1. Quero Café!

Abri os olhos...

E logo os fechei por causa da luz branca que não me permitia enxergar nada.

Mantive-os fechados por alguns instantes para que por sob as pálpebras pudessem se acostumar à claridade.

Percebi meu corpo relaxado e, na minha mente, flashes sem o menor sentido faziam questão de me perturbar.

Ouvi um som que denunciava a presença de mais alguém ali.

Comigo.

Quem seria?

Será alguém que me dopou e me levou até uma clínica clandestina?

Algum tipo de traficante de órgãos?

Sem muita coragem, arrisquei visualizar a pessoa, ou criatura, que estava ali me assistindo dormir esse tempo todo.

Discretamente, olhei por baixo das pálpebras ainda sensíveis e uma silhueta de alguém vinha com tudo na minha direção.

Num impulso, afastei-me e a silhueta recuou para o ponto de onde vinha a claridade.

Por alguma razão, essa outra pessoa também parecia confusa.

Mas se havia algo que eu tinha certeza, era do aroma que senti com a aproximação daquela pessoa.

- Onde eu tô?

- Como tu tá se sentindo? - devolveu a pergunta.

- Me fala o que aconteceu - insisti semicerrando os olhos.

- Tu tivesse um probleminha.

Comecei a me preocupar porque eu conhecia aquele olhar de quem estava tentando manter sob controle a minha preocupação.

Olhei para o lado e vi um cabo de soro.

As luzes fluorescentes ainda incomodavam meus olhos.

- Zaci! Por que eu tô num hospital?

- Tu passou mal.

- Passei mal? Como foi isso?

- Ligaram pra mim e eu larguei tudo lá na ONG e vim mimbora nas carreira. - disse minha amiga sentando ao meu lado na cama - Tu ficasse pálida, segurando o peito como se tivesse infartando. Então chamaram uma ambulância.

- Eu infartei? - perguntei espalmando a mão no peito.

- O teu coração tá bem. Foi uma crise de ansiedade. E amanhã a gente vai pra casa, logo depois que o psiquiatra conversar contigo.

- E eu tô doida, é isso? - sussurrei percebendo as lembranças se encaixarem na minha mente.

Tudo começou com uma forte enxaqueca que quase não me permitiu deixar a cama.

Antes eu tivesse ficado lá deitada...

Sabia que o motivo daquela dor era resultado da notícia do dia anterior.

Havia reprovado mais uma vez em uma disciplina da faculdade: Cálculo 2.

Já tinha uma tradição semestral que seguia religiosamente.

Reprovar em pelo menos três disciplinas.

Só que aquela, em específico, eu já havia reprovado por três períodos consecutivos!

O pior é que essa era pré-requisito para muitas outras que eu estava deixando de cursar e iam se empilhando como a louça suja de um restaurante self-service sem balança.

Nesse ritmo, nunca na vida, concluiria a faculdade de Engenharia Elétrica.

Já estava no sétimo ano cursando a mesma coisa, a turma que começou comigo já havia colado grau anos antes.

Mas eu continuava sem previsão de quando terminaria este bendito curso.

A verdade é que eu nem sabia mais em qual período estava de tanto que já havia reprovado.

Sim.

Eu odiava aquela graduação.

Não tinha uma só matéria que me interessasse.

Muito pelo contrário, cada uma parecia ter saído de um pesadelo diferente para me atormentar e expurgar meus pecados.

Sempre fui muito boa em Português, Redação, Artes, e era a melhor em Educação Física.

Mas a tal da Matemática, da Física, Química e até a Biologia quando entra muito (até hoje não sei o que eram aqueles "Azão" e "Azinho" - só o fato de ter um cálculo ali já me dava um embrulho no estômago) eram os maiores motivos dos castigos que me pai me infligia quando eu era pequena.

Aquela era a minha única chance de ser alguém na vida.

Meu pai sonhava dia e noite com minha formatura.

