O Deserto

André abriu os olhos. O Sol quente ardia seu corpo todo. Estava deitado numa areia escaldante. Sentia como se a areia tivesse invadido seus poros, entrado pela boca, presa por todo seu cabelo. Lembrava o que tinha acontecido. Será que sobreviveu e foi sequestrado? Atirado no meio do nada? Sentia seu corpo diferente. Foi tentando levantar e se percebeu mais magro, seu abdômen definido como de um atleta, seus braços mais finos. A ideia de que havia morrido e que estava em outra realidade passava por sua cabeça, mas a possibilidade de  sonho fazia mais sentido para ele.

Ao ficar de pé, olhou para o céu e viu dois Sóis. A combinação da luz, na posição que estavam dava um avermelhado para todo aquele cenário entre areia e céu infinitos. O céu foi se cobrindo de nuvens, ficando mais escuro rapidamente, o som lembrava o de turbinas de aviões. Algo se aproximava! Então um raio espetacular caiu na frente de André, seguido de uma incrível explosão de fumaça. Ele que acabara de levantar, despencou novamente, não sabia se de susto ou do impacto. Da fumaça se dissipando a imagem de um homem surgia. Vestia uma armadura escura, que parecia uma escama e usava um capacete, ou máscara, que ao se aproximar de André, retirou. Era um homem negro que parecia mais velho, barbas e cabelos brancos, mas muito bem cuidado, poderia ser descrito como um galã da terceira idade. O homem parecia incrédulo, olhava para André como se ele fosse um alien, uma anomalia. Sem falar nada, inspecionava cada parte dele, se aproximando assustadoramente, mas algumas vezes quase que de forma cômica.

Ele, então, se afastou e com um cajado que carregava começou a bater no chão e criar raios para o alto. Criava um círculo em volta de André e fazia os raios em determinados pontos. Aos poucos outras pessoas se materializavam nos pontos onde os raios eram criados. Em pouco tempo ele estava no meio de uma roda de 10 pessoas que pareciam todos cavaleiros, pelas vestimenta, que pareciam com o que poderia ser armaduras, não podia muito bem identificar se homens ou mulheres, naquela altura essa informação nem significava tanto, já que não sabia nada do que estava acontecendo, tudo muito fora da sua realidade.

- Hagar, não acredito que isso possa ser mesmo verdade! Isso é o que estou pensando? - Perguntou um dos Cavaleiros, também tirando sua máscara. Esse parecia muito mais com um ancião, mais baixo, com muito mais barba, menos cabelos.

- Não, sei, Hertho, chamei vocês imediatamente! - Respondeu quem deveria ser Hagar, o homem que chamou os outros.

Um último ponto onde aquele homem criou o raio ainda estava vazio.

- Krakor ainda não apareceu, o que é normal, tendo em vista que qualquer segundo perdido para entrar no portal equivale a muito tempo por aqui. - Respondeu, Hagar, percebendo uma indagação com o olhar da maioria dos presentes sobre isso. - E vocês bem conhecem Krakor e sua pré-disposição em conseguir problemas.

- Bom, dá última vez já tentamos matá-lo, então, acho que todos sabemos. - Disse uma nova voz dentre os cavaleiros ali.

André, frente aquela situação se mostrava perplexo e completamente congelado. Catatônico seria a melhor definição.

- A profecia finalmente se cumpriu? O garoto destinado a revelar os mistérios do Universo está na nossa frente? - Uma voz mais fina, que seria mais feminina aos ouvidos de André questionava o que para este transformava toda a situação em algo ainda mais absurdo do que para ele já se apresentava.

- Não existe essa coisa de profecia, Hagar, de onde você tirou esse menino? -  Perguntava outro, de voz mais grave.

- Juper, como eu já disse, ele simplesmente apareceu aqui, senti sua energia de vida, voei imediatamente para cá e chamei vocês tão prontamente que nem conversamos ainda. - Explicou pacientemente Hagar. - Então, afinal, garoto. Talvez consiga nos dar alguma resposta, quem é você? De que planeta veio? Quantas vezes já morreu? - Perguntou se dirigindo a André.

- Eu... Eu... - André ouvia sua própria voz com muita dificuldade, parecia que sua fala estava desregulada, não sabia se as palavras que ele dizia eram as que ele pensava. Essa confusão gerou uma reação em cadeia estranha em todo seu corpo e em seus outros sentidos. Uma espécie de dor, formigamento, a luz ficava mais forte e mais fraca pra sua visão e isso deixava ele um pouco tonto, com uma sensação de que iria cair. A respiração ficava ofegante pra em seguida ele sentir os mais diversos odores que não podia identificar, vindos das pessoas ali presentes.

- Ele está tendo uma crise, Hagar, possivelmente essa foi sua primeira morte. - Disse um homem, fala que criou um gatilho de desespero ainda maior em André.

- Eu conheço os mais variados tipos de socorro para crises pós primeira morte seja para planetas de vento, de água ou de fogo, mas não faço a mínima ideia de como reagir no nosso planeta. - Uma voz que parecia mais feminina de quem ainda não tinha se pronunciado antes não acalmava o estado de André.

Um dos Cavaleiros se aproximou do rapaz, o abraçou e começou a sussurrar em seu ouvido.

