ele me odeia agora, mas por anos, me amou como quem ama a si mesmo e me protegeu de Celeste, quando ela resolveu se vingar do fato de que não se tornou rainha.

Pertencer a uma Casa com o sangue de vampiros é muito mais que pertencer a uma família, somos parte de um único Deus Supremo e eu, francamente, me sinto muito confuso com esses sentimentos no momento. Parece que todos os fantasmas do passado resolveram bater na minha porta ao mesmo tempo!

Largo a taça de vinho em cima de uma das mesas, levanto do sofá:

— Onde você vai? — Román indaga.

— Para longe de vocês dois, chatos. — Uso os comentários de zombaria como a desculpa perfeita para me afastar deles e andar até a porta, saindo da sala.

— Está fugindo ou é impressão minha, meu amor?

Lucretia fica bem na minha frente, bloqueando meu caminho. Parte da minha audição ainda está na sala de estar em que Brenda e Román reagem à minha grosseiria, mas a outra parte busca apenas silêncio para que todos os pensamentos que transitam minha mente encontrem paz.

— Tão injusta acusação. — Brinco.

— Não injusta quando você me deixa sozinha no café da tarde. — Lucretia faz biquinho de menina mimada, os dedos batendo na gola do meu excêntrico colete de pele de leopardo. — Kaiser é família. Eu tenho saudades. Você tem saudades.

— Quando você estiver com ele, não me espere, cretina.

— Cretino é você! — Curvando as sobrancelhas desenhadas, ela me xinga,. — Quer fugir antes do jantar? Podemos enganar os guardas, você faz uma ilusão e vamos para outro lugar com Lennon.

Não tanto uma má ideia, especialmente quando ela me empurra contra a parede desse jeito e minhas mãos ganham vida própria percorrendo suas pernas grossas.

— Depois do jantar. — Percebo que ela está de cinta liga, meus dedos encontram a barra da meia rendada e sexy que Lucretia está vestindo, vou subindo para tocar o meio de suas pernas. — Ou talvez durante. — Um vaso azul e branco cai de uma das mesas aparadoras ao corredor, os cacos de vidro espatifando e o barulho nos interrompendo.

— O que é isso? — Lucretia precisa lutar contra mim para descolar a boca da minha e só a solto por sentir que ela está incomodada.

Podemos ver Derek se escondendo atrás da mesa. Sabe como os gatos fazem que acham que porque não podem ver, eles não são vistos? Então.

— Podemos ver você, Derek.

— Não estou fazendo nada! — Derek se levanta assustado detrás da mesa, o olhar em pânico, com um suéter cinza de gola alta que provavelmente foi a Jay que comprou para ele. Coitado, vai ser impossível para ele arranjar uma namorada desse jeito e Derek precisa de uma com urgência. — O vaso caiu sozinho!

Claro. Ou então foi eu com a minha mente. Esse menino não presta!

— Pare de ficar olhando para as pernas da minha esposa. — Exijo, estreitando os olhos ameaçadoramente. Em fato, estou mais tirando uma com a cara de Derek, que endurece imediatamente achando que estou irado ou coisa do tipo. — Entre. Antes que eu mate você por ser tão indecente.

— Sim, senhor. — Derek abaixa a cabeça e passa por mim, entrando rapidamente na sala onde os outros estão.

Para não explodir dando risada, mordo a boca e abaixo a cabeça, encostando a testa no ombro de Lucretia.

— Você é tão cruel! — Lucretia reclama, dando um empurrãozinho em mim e minhas costas voltam a se bater contra a parede.

— Você que é. Não tem coragem de dizer que ele te incomoda e deixa o trabalho sujo pra mim.

— Ele não me incomoda!

— Devia o deixar tocar em seus peitos, é só no que ele pensa. — Aperto os peitos grandes que ela tem.

— Não seja indecente! — Lucretia afasta minhas mãos e abre bem os olhos fingindo que está ofendida com meu comentário, mas minha mulher é vaidosa demais para achar ruim que alguém babe por ela e a ache bonita e gostosa. Ela é, convenhamos.