Não seria uma médica ou juíza, como ele realmente queria. Mas ser uma engenheira para ele era de bom tamanho.

Pois é, não é?

Também não entendo.

Mas na cabeça dura de Seu Paulo Medicina, Direito e Engenharia são as únicas formações universitárias de verdade!

Sinceramente...

Eu amo meu pai, mas às vezes eu tinha tanta raiva que dava vontade de jogar na cara dele que ele nunca se graduou nem em curso tecnológico de curta duração.

Porém na hora eu me lembrava de que ele sempre se privou de tudo para fazer papel de pai e mãe para mim.

Além de que não adiantava argumentar com ele.

Apesar de não ser velho ao ponto de só conhecer essas opções em sua juventude, sempre agiu como alguém do século XIX.

Era uma réplica quase perfeita do meu avô Saulo.

Mas pelo menos voinho já ficaria satisfeito se eu fizesse um técnico de enfermagem ou fosse professora de pré-escolar.

Embora minhas notas não fossem boas o suficiente para passar nem no curso menos concorrido da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Como eu também não podia pagar uma Faculdade de Medicina ou Direito, acabei conseguindo um preço razoável num curso de engenharia de uma faculdade particular.

Pelo menos isso acalmou mais o Seu Lunga que havia nele.

Semana após semana eu me matava para frequentar as aulas após um longo dia de trabalho (ser supervisora não é tão glamouroso quanto parece).

Isso quando não me atrasava ou, até mesmo, faltava por ter que ficar depois do meu expediente.

Como se já não bastasse ter que trabalhar de domingo a domingo (com uma folga na quarta-feira).

Admito que de vez em quando eu dava uma gazeada (cabulava aula), mas ninguém é de ferro, né?

Assim eu ia me arrastando.

Largar às dez da noite, tendo que estar de pé no dia seguinte às cinco num loop infinito que mais parecia que tinha morrido e essa era minha punição no purgatório.

Na manhã em questão que eu estou me referindo, aconteceu algo que foi a gota d'água!

Minha prensa francesa, que fazia o meu café consolador de todas as manhãs, caiu no chão e se estilhaçou depois de eu ter tropeçado no tênis que o Benedito deixou jogado na cozinha.

Ok... Fui eu quem deixou o par de tênis jogado lá na noite anterior, mas isso não vem ao caso!

Certo.

Eu me rendo.

Mereci mesmo.

Fui sacaneada pela minha própria bagunça.

Não podia confiar nem em mim mesma.

É muita decadência, na flor da idade...

Antes de me m****r deixar de frescura, saiba que acordar com enxaqueca e quebrar a prensa foi apenas o começo.

O primeiro peteleco na fileira de dominós erguida ao longo do dia.

Enfim, respirei fundo.

Sem cafeína e ainda mais irritada, fui para o trabalho dando uma passada na padaria do seu Juquinha em busca do inominável café solúvel dele.

Mas ainda não estava pronto.

Agora me explica como pode uma padaria sem café quentinho de manhã logo cedo?

Marchei com força até a empresa e entrei no meu setor botando fogo pelas ventas.

- Bom dia. - cumprimentei jogando a bolsa em cima da minha mesa.

- Eita... Acordou hoje com o pé esquerdo, né não chefa? - perguntou Nala, a melhor funcionária do setor e meu braço direito.

Em minha ausência, Nala tinha liberdade para tomar decisões por mim e nunca decepcionou.

Eu trabalhava em um call center supervisionando uma equipe de retenção com vinte funcionários e, fora de lá, eu também tinha que ser pau para toda a obra.

Lá eu tinha que ser gestora; operadora; vendedora; professora; mãe; psicóloga (como se eu tivesse a menor condição de ser uma) e tudo o mais que se esperava de um ser humano enquanto ainda tinha que aguentar a administração chamando a gente de "família" enquanto dizia que eu fazia corpo mole e sugar tudo o que podia da gente como se os supervisores tivessem aberto mão de sua vida pessoal em detrimento da empresa.

