Capítulo 02 - Das Cinzas à Carne

ENCARO A MESA UM POUCO SEM VONTADE DE ME JUNTAR à todas aquelas pessoas numa noite como essa, mas forço meus passos. Não é nada demais, mas quando a família fica unida dessa forma, há muita gente falando ao mesmo tempo e eu termino o dia com dor de cabeça. Não consigo acompanhar todas as conversas.

No castelo, atualmente moramos todos juntos. O Clã Riezdra, Zegrath e Bawarrod, seus respectivos maridos, esposas, filhos, sabe? É muita gente, a família é gigante.

Jaylee separa-se de mim, indo sentar-se em seu lugar de sempre, ao lado de Devon. Chegamos exatamente ao mesmo tempo na mesa e meu pai me dá uma rápida encarada feroz antes de pousar seus olhos dourados e brilhantes como uma bomba em cima de Lennon. Ih! Isso foi rápido demais.

— Quem é você? — Devon pergunta.

— Meu nome é Lennon, muito prazer em conhecê-lo, senhor. — Lennon dá um sorriso simpático, se levanta para cumprimentá-lo, mas meu pai ignora sua mão esticada e se senta na cadeira na ponta da mesa.

— Lennon é um velho amigo, ele está e N-D44 pela temporada — Digo, puxando uma das cadeiras entre Lucretia e Lennon para me sentar. Jaylee leva um susto, provavelmente reconhecendo-o. — Talvez você se lembre dele do meu casamento com Lucretia.

— Eu sei que eu me lembro. — Lady Lucretia provoca, mordendo um morango e rindo.

— Não, não me lembro. — Devon abre um botão do paletó cinza cheio de medalhas que conquistou como General do Exército antes de passar o cargo para seu irmão e se senta a mesa. Ele olha para Jay, para que ela diga se lembra de Lennon ou não, mas Jay está conversando com Brenda agora.

— Nervosa com a prova, filha? — Jay pergunta.

— Não. Estou confiante que vou tirar de letra! — Brenda responde. Ela é um lobo-metamorfo e uma das minhas melhores amigas, de cabelos loiros da cor do trigo e olhos intensamente azuis, mas não se enganem com sua carinha angelical, Brenda é perigosa e uma das melhores com uma arma na mão. Ela foi adotada pelos meus pais adotivos há alguns anos. — E então Dorian não poderá ignorar minhas vontades!

— Não ignoro suas vontades. — Dorian, irmão do meu pai, retruca, já com a farda de General do exército e comendo panquecas. — Poderia fazer bom uso do seu domínio em batalha para treinar esse bando de traineers que Rynbelech e Lunysum recrutou. São em grande parte um desastre no campo.

— Não quero ser babá de traineers. — Brenda revira os olhos. — Quero ser analista.

— Mas você seria melhor utilizada no campo de treinamento do que atrás de uma mesa no prédio da inteligência.

— Por quê? — Jaylee pergunta, soltando a xícara, com olhos de detetive passeando por nós. — Estamos com problemas nas linhas de defesa? Por isso tantos recrutas sendo chamados pelas Casas de frente de batalha? Bem quando o sangue é escasso e mal temos o suficiente para a população?

Dou uma tossida-disfarce e encosto a mão no ombro de Lennon, ele entende a minha deixa.

— Quero aproveitar o momento de silêncio para recitar um poema em  agradecimento por me hospedarem. — Lennon se levanta, segurando a manteigueira.

Devon pergunta algo para Jaylee, que apenas abana a cabeça mordendo uma panqueca para disfarçar. Ninguém interfere enquanto Lennon recita:

No calor da intensa madrugada

Uma cama de lençóis úmidos

Abriga o monstro de seis pernas

Enroscam-se enlouquecidas de prazer

São três bocas e são três línguas

Entre coxas ardentes

Geme o monstro de seis pernas

A xícara que Devon está segurando se quebra.

— O que é um monstro de seis pernas? — Derek, meu irmão, o filho biológico mais velho de Jaylee e Devon, pergunta sem entender.

