Maria Aparecida

Mais uma noite mal dormida. O médico do posto de saúde já havia dito que ela não podia ficar sem seu calmante e seu remédio da pressão. Mas já faziam 15 dias que ela rigorosamente ia toda manhã saber se já tinha chegado. Eram muito caros para serem comprados, mais do que ela gastava com comida no mês, apesar de menos do que o marido ainda devia com bebida no bar.

Então, às 5h da manhã, Maria Aparecida, a Dona Cida já estava em pé, fazendo seu café. As mãos trêmulas já não ajudavam mais como antes e a dificuldade era do tamanho da colher que ela usava para evitar desperdiçar.

Não eram só os movimentos. A vista falhava de longe, mas era de perto que dificultava mesmo. Forçava tanto que no final do dia a dor de cabeça só se resolvia com analgésico. Esse pelo menos o posto de saúde ainda tinha.

Ligava o rádio e escutava as notícias do seu programa preferido. Uma pena que aquele locutor da sua geração havia falecido, mas o jornalista que o substituiu era muito bom. Ainda bem que mantiveram o jornal. As notícias, para ela, todos os dias eram as mesmas. Mas a cada dia, sua esperança de que fossem outras se mantinha. Logo o marido iria acordar. Costa era um homem muito carinhoso, gentil, educado, um guerreiro. Quando ela pensou isso, automaticamente pensou em seguida que guerreira era ela... Apesar de tudo, depois de todos esses anos de crises e melhoras, ainda olhava pro marido apenas pelo lado positivo. Tentava esquecer o tormento que era, naquela idade, ainda ser refém do vício de uma vida. Tantas vezes que ele parou, tantas mesmas ele voltou.

Mas estava particularmente preocupada com sua filha mais nova. Desde a última vez que a viu na semana anterior, sentiu que ela precisava de ajuda. Debilitada agora, Dona Cida, que sempre fez de tudo pelos filhos, já não era mais a mesma. Sua caçula veio num momento em que ela nem acreditava que ainda era possível engravidar, já depois dos 50. E era com ela que Cida mais acreditava que falhou.

Hoje ela estava decidida a preparar sua especialidade, economizou e ia fazer um picadinho delicioso que pretendia levar para a filha e os netos.

Precisava convencer o marido ainda a ir ao banco resolver um problema da miserável aposentadoria que ele havia conquistado com tanto custo, que agradeciam tanto, afinal era único sustento que ambos tinham agora. Apesar do marido dizer que ainda trabalhava, na verdade ele prestava serviço de graça para os amigos. Sempre foi assim, aliás. Mecânico, fazia pequenos reparos para serem pagos depois e o depois nunca vinha. Agora, Cida já nem falava mais. No final das contas, dava menos trabalho deixar o marido se ocupar com o que era sua terapia. Estaria ele onde? Mais tempo no bar?

A única coisa que ainda dizia era pra ele perceber que era um homem velho e descuidado e que não tinha mais forças pra ficar fazendo esforço como antes, com risco de se machucar gravemente. É claro que ele não a escutava e a vida deles seguia em frente. Pedia a Deus apenas que alguma tranquilidade ainda viesse visitá-los nesse final de vida, mas depois de tanto tempo, já nem acreditava mais tanto nisso, apesar de continuar devota de seu amado São Miguel.

Ficou perdida em seus pensamentos e esqueceu o leite fervendo, deu aquela corridinha para desligar antes dele vazar e sujar todo fogão e quase caiu. Pensou depois que até um tempo atrás teria preferido ter caído do que ter que limpar o fogão que tinha já esfregado no dia anterior. Depois, refletiu e pensou que até algum tempo atrás, dificilmente teria quase caído naquela corridinha e que era melhor ela não arriscar uma próxima vez.

Colou o café no copo para ela e o marido e tentou lembrar qual era o remédio que deveria tomar naquele horário. Sempre vinha em sua cabeça a piada de que era o remédio para memória, claro, ela ria sozinha e se confundia ainda mais.

- Meu bem, qual o remédio que tenho que tomar agora, mesmo? - Ela gritou para o marido que estava no quarto, sabendo que ele já estava acordado, mas só de olhos fechados.

- Deve ser o da memória! - gritou ele lá de dentro do quarto, rindo. Ela pensou consigo mesma: “Que idiota! Como podemos ser tão parecidos?”

Voltou para a cozinha, vencendo a preguiça, para tentar decifrar o roteiro que seu filho tinha fixado com os 8 remédios regulares que ela tinha que tomar, para fazer as contas e se lembrar.

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