Ainda tinha que ter paciência com alguns (poucos) subordinados que achavam que mereciam estar no meu lugar e que eu só estava nessa posição porque dava para o chefe, embora eu não suportasse aquele sujeito.

Quem dera eu estivesse pelo menos dando para alguém...

Porém, por mais que eu me sentisse sozinha, a última coisa que eu iria querer na vida era me envolver com alguém da empresa.

Além da óbvia falta de ética, eu jamais iria querer que as mentiras sobre meu envolvimento sexual com pessoas do trabalho se tornassem verdade.

A única coisa que fazia algumas pessoas não terem certeza de que eu não transava, ao menos com o Benedito, é que - no fundo - todo mundo achava que ele era gay.

Nosso trabalho no setor de retenção, em resumo, era apelar de todas as maneiras possíveis e impossíveis para evitar cancelamento de serviços por parte dos nossos queridos clientes.

Eu não tinha do que me queixar.

Estava com a vida ganha.

Nasci virada para a lua e não devia desperdiçar as oportunidades que a vida me deu.

Pelo menos era o que meu pai sempre dizia enquanto assistia minha vida de fora.

Tinha minha casa própria, herança de minha avó - o que já reduzia bastante as despesas fixas com moradia, já que não gastava com aluguel ou taxa de condomínio.

Eu não saía gastando com roupas e sapatos tanto quanto a minha amiga Manu, nem era tão econômica quanto Zaci que levava até os centavos em consideração na hora de pagar por alguma coisa.

Nem carro eu tinha.

Meu problema maior era a bendita faculdade.

Quase mil reais só de mensalidade, todo mês.

Eu certamente não iria conseguir continuar pagando essa nota se não fosse meu cargo de supervisora numa empresa de grande porte.

Com isso eu conseguia pagar as contas e me permitir alguns pequenos luxos de mulher e festeira.

A verdade é que, ao contrário da faculdade, eu não conseguia nem imaginar o que seria de mim sem o meu emprego.

Subi na empresa pelos meus próprios méritos.

Sempre fui muito boa em lidar com pessoas.

Eu as ouvia, tratava bem e buscava as soluções cabíveis para solucionar seus problemas.

Por incrível que pareça, isso que me garantiu um crescimento tão rápido.

Aos vinte anos fui promovida, com apenas dois deles como atendente de telemarketing.

Tenho certeza que isso acabou incomodando alguns dos funcionários mais antigos.

Mal sabiam eles que com a promoção viria uma sobrecarga ainda maior de estresse.

Se quando era apenas uma atendente, eu me sentia exausta por trabalhar nessa área, como supervisora, precisava garantir minha produtividade e a da minha equipe.

Precisava mantê-los motivados e atingindo as metas mensais.

Agora me diz como garantir tudo isso se eu não tinha ânimo de levantar da minha própria cama?

Era uma verdadeira relação de amor ódio, pois eu odiava o trabalho em si, mas além de uma remuneração diferenciada, eu também amava minha equipe e as pessoas que eu mentorava na empresa.

Como disse antes, eu sei lidar muito bem com pessoas, além de fazer questão de ser uma boa referência para outros colaboradores.

Especialmente as mulheres.

Ainda mais em especial a Nala, que quando eu fosse promovida tinha certeza que ela seria a pessoa perfeita para ficar no meu lugar.

Por isso sempre me sentia culpada por não ser feliz com meu emprego.

Eu só queria um trabalho onde pudesse, de algum modo, sentir que estava mudando o mundo para melhor.

Ali, no setor de retenção, eu milagrosamente mudaria um chato prestes a cancelar um serviço para um chato com dez por cento de desconto.

Como diria meu pai: "Pés no chão, Maria. Sonhos são para os ricos e para as crianças".

