Capítulo 03 - Culpabilidade

NÃO IMPORTA QUANTO TEMPO EU OLHE, ainda não consigo acreditar. Estou sentado na poltrona ao lado da cama em que Kaiser está deitado, insconsciente. Ele ainda parece ser o mesmo, os cabelos castanhos enrolados e bagunçados, o rosto pequeno, os lábios finos, o queixo oval e a testa grande. Até a marca de nascença que ele tem na bochecha esquerda está lá.

Não é um clone nem nada parecido, na realidade, fizeram todos os exames para terem certeza de que é mesmo Kaiser e não um sósia, todos os testes são positivos.

Como, nesse planeta, isso seria possível?

Jaylee tinha me contado que estava na praia com as outras garotas da família, incluindo minha esposa, quando ele saiu da praia e a chamou, porém, fraco, acabou desmaiando e minha irmã Thalise o segurou nos braços. Foi quando mandaram me chamar, durante a reunião.

— Você deveria comer alguma coisa, Zane. — Na minha frente, tapando a minha visão de repente, está Jaylee, segurando uma bandeja prateada repleta de torrada, biscoitos e bolos cheirosos com uma xícara de chá de menta. É tanto açúcar que me embrulha o estômago só de olhar.

— Comerei quando ele acordar.

— Como quiser, majestade. — Vira as costas para mim e larga a bandeja em cima do criado mudo que fica entre a cama e onde eu estou, em silêncio. É até estranho que Jay esteja calada em vez de fazendo mil perguntas nesse momento.

Eu tenho mil perguntas.

— Jay... O que eles disseram?

— Os médicos especulam que o veneno que deram para Kaiser há quinze anos não o matou, mas fez seu corpo se comportar como se ele tivesse morrido e ninguém percebeu.

— Ele foi para a tocha de Cremação na cerimônia de despedida ainda vivo? — Meu coração quebra.

— Virou cinzas. Como você mandou espalhar e preferiu deixá-la em um barco de pedra no fundo do mar, Kaiser regenerou-se depois de muito tempo. E voltou. — Explica.

Tenho vontade de chorar sempre que penso no que isso realmente significa.

— Mandamos cremar um homem vivo. Velei a morte de um homem vivo. Chorei tantos anos por algo que nunca aconteceu e basicamente, essa distância, esses longos anos de solidão e sofrimento seriam poupados se alguém tivesse feito seu trabalho.

— Zane, não quero estragar, mas considere que Kaiser pode ter planejado tudo meticulosamente, como ele sempre fez.

— Não... — Balanço a cabeça negando, desvio os olhos dela. — Se ele fez isso, seria odiável, mas durante todos esses anos que passei de luto por ele, por sua morte, percebi o herói que ele foi na minha vida. A tristeza apagou qualquer ressentimento, deixando apenas admiração e amor. Quero estar eufórico e feliz por ele ter voltado, mas sinto apenas angústia.

— Ele salvou você da morte tantas vezes, Zane... É justo que você possa se redimir dos erros do passado.

— Quando passou os poderes de Bawarrod para mim Kaiser sofreu com a Ausência. É uma doença comum e letal para os vampiros que carregam os poderes dos Nove Deuses nas veias. Quando foi envenenado por Celeste, não conseguiu se regenerar e sucumbiu.

— Os poderes de Zegrath são muito nocivos e Celeste sabia bem usá-los.

— E por isso eu a matei. — Limpo os olhos, olhando para as lágrimas em minhas mãos. A maior parte dos vampiros choram sangue, mas minhas lágrimas são de água e sal. Como os humanos. — Celeste tirou o que havia de mais precioso para mim e eu me vinguei.

— Você precisou mata-la porque ela estava louca, Zane. Ela não ia parar enquanto não matasse a todos nós. — Jaylee pega um lenço de cima da bandeja e me entrega.

— Eu sei... — Seco os olhos. — Mas eu queria ter percebido que ele estava vivo antes de cremá-lo e atirar as cinzas ao mar.