— Indecente é o adjetivo perfeito para os desenhos que ele faz de você durante a aula, meu amor.

— Cale essa boca despudorada agora! — Ela me beija, como se quisesse me fazer pensar em outra coisa que não sejam os desenhos de Derek, mas com sua língua explorando meus dentes desse jeito, não está funcionando.

— Meu amor, você precisa controlar o seu nível de voyeurismo, ele me assusta às vezes. — É quase um sussurro, mas escuto quando Devon se aproxima de Jay, os dois no final do corredor. Às vezes, sou incapaz de escutar seus passos e sempre que penso nisso chego à conclusão de que meu pai é um ninja!

— Cadernos com desenhos indecentes de Lady Lucretia, você ouviu? — Jay retruca, achando que é o fim do mundo um garoto na puberdade fazer desenhos de mulheres nuas. Ainda bem que ela não era minha mãe quando eu estava na puberdade.

— Fique orgulhosa, ele está desenhando uma garota. — Devon ri, obviamente orgulhoso que Derek seja heterossexual.

Qual é! Até assim ele dá um jeito de ser um machista maldito e de me ofender! Se eu não estivesse fingindo que não sei que eles estão me observando agora, teria dito alguma coisa. Espero eles passarem para dentro da sala de estar, onde todos conversam amenidades e beliscam aperitivos alcóolicos. Quando não podem nos ouvir, Lucretia se solta de mim novamente, para debochar:

— Ele se orgulha de Derek porque ele é um macho-alfa e você não. — Viu, eu previ essa piada.

— Doce ilusão. Derek está apaixonado por você, podemos colocar em dúvida esse “alfa” na ponta da sua língua.

— O que você está insinuando, cretino?

— Pare de falar, estou imaginando coisas indecentes com a sua língua. — Ela faz cara de tédio, como se minhas palavras dessem sono.

— Lennon está vindo. Você poderá pensar indecências quando quiser uma vez que ele estiver aqui, apenas deixe que da minha língua cuido eu.

— Falando em línguas desse jeito, não espere que eu vá me concentrar.

— Dou um jeito de conseguir aquela bebida Sangue-de-Bruxa que tomamos em nosso casamento sem seu pai ficar sabendo, perdoada?

— Aquela que deixa os vampiros bem loucos?

— Essa mesma, tenho uma bela fonte de entrega agora.

— Vinte minutos. Você e Lennon no escritório. — Eu a beijo mais uma vez. — Traga todas as línguas.

— Você sempre consegue o que você quer, então tudo bem. — Lucretia sorri e se separa de mim.

●●●

— Uhhhh. — Fecho os olhos e passo a língua nos dentes saboreando o gosto doce. Engulo devagar com prazer. — Isso é tão maravilhoso.

— Como pode ser tão indecente? — Lucretia me dá uma olhada enquanto morde a boca imaginando alguma coisa depravada.

Minha esposa está sentada do meu lado, no sofá, usando minha camisa com os botões abertos e só de calcinha. Ergo as duas sobrancelhas para ela com um sorriso insinuante na boca e sei que ela precisa conter a urgência em me beijar agora.

— Pare de comer, você vai explodir. — Em pé procurando por sua camiseta pelo chão do escritório, Lennon tenta me dar algum conselho que preste.

— Cale a boca. São marshmallows! Sabe quanto tempo que não vejo destes? — Coloco a mão dentro do pote pegando vários quadrados coloridos e coloco tudo na boca. — Eu não me importaria de explodir. — Quase não consigo falar com a boca tão cheia. — Essa é a equação: Marshmallows = Vida.

— Eu não devia ter comprado tantos. — Lennon coça o meio da testa, olhando para o chão, a outra mão está em sua cintura, ele é magro e tem um porte elegante, como eu.