Ao contrário do que muitos pensavam, eu estava longe de ser rica.

Também havia aceitado que não tinha mais idade para sonhar.

Eu ainda não tinha aceitado que tinha completado vinte e cinco anos de idade.

Quando pensava sobre isso, na minha mente só se passava uma coisa:

Dali para frente era só ladeira abaixo.

Sem fadas madrinhas, príncipes encantados, anjos ou demônios.

Somente a "vida real", que fazia questão de se manifestar das mais diferentes maneiras.

Naquele dia, era uma cafeteira quebrada em pleno dia que acordei acompanhada, não de um chameguinho de alguém, mas de uma puta de uma enxaqueca miserável.

- Minha prensa quebrou. Né foda? Logo a prensa francesa... - respondi a Nala com o cenho franzido.

- Vixe! Coitada... Tu quer um café da máquina? Eu posso ir pegar.

- Por favor, Nala. - eu odiava aquele tipo de café, mas não estava em posição de escolher. Talvez isso pelo menos ajudasse a diminuir a enxaqueca.

- Com certeza! Só que primeiro... - eu conhecia aquele "só que" de Nala. Era um mau presságio.

- Vai mulher! Desembucha - disse eu após bater na madeira da mesa para isolar o que viesse pela frente.

- Dona Dolores tá na linha... Ela quer... assim... falar com a supervisão

- Puta que me pariu! - xinguei.

Dona Dolores havia contratado o plano mais caro, que incluía telefone móvel, fixo e internet.

Mas, nos últimos anos, a velha coroca já tinha conseguido - com seus ataques de pelanca - um acúmulo de descontos tão grande que em pouco tempo estaríamos começando a pagá-la para continuar sendo nossa cliente.

Como supervisora, eu não podia dar mais nenhum desconto para aquela bruxa (desculpa voinha).

O que estava por vir agora seria ficar presa numa guerra sem poder revidar e apanhar tanto da cliente, quanto da administração.

Além de não querer deixar essa bomba com meus colaboradores, como norma da empresa, eu não podia interromper a ligação (desligar na cara daquela jararaca).

Ela era viúva, sem filhos e bipolar.

Tomava os remédios quando bem entendia e, quando não tomava, descontava sua agressividade ligando para o meu setor, exigindo um maldito desconto.

Eu entendo que ela era doente e não tinha culpa de sua condição, mas eu não era psiquiatra e tinha muito mais coisa para fazer além de tentar agradar uma mulher adulta que não tomava seus remédios.

O que é que eu tinha a ver com os ataques de fúria dessa mulher?

Mas se Nala estava passando aquela ligação para mim era porque todas as possibilidades de manter um diálogo saudável com Dona Dolores já haviam sido esgotadas.

- Pode transferir pra mim - falei tomando fôlego - e, Nala, me traz um café bem quente e bem forte tipo de soldado ao ponto de eu mastigar a borra! Por favor...

- Alô? - berrou a voz do outro lado, mal atendi e afastei o telefone do ouvido protegendo meus preciosos tímpanos.

- Bom dia, Dona Dolores. - cumprimentei.

- Bom dia o caralho! Quero falar com o gerente!

- Sinto muito, Dona Dolores, mas a senhora vai ter que resolver comigo mesmo...

- Não sei o que é que esses frescos tão esperando pra te demitir! Uma quenga incompetente dessa!

- Fico feliz em saber que a senhora se importa com o desempenho da empresa, Dona Dolores. Como posso ajudar?

- O serviço de vocês é um cu! Ou tu me dá algum desconto agora ou eu cancelo e ainda te boto na justiça!

- Dona Dolores, a senhora tem setenta por cento de desconto e nenhum motivo pra reclamar. - rebati com a voz mais calma que conseguia.

Acredite em mim ela nunca teve um problema sequer com nosso serviço.

A maldita internet dela nunca caía.