— Uma formiga. — Jaylee conta.

— Não entendi. — Derek demora pensando e abre bem os olhos. — Ah!

Todos os que seguraram a risada, explodem rindo, exceto eu, Lennon e Lucretia.

— Não sejam rudes com um convidado. — Reviro os olhos. Eles parecem crianças se dobrando e dando risada quando escutam sobre sexo.

— Você e eu vamos ter uma conversa, mocinho. — Devon me repreende, erguendo o indicador.

— Apesar de não envelhecer fisicamente, eu já tenho mais de trinta e cinco anos, pai. — Retruco.

— Exatamente, você ainda é uma criança nessa Sociedade.

— Sua esposa também.

— Zane! Há crianças na mesa! — Dorian pede, tampando os ouvidos de Dean, meu irmão mais novo e loiro, com os cabelos bem claros e lisos.

— Eu sei o que isso significa...

— Tenha mais respeito! — Devon grita comigo e abro a boca em espanto, Jay segura em seu braço em uma tentativa impedir ele de continuar, mas ele lança uma cachoeira de ofensas em cima de mim de qualquer jeito. — Você é um pervertido e não precisa dar o exemplo para ninguém dessa família.

— Não vou dizer nada, porque você está com ciúme agora. — Solto o guardanapo por cima da mesa e levanto. — Agora com licença que preciso comparecer em uma reunião e convencer o Conselho a me apoiar.

●●●

Fui para a reunião com os generais e nobres. Apresentei o que vi durante o comíssio, as dificuldades do Grande Império e quais medidas acredito que seriam as melhores. Nem todos concordaram, mas eu não costumo deixar escolhas, embora tente ouvir a opinião de todos. Uma vez que decido e acredito que algo é o melhor a ser feito, é o que vai ser feito.

Ao deixar a sala, encontro no corredor Devon lendo uma carta que acabou de receber de um soldado. É uma mensagem de casa? Parece. Enquanto caminho para sair da sala de reuniões e me livrar dos nobres, Devon faz o caminho contrário e chega até mim, com uma cara péssima.

— Aconteceu algo em casa?

— E eu achando que seu novo namorado era meu maior problema… — Ele sussurra, para ninguém ouvir.

— Eu não chamaria de problema, pare de ser ciumento. É um pouco insuportável esse ciúme que tem.

— Venha comigo, precisamos conversar.

— Agora? Mas vai ter um coquetel e estão esperando para...

— Não importa, você vem comigo. — Devon segura na minha nuca daquele jeito que quer ao mesmo tempo tomar conta de mim e me conter, o que nunca é um bom sinal, mesmo assim eu o sigo pelos corredores, permitindo que ele me leve para longe dos nobres.

Juro que se ele for aproveitar a oportunidade para falar de Lennon, eu vou surtar! Devon caminha depressa, não para uma sala de reunião vazia ou qualquer coisa, como um canto afastado das orelhas dos nobres, mas direto para o estacionamento, onde o carro está. Um funcionário abre a porta, ele me coloca para dentro como um policial, segurando na minha cabeça.

— Vamos embora?

— Acredite em mim, Zane, você vai querer ir embora. — Devon assegura sério. Ele vira-se para o funcionário. — Me dê meia hora, por favor, não deixe ninguém se aproximar.

— Sim senhor.

Devon entra no veículo, sentando na minha frente e o funcionário fecha a porta. Dá para ver ele se afastando até os fundos da Limusine, fazendo guarda, com as mãos para frente. Sei que é um humano porque está com roupas impermeáveis por baixo do uniforme, mas atualmente, até mesmo vampiros trabalham. É essa classe de proletários vampiros que faz a maior oposição ao meu governo, a maioria eram nobres antes e a resseção da guerra os deixou sem suas fontes de renda, os impostos estão mais altos, muitos abandonam e tentam a sorte trabalhando. O homem parece magro, do jeito que a maioria da população está. Inclusive, essas devem ser suas melhores roupas.