— Se Zane morrer engasgado, ainda te amará para sempre por ter trazido. — Lucretia o consola, seu pé no meu ombro, me empurrando de leve, agora ela está me dando uma bronca.

— Mesmo? — Lennon olha para mim erguendo um pouco a cabeça.

— Eu amaria mais se tivesse mais. — Afasto o pé de Lucretia do meu ombro. Lennon abaixa-se, pega a camiseta cinza e veste. — Marshmallows tornam tudo melhor.

— Achei que você diria isso. — Com um sorriso de satisfação, ele se aproxima do sofá e segura no meu queixo, me beijando.

Sinto os lábios um pouco grudentos por causa do açúcar, mas não é necessariamente ruim, especialmente que Lennon é um bom beijador. Com o toque de seus lábios nos meus sinto suas emoções, puras e únicas, por mim. Porém, eu leio sua mente e posso saber que ele está feliz por eu me distrair um pouco e parar de pensar em Kaiser, o que me deixa triste. O marshmallow fica até amargo.

Lennon senta-se no sofá, Lucretia o abraça, aninhando-se em seu ombro, eles trocam um beijo demorado. Coloco o pote em cima da mesa de centro de madeira preta e minha mente me leva de volta ao inferno. Meus olhos ardem com as lágrimas e passo os dedos antes que elas escorram, limpando.

— Achei que você estaria se sentindo melhor agora depois da overdose de açúcar. — Lennon olha para mim, Lucretia também, os dois preocupados que nos últimos dias a instabilidade emocional me atinge como ondas.

Respiro fundo, entrecortado. É quase uma dor excruciante essa que sinto. Como se o ar prendesse na minha garganta e se tornasse denso como mel. Você não consegue respirar mel.

— Estou bem. Na maioria do tempo, de qualquer forma. — Passo as mãos pelos meus cabelos, prendendo-os na orelha. — Além do mais, tenho coisas mais interessantes para me concentrar, minhas irmãs estão eufóricas que Kateus vem nos visitar.

— Kateus é seu irmão elfo?

— O nome é sidhe e não elfo. — Dou risada.

— Qual é a dele? Quinze anos sem nem dar as caras e de repente ele resolve aparecer, assim do nada! — Lucretia comenta.

— Shh, não diga essas coisas sobre os irmãos dos outros. — Lennon segura no ombro delicado de Lucretia. — Ele é confiável?

— Eu sei lá. Acho bom que ele venha, eu quero conhecê-lo. Thalise gosta muito dele, então acho que podemos confiar nele.

— Thalise gosta de todo mundo. — Lucretia pontua. Comprimo os lábios pensando, Thalise está mesmo muito próxima de Kaiser. — Não quis dizer exatamente isso, sinto muito. — Ela logo se conserta, percebendo que suas palavras ganharam outro sentido.

— Não sinta. — Lanço um sorriso para simbolizar que está tudo bem.

— Tenho pensado sobre isso, talvez a Relação-Sanguínea entre você e Kaiser fosse fraca e não sobreviveu à regeneração. — Lennon diz, ajeitando as pernas de Lucretia sobre as suas.

— Não. Era muito forte, Kaiser deu a Zane todas as Heranças de Bawarrod. — Lucretia aponta, ela segura na minha mão, sinalizando que devo chegar mais perto dela, como resistir?

— Talvez tenha sido apenas aquele lance dos ferormônios dos sidhes. — Digo, me arrastando no sofá para me aproximar, coloco a mão em sua cintura. Sidhes são criaturas muito sedutoras, sua saliva é cativante e suas unhas muito poderosas. Eu não sabia que era um sidhe até minhas irmãs aparecerem. — Não me importo com isso. Apenas me incomoda que ele tenha se esquecido de mim.

— Ele lembrará. — Entre nós, Lennon coloca a mão na minha nuca e me puxa. — Você é inesquecível.

Minha boca se encosta na dele no mesmo instante que encosta na de Lucretia.

— Zane? — Com batidas vigorosas, alguém resolve nos atrapalhar.

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