A minha era feita de açúcar, qualquer chuvinha já mandava meu sinal para onde eu queria m****r a Dona Dolores naquele momento.

- Tá me chamando de doida ou de mentirosa? Me diga agora que eu já boto direitinho no processo, sua caça-rato!

- Eu não disse isso não, Dona Dolores - mas bem que gostaria.

- E aí, quanto vai ser meu desconto?

- Como disse antes, a senhora tem setenta por cento de desconto. Não podemos continuar nesse ritmo ou, daqui a pouco, nosso serviço vai ser gratuito para a senhora.

- Apois devia ser de graça essa porqueira! Não vale merda esse serviço de vocês!

- Dona Dolores...

- Tu vai mesmo continuar me cozinhando, é? Quero meu desconto! Bora! Já com o telefone do advogado aqui na minha frente...

- Não posso dar desconto Dona Dolores... A senhora sabe que...

- Filha de uma rapariga!!! - gritou mais alto fazendo minha cabeça latejar ainda mais.

Eu estava pedindo a Deus que me desse paciência, porque se me desse forças eu iria quebrar a cara daquela velha.

- Dona Dolores... Vamos ser um pouquinho mais civilizadas? Nós duas somos mulheres. A gente deveria era se unir, a senhora não concorda? Senão... - neste momento Nala pousou um copo de café sobre minha mesa com olhos arregalados.

Dei um gole ansioso no café como se fosse o último copo de água fresca além do deserto do Saara.

Queimei a língua.

Porra!

Olhei feio para Nala, que, desconsertada, seguiu para a própria baia.

- Ou o quê, sua filha da puta?!!! Não me venha com ameaça, não! E nem venha com esses negócio de puta desocupada que sai na rua pra gritar mostrando o priquito!

- Do que a senhora está falando?

- Tu aí me ameaçando com porra de feminismo! Eu sou uma mulher decente, rapaz! Me respeite!

- O que eu ia dizer é que se não houver cooperação eu serei obrigada a encerrar essa chamada. Não admitimos insultos...

- Vai nada! Eu sei que vocês não podem desligar! Eu vou incluir isso no processo, viu?

- Um bom dia pra senhora. - desliguei fervendo de raiva.

Apoiei os cotovelos na mesa e massageei minhas têmporas com as pontas dos polegares, tentando a todo custo não explodir ali espalhando meus miolos pelo setor.

Sempre mantinha velas aromáticas na minha mesa para deixar o ambiente aconchegante.

Acendi duas delas feitas a base de óleo essencial de lavanda e suspirei, sentindo o cheiro se espalhar pela sala.

Meu celular tocou.

Olhei para o visor.

Tinha umas vinte chamadas não atendidas da minha mãe.

Ótimo!

Tudo que eu não precisava.

- Oi mainha.

- Bom dia, meijinha - cumprimentou. Pelo tom de voz, eu sabia que viria chuva de bosta.

Nesse momento, Nala apoiou as mãos na minha mesa com cara de notícia ruim.

- Peraí, mainha. - baixei o celular e comecei a dizer a Nala. - Diga a Dona Dolores... - comecei, mas ela me interrompeu.

- Não é Dona Dolores... O servidor principal caiu. O pessoal do suporte não tá dando conta das ligações. Estão dizendo que a gente precisa atender também pra ajudar.

- Certo. - fiquei em pé me dirigindo a toda equipe - Pessoal, o servidor principal caiu e a gente vai ter que dar uma força pra o suporte agora, tá bom? O atendimento padrão pra quando o servidor cai.

Dezenove cabeças assentiram para mim (com algumas queixas sobre a frequência que a gente tem que fazer isso) e eu coloquei o celular de volta no ouvido.

Um barulho enorme de telefones tocando e atendentes repetindo a mensagem padrão como um monte de robôs tomou conta da sala.

- Diga logo, Mainha! Tá um dia daqueles aqui na empresa.