— Não se preocupe com coisas do passado. Você tem que se preocupar que o Conselho dos Noves Deuses está acusando-o de golpe à coroa. Você sabe que os arautos do Conselho odeiam você por ter sido humano, por suas decisões, eles farão de tudo para arrancar a coroa de sua cabeça.

— A coroa é minha, mas antes disso, é de Kaiser. Sei que estou sendo acusado, mas nada disso faz sentido para mim... Kaiser foi meu mestre, quem me transformou em vampiro e por isso temos uma ligação única que apenas se desfaz com a morte. Por anos chorei e sofri com sua ausência, será que essas pessoas não entendem o quanto eu preferia tê-lo vivo a morto?

— Essas pessoas não entendem esse tipo de amor. — Jaylee segura no lenço tirando de mim e o guarda no bolso, para ninguém ver minhas lágrimas brancas. — Tente parar de chorar antes que os agentes cheguem.

— Kaiser acordou? — Lucretia chega parando em pé na porta, ela parece triste.

— Não. — Jaylee responde primeiro que eu possa pensar em responder. Ela se abaixa mexendo na lareira, tentando deixar a temperatura do quarto mais agradável.

Lucretia entra no quarto e vem primeiro até mim, estendendo as mãos. Eu seguro nela. Somos vampiros de Bawarrod e podemos absorver os sentimentos um do outro pelo toque. Palavras não precisam ser ditas, ela me passa um pouco de sua calma, o que me mantém tranquilo.

Largando um beijo no meu Anel de Bawarrod, Lucretia anda até a cama, conferindo se os cobertores de pele estão ajeitados ao corpo de Kaiser e confere a sua temperatura. Sua mão esguia nem chega a tocar na testa de Kaiser, ele abre os olhos vermelho-fogo repentinamente e segura em seu pulso afastando-a. Lucretia chega a dar um passo para trás.

— Oh. — Levanto da poltrona no susto.

— Lucretia? — Reconhecendo-a, Kaiser junta as sobrancelhas grandes e pretas. Eles se olham por um pequeno momento. Ele se senta. — O que faz aqui? O que houve? — Olhando para o próprio braço, ele vê que um cano está transferindo sangue para ele. Um composto de vitaminas e puro poder que Henri, médico da família e meu cunhado, trouxe do hospital, quando veio com a equipe médica examinar Kaiser e ter certeza de que ele é mesmo ele.

— Você desmaiou de exaustão. — Jayle diz.

Eu me aproximo de Kaiser, mas minhas pernas parecem não ter força para sustentar meu peso e preciso me sentar. Não consigo expor em palavras a felicidade que sinto em vê-lo acordar, em ouvir o tom de sua voz brando e potente, preciso tocar nele. Seguro em suas mãos e Kaiser abaixa o olhar, checando, as mãos dele estão tão quentes! Enquanto eu transfiro carinho e saudades, os sentimentos que emanam de mim, Kaiser me envia o reverso. Sou invadido por uma sensação estranha que me faz querer prender a respiração.

Ainda segurando suas mãos, vasculho sua mente. Sou aturdido pelas memórias que ele busca entender. Um misto de raiva, susto e medo, olhando para o céu em Amsterdã na noite em que as luminosas naves alienígenas invadiram o planeta.

— Está tudo bem, Kaiser, o importante é que você está vivo. — Lucretia seca os olhos, chorando de emoção.

— Por que você está usando meu anel de Bawarrod? — Kaiser puxa as mãos soltando-se de mim e ergue o olhar afiado me fulminando com raiva. Apenas uma confirmação do que eu senti que ele sente por mim. Estou chocado. — Quem é você?

Estreito um pouco os olhos com estranhamento, mas dentro de mim, já existe a resposta que eu procuro. Levanto da cama e me afasto, dando as costas para ele, passando a mão no rosto. Lucretia olha para mim e pisco algumas vezes tentando conter as lágrimas.

— Ele não se lembra de mim. Kaiser me esqueceu.

— Kaiser, olhe para mim, esse é Zane. — Lucretia segura suas mãos, tentando passar memórias para ele. — Lembra? Ele é seu discípulo.

— Não tenho discípulos. — Ele puxa suas mãos dela, com brusquidão.