- Feche os olhos e respire bem fundo, se concentre na sua respirações, não pense em mais nada, apenas em como seu corpo se comporta enquanto você respira, inspire, segure o ar dentro de você um pouco, o quanto quiser e expire - André seguia as orientações do homem aos poucos - Isso mesmo, sinta seus pulmões repletos de ar, o movimento que eles fazem, a expansão. Sinta a passagem pelo seu nariz e por cada centímetro dentro do seu corpo. - André repetiu o movimento algumas vezes e ia se sentindo mais calmo. Parece que estava dando certo. - Agora, tome consciência do seu corpo! Perceba que você pode movimentar seus dedos, mesmo nos pés, que parecem tão distantes. Sinta seu corpo! - O cavaleiro já percebia que André já tinha recuperado o controle. - Pode abrir os olhos, agora! - André obedeceu e o homem soltou-o dos braços e deu um passo pra trás. - Você já deve ter entendido que morreu e que está em um outro plano, certo? Uma outra realidade! Agora, nos diga seu nome e o nome de seu planeta. E em seguida também daremos mais detalhes sobre o que está acontecendo com você.

- André, eu acho, meu nome é André, mas não entendo, não estou no meu corpo, não parece ser meu corpo. - André parecia querer falar tudo que estava sentindo de uma vez. - Então, tudo parece confuso, minhas memórias podem ser sonhos? Eu vivi mesmo tudo que me lembro? Me lembro de tudo que vivi? Meu planeta é a Terra, Earth, não sei em que língua vocês poderão identificar. Não sei nem como entendem minha língua e eu a de vocês. Um planeta azul... O quarto ao redor de um Sol, no meio de oito, nove, talvez dez outros. Nem nós sabíamos muito na verdade a respeito do nosso sistema solar. - André explicava da forma que podia.

As expressões, que agora já eram mais visíveis, pois a maioria já estava sem máscara, eram confusas e se misturavam às de surpresa e felicidade.

- A Terra? Quem diria! Apesar de ser um mundo bem evoluído para um planeta de nível 1 é um lugar onde seus habitantes têm pouca habilidade em converter conhecimento científico e tecnológico em evolução social. - Disse, Hertho, um dos poucos que André conseguia identificar pelo nome.

- Hertho, parece que você conhece bem meu planeta. - Concordou, André, num misto de ironia e pesar.

- Acho que Zeon foi o único que ficou lá algum tempo. Alguns de nós visitamos a Terra, numa época em que ainda não tínhamos restringido nossa atuação em planetas de primeira vida. - Hertho olhou para um mascarado enquanto falava que deu de ombros e virou seu rosto de lado, nitidamente incomodado. - Sobre a língua, todos que morrem passam a ter um entendimento de linguagens, deixando de entender apenas palavras que não tem nenhum significado para seu cérebro. Mas antes de mais nada, vou te explicar rapidamente um pouco sobre o que sabemos de mais importante sobre o Universo e o motivo de estarmos tão surpresos com sua presença aqui. Até hoje, conhecemos 6 níveis de planetas. Nos planetas de nível 1, a vida começou. Durante o início da expansão do Universo, de alguma forma elementos químicos reagiram à formas de energia criadas pelo mesmo universo e passaram a ter vida, crescer, evoluir, se reproduzir de forma espontânea. A exata origem desse processo não é conhecida mesmo para nós, é portanto o nosso maior mistério que tentamos desvendar pois, apesar de termos vivido Eras, a criação da vida é bem anterior a nós. Nos planetas de nível 1, que estão mais ao centro do universo, nascem apenas seres de sua primeira vida. Nós chamamos esses seres de CONC, Corpo Orgânico Natural Cerebral. Quando um CONC morre nesses planetas, uma energia quântica gerada no cérebro, que é responsável por carregar toda a informação daquela vida, se teletransporta para um outro planeta e se materializa em um novo corpo. Esse corpo assume uma forma que a pessoa já teve em vida, normalmente essa forma é associada ao nível de evolução que o ser tem em relação ao planeta e ligada à idade biológica natural. Ou seja, se uma pessoa é pouco evoluída para renascer naquele mundo, apenas o básico, ela surge como uma criança, ou um adolescente, que é o mais comum. Quando a pessoa renasce com um nível de evolução próximo do máximo em relação ao nível do planeta que está, ela tem a aparência de um idoso. A primeira morte leva o ser a um planeta de nível 2. Existiram relatos comprovados de renascimento em nível 3, muito raros. Você renasceu em um planeta de nível 6. O único planeta nesse nível em todo o Universo. Planeta esse que até hoje, em milênios, recebeu apenas 12 renascidos, nós 11 aqui na sua frente e um último maluco, atrasado, por sinal. Todos nós já vivemos em planetas dos 5 níveis antes desse. Somos os únicos seres que podem enviar uns aos outros por teletransporte para outros planetas. Somos, portanto os únicos que podem escolher para qual planeta ir, independente da aleatoriedade algorítmica da morte. Já fomos deuses em outros mundos. Hoje já não fazemos coisas assim pois as consequências são normalmente nefastas em aplicar nosso poder em outros mundos e a relação do espaço-tempo