- Mas tu não é chefe? Bota o povo pra se fuder aí.

- Eu já disse que se eu não tivesse que trabalhar não fazia sentido eles pagarem meu salário todo mês, né mainha?

- Então. É sobre isso que eu preciso falar contigo.

- Sobre meu trabalho?

- Escuta, eu preciso de trinta mil reais até amanhã, no máximo! - disse de uma vez.

- O quê?!!! - berrei - A senhora pensa que eu tô cagando dinheiro, é? De onde é que eu vou tirar esse dinheiro mainha? Do cu?

- Deixa de ser pirangueira que eu bem não sei que tu ganha é muito dinheiro aí como chefe! E negando à própria mãe!

- Mas mainha! Se eu tivesse esse dinheiro pra distribuir, a senhora pensa que eu ia tá aqui me matando??? Fora as lapadas que eu tenho que ficar te mandando direto?

- Meijinha! Escuta tua mãe: Eu tô devendo a agiota.

- Aí a senhora quer me fuder! Eu que nunca peço dinheiro nem a painho, agora vou ter que dar o cu pra pagar agiota???

- Tu não pede porque tu tem dinheiro, mal agradecida! Eu não tive a mesma sorte que tu não, visse?

- Sorte? Eu? Quando é que a senhora já teve que trabalhar na vida?

Sinto muito por você ter que testemunhar a forma como eu tratava minha mãe.

Não me orgulho muito disso.

É que ela era...

Digamos que, fora dos padrões de uma "mãe clássica".

Sabe as mães amorosas e cuidadosas com os filhos mesmo quando eles têm idade suficiente para cuidarem da própria vida?

Minha mãe não se encaixava muito nesse estereótipo.

Na verdade, depois que minha avó morreu, eu tive que segurar esse rojão, já que meu pai nem as ligações dela atendia mais.

Pelo menos ele podia se dar ao direito de não ter mais vínculos com ela.

Eu não.

Filha única, se eu não cuidasse de mainha, não sei se eu ficaria mais preocupada com ela ou com o mundo enquanto ela estivesse à solta.

- Meijinha... Eu não tenho mais a quem pedir ajuda. Tu sabe que todo mundo sempre virou as costas pra mim... - ouvi enquanto apertava os olhos com minha enxaqueca ainda mais forte me apunhalando.

- Olha Mainha, eu vou ver isso, tá? Mais tarde a gente se fala.

Desliguei sem dar espaço para resposta.

Minha equipe estava surtada atendendo mais de uma ligação por minuto, eu precisava ajudá-los.

Já tinha ouvido por alto um deboche de que enquanto eles estavam apagando aquele incêndio, eu estava batendo papo com minha mãe ao telefone.

Aff...

Comecei a atender junto com eles.,

Quanto mais ajuda melhor.

E, ao contrário do que muita gente pensava, eu não deixava de botar a mão na massa por ser "superior".

Além do mais, a resposta era padrão:

Alô, bom dia... Sim. Não está funcionando por causa de uma instabilidade no servidor principal. Por favor, aguarde trinta minutos e teste novamente.

Quando eu estava pegando o embalo, a porta da sala se abriu com força suficiente para jogar a maçaneta na parede.

O que causou um barulho tão alto que chamou a atenção de todos na sala.

- Mas que porra... - comecei a dizer colocando o telefone no gancho.

- Tu desligasse na minha cara, derrota! - era Dona Dolores.

Mais tarde eu xingaria Nelson por não ter detido aquela entrada.

Nunca mais trago bolo para aquele segurança desgraçado, Jurei.

Fiquei de pé, colocando as mãos na cintura, sentindo a minha raiva atingir um nível acima da média.

Eu mesma não conhecia aquele nível.

- Péssima hora!

- Olha aqui sua rapariga de cego, trate de me dar o meu desconto agora ou eu quebro essa sala todinha. - ameaçou.