Meu coração se quebra com o peso daquelas palavras. Pela primeira vez em muitos anos eu perco o controle dos meus poderes mentais, as janelas, espelhos e objetos de vidro quebram. Meu coração então acelera e não consigo respirar.

— Zane! Se acalme! — Jaylee grita.

Saio depressa do quarto antes que mais coisas explodam. Os funcionários entram correndo. Conforme caminho pelo corredor os quadros balançam e os objetos de decoração quebram ou caem. Cruzo com Devon no corredor:

— Zane, esse terremoto foi você? Está tudo bem? — Ele para de andar. Atrás dele, muitos homens trajando a armadura dos soldados do Grande Império, pretas e de capacete. Os agentes Taseldgar! — Esses homens precisam falar com você e te interrogar sobre Kaiser.

— Não agora. — Balanço a cabeça em negação e pego outro corredor.

Entro em um escritório. Bato a porta com violência e preciso segurar a cabeça, pois sinto tontura, como se fosse desmaiar. A sensação passa e quando abro os olhos novamente, o escritório está todo do avesso, diversos livros no chão, como se um furacão tivesse passado pela sala.

— Zane? — Devon segura forte nos meus braços e me vira de frente para ele. — O que houve?

Não consigo vê-lo, há muitas lágrimas nos meus olhos agora.

— Ele não se lembra de nada. Não se lembra de mim.

— Quem? Kaiser?

— Ele esqueceu! Sua última memória é uma batalha em Amsterdã, quando os Alienígenas invadiram o planeta, mais de vinte anos atrás.

— O que você fez? — Devon me balança com força.

— Eu não fiz nada!

— O que você está dizendo?— Ele não lembra e não sente mais nada por mim. — Há Relação-Sanguínea entre vocês.

— Não parece existir da parte dele. — Meu corpo inteiro parece que vai desmanchar agora. — Nem mesmo um único traço, eu não senti nada... Mas eu... Eu ainda sinto.

Relação-Sanguínea é o nome que se dá a ligação entre o vampiro que transformou o outro em vampiro e vice-versa. Uma conexão mestre-discípulo que é quase eterna e a única forma de quebra-la é com a morte. Não se pode definir a Relação-Sanguínea com exatidão, é um misto de sentimentos. A ligação ocorre em níveis muito extremos: quando transforma um humano em seu discípulo o Príncipe da Casa, o Filho que carrega o sangue do Deus Nether em seu sangue, suga todo o sangue do humano exceto a Última Gota, que é sua essência de vida, e concede do seu sangue vampírico abençoado pelo Deus-Supremo. Absorvendo aquele sangue, aquele poder, o discípulo se torna parte de um Deus. É como pertencer a um outro, que é a sua origem. Nesse caso, é correto afirmar que Kaiser é minha origem e a quem eu pertenço... Ser esquecido pelo mestre é uma dor única, como a morte.

Sinto que tudo fica escuro de repente. Quando abro os olhos novamente, Devon está batendo no meu rosto e estou quase deitado no chão, sendo segurado por ele. A impressão é que desmaiei. Perdi alguns minutos?

— Zane? — Devon me chama. Pisco os olhos, tentando focar nele, mas não consigo enxergá-lo. Eu morreria agora sem problemas. Sinto-me tão fraco.  — Eu vou chamar os médicos. Jay, fique com ele.

— Claro. — Jay se propõe, segurando nos meus ombros e eu me sento, dobrando as pernas, com as duas mãos na cabeça e os cotovelos nas pernas. — Como você está se sentindo? — Ela pergunta.

— Miserável. Eu o perdi duas vezes.

Explodo chorando sem conseguir segurar as lágrimas. Jaylee me abraça com força, apertando os braços ao redor de mim, segurando minha cabeça e escondendo meus olhos dos agentes.

— Coloquem o que escutaram nos relatórios oficiais. Acredito que vocês não precisam de mais nada para saber que Zane nunca conspiraria contra Kaiser, senhores. — Devon diz, provavelmente para os agentes. Eu sinto raiva por ele ter usado o momento de crise para que os agentes tomem o meu depoimento, mas meu pai é ardiloso, sabe o que faz.