— Zane… — Devon me prepara, chamando minha atenção e viro para ele, mordendo a boca. Não gosto nadinha desse olhar que ele me dá agora, calmo, sereno, sério e firme. — Vou falar de uma só vez, escute-me, tá bem?

— Claro, prometo não dizer nada, pode falar. — Cruzo os braços aborrecido. Lá vem alguma lição machista sobre como homens e mulheres se casam para ter bebês e que qualquer coisa além disso é, obviamente, contra a natureza e errado. Como se eu me importasse! Aliás, não quero mesmo ter bebês.

— Kaiser está vivo.

— O quê? — O choque daquelas palavras me causa medo e estranhamento. Lorde Kaiser Bawarrod era o Imperador antes de eu me casar com Lucretia, a princesa herdeira. Ele sempre foi um vampiro forte, admirável e todos o consideravam sanguinário, genocida e disposto a tudo para elevar os poderes dos vampiros; mas para mim, ele foi meu mestre e meu protetor. — Kaiser morreu envenenado por Celeste. Ele estava fraco após me passar os poderes de Bawarrod e sucumbiu aos venenos de Zegrath. Foi há vinte anos, pai. Eu o enterrei, aquele foi o pior dia da minha vida.

Na minha frente, Devon passa a mão no rosto.

— Como você não mandou espalhar as cinzas, ele se regenerou. Ele está vivo, Zane. Na carta que Jaylee me mandou ela foi muito enfática quanto a isso. Ele reapareceu na praia. Há uma equipe médica em casa, seus sinais vitais estão normais, além de uma equipe de investigação a caminho, você compreende? Eles vão acusar você de mata-lo e usurpar a coroa.

Não consigo nem me mexer agora, preso em estática. Diante de mim, Devon arregala bem os olhos, com as mãos na minha direção como se quisesse me segurar.

— Isso é verdade? Kaiser está vivo?

— Sim, é. Kaiser está vivo.

Começo a dar risada, é a felicidade que arrebata o meu corpo por inteiro, me deixando eufórico. Devon faz cara de indisposição na minha frente, como se não me quisesse rindo de felicidade ou algo do tipo. Sei que ele tem ciúmes. Kaiser foi muito presente na minha vida, mais que ele. Além disso, havia muitos boatos (que eram pura verdade) sobre Kaiser ser meu amante. É verdade, mesmo, eu admito. Eu era um escravo de sangue e Kaiser comprou os direitos sobre o meu sangue, bebeu muito de minhas veias e as mordidas são arrebatadoras. Eu me apaixonei e o odiei por me fazer apaixonar por ele.

Quando Kaiser morreu, senti a sua morte em cada célula do meu corpo com uma solidão terrível. O nome que os vampiros dão para esse sentimento é Miseria, pode ser letal. Eu quase morri de tristeza e saudades e se não fosse por Lucretia, eu não teria me recuperado. Com a sua morte eu tive que me tornar Imperador em seu lugar e juntar os quatro pilares de Aesis para proteger o planeta.

— Espere! Se ele não morreu, então todo aquele sofrimento que eu passei foi pelo o quê? — E contemplar que talvez eu tenha sido enganado no passado me tira do sério. Kaiser é um vampiro de Bawarrod e somos mentirosos compulsivos, enganadores, manipuladores, é o sangue de Bawarrod que nos faz assim. — Você por acaso está brincando comigo? Isso não tem a menor graça!

— Zane, tenha calma. — Devon empalidece. — Você precisa se acalmar antes que exploda alguma coisa com o poder da mente.

— Não. Tem. Graça. — Falo pausadamente entre dentes, com o maxilar travado e a respiração ofegante, procuro me controlar, ele tem razão. Eu sou muito poderoso e uma explosão descontrolada de poderes pode rachar o planeta ao meio. — Nesse momento, eu não sei se quero acreditar em você porque significa que Kaiser fingiu sua morte para mim e isso é inaceitável, ele não ia me ferir dessa forma.

— Não ia? — Devon venta renda, com desdém, odeio o sorriso que se forma em seus lábios agora. — Vamos para casa, você verá Kaiser Bawarrod.

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