Recuei ganhando espaço para começar a gingar com meu lado capoeirista começando a se animar.

Eis que meu chefe Mathias irrompeu pela sala.

Agora pronto!

A merda já estava completa.

Mathias gerenciava a empresa há cinco anos e se minha vida lá era um inferno, ele era o próprio capiroto sentado no trono.

Você também pensaria isso se seu chefe exigisse coisas como, por exemplo, chegar duas horas mais cedo para garantir o preenchimento de todas as planilhas.

Ou fazer hora extra sem remuneração, só porque na opinião dele: Somos uma família e temos que vestir a camisa da empresa, colocando seu amor pela família acima do amor ao dinheiro.

Eu não tinha esse amor todo pela empresa, imagina ele que sempre chegava atrasado ou saía mais cedo...

- Maria! Essa senhora disse que foi destratada por você!

- Foi tu que deixasse essa doida entrar? - perguntei mostrando os dentes.

- Doida? - gritou Dona Dolores.

- Maria! - repreendeu Mathias.

- Pois escutem os dois - falei apontando um dedo na direção deles - A gente tá com um fluxo enorme de ligações! Não posso parar e dar atenção aos caprichos de vocês. Passem mais tarde depois do gás ou daqui há trinta anos, quando eu tiver aposentada e bem longe!

- Sua puta! - bradou Dona Dolores - Não saio sem meu desconto.

- Eu não vou mais te dar um centavo de desconto! Tu ainda não entendesse? Cancela essa porra! É um favor que tu faz pra gente! - esbravejei com firmeza.

- De jeito nenhum! Venha comigo que eu lhe dou agorinha cinco por cento de desconto! - disse Mathias em direção à porta.

- Enfie esses cinco por cento no seu cu afolozado!!! Eu quero trinta por cento.- soltou Dona Dolores virando-se para mim.

- Teu cu! Agora, peguem o beco. Os dois! - ordenei.

- É o quê???

Furiosa, Dona Dolores veio na minha direção e jogou o café pelando no meu rosto.

O tempo parecia ter congelado.

Todos os presentes na sala pararam tudo o que estavam fazendo e me olhavam com os olhos duros como se eu estivesse dentro de uma foto.

No ar, o som de uma muriçoca pairando em algum lugar daquela sala.

Eu. Odeio. Muriçoca

- AAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Gritei com todas as forças que eu desconhecia que tinha, numa voz irreconhecível enquanto virava minha mesa com equipamento e tudo para mais longe do que achei que conseguiria.

Sabe o que é uma Besta-fera?

Caso nunca tenha ouvido falar, dá um G****e.

Já te adianto que é um tipo de demogorgon com rabo e chifre.

Ou, para simplificar, a criatura na qual eu havia me tornado diante de Mathias e Dona Dolores com seus olhos arregalados para o carpete.

A propósito...

Lembra das velas?

Pois bem.

Agora imagina a cena.

Uma ruiva, sardenta com os cabelos bagunçados, berrando maquiavelicamente em meio a chamas que subiam e se alastravam.

Eu parecia o próprio diabo no quinto dos infernos.

Para piorar, esbugalhei meus olhos negros e levantei os braços para o alto, girando como uma maluca.

Se quiser ter uma noção de como eu parecia diante dos presentes, procura um meme chamado Xablau.

Essa é a última cena da qual eu me lembro.

Depois disso restam apenas alguns flashes na minha mente.

Dona Dolores correndo para fora da sala com medo do fogo. Ou talvez de mim.

Mathias saltando no ar com um extintor de incêndio às mãos.

Gritos desesperados e uma equipe inteira se atropelando para sair da sala.

Parecia ônibus de integração em horário de pico.

Uma dor lancinante no meu peito e Nala gritando por uma ambulância enquanto me segurava em seus braços.

Foi assim que a minha vida, já complicada, fodeu de vez.

E eu só queria um cafezinho...

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