— De acordo. Será que podemos falar com Lorde Kaiser agora?

— Sigam-me, ele está no quarto ao final do corredor. — Devon fecha a porta nos deixando sozinhos no escritório.

Estou tão infeliz que não me importo que Devon tenha manipulado a situação para conseguir um depoimento meu.

●●●

— Diga a Kaiser que se ele quiser a coroa, eu renuncio.

Todos olham para mim, sentado no sofá do escritório enquanto Henri mede a minha pressão sanguínea. Lennon está sentado do meu lado, segurando a minha mão e toda a preocupação passa dele para mim através dos poderes de empatia tátil

— Zane. — Lennon ergue uma sobrancelha castanha, sei que ele vai me repreender.

— Ficou louco? — Devon quase grita, mas se interrompe quando envio um olhar mortal a ele. — Pense a respeito disso melhor, Zane. Se você renunciar, terão motivos para acreditar que foi um golpe;

— Já estou sendo acusado mesmo, não estou?

— É diferente. — Devon range os dentes.

— É minha decisão e não sua. — Olho para Lucretia, minha esposa, que está em pé ao lado do sofá e de braços cruzados, concordando com Devon com um aceno de cabeça. Eles nunca concordam e hoje, todo mundo está contra mim. — Diga a ele, droga.

— Tá, Zane, vou dizer o que você quiser, embora acho que devia falar para Kaiser.

— Não vou falar com mais ninguém, muito menos com ele! A partir de agora, minha agenda está cheia para Kaiser Bawarrod! — Grito e tiro o aparelho medidor de presão do meu braço e jogo para Henri, que abre a boca contornada pela barba escura em susto, eu não quero ser grosso com o meu cunhado e amigo. Fico em pé, mas sinto tontura, tudo escurece, fico surdo momentaneamente e caio sentado no sofá.

— Zane? — Devon me chama.

Sinto a mão biônica de Henri no meu ombro, tentando fazer com que eu não me curve me encolhendo, mas é a única vontade que tenho de fazer quando uma onda de calor invade o meu corpo. Henri perdeu sua mão em um incêndio há muitos anos atrás, ocasião em que ficamos muito amigos. Ele é um homem justo, de sorriso leve e prático, que possui um bom coração, alamdiçoado por ter se tornado um vampiro pela Casa Zegrath, conhecida por seus poderes macabros e temidos, como criar zumbis. Vampiros da Casa Zegrath podem passar doenças com o toque, é a única forma em que um vampiro pode se infectar e em alguns casos, sucumbir. Por isso Henri, que é médico, usa luvas, para que não tenham medo de seu toque.

— Olhe para você, que completo desastre. — Devon irrita-se e se afasta de mim. — Lucretia, vá enviar logo a maldita mensagem para Kaiser.

— Se Zane estiver bem, eu vou.

— Ele está, só precisa de um pouco de sangue. — Henri a acalma, com a voz tenra.

— Merda. — Reclamo, colocando a mão no meu corpo, por cima do coração.

Doi demais. Meu coração falha às vezes. É frágil e há receios de que os danos possam ser permanentes, ou seja, que eu posso realmente morrer de parada cardíaca. Um vampiro que não consegue regenerar o próprio coração é um problema.

Henri estudou sobre isso durante anos tentando me ajudar, mas nada funcionou. É descrito como uma doença maligna aos vampiros, nada comum, mas passível de acontecer com alguns humanos que se transformam. Eles chamam de Renúncia.

Literalmente estou renunciando a minha parte vampírica, tentando segurar um traço de humanidade dentro de mim: meu coração, que ainda bombeia a Última Gota de sangue humano.

Um coração humano não sustenta um corpo de vampiro e há suspeitas que a minha inabilidade de tomar sangue vem dessa peculiaridade. Eu não sei como resolver a questão, muito menos o que eu tenho que fazer para me tornar cem por cento vampiro, mas por outro lado, eu também não quero que isso aconteça. Eu tenho medo do que  “me tornar vampiro por completo” possa significar.

Gosto de ser eu mesmo, embora eu ainda nem saiba o que isso significa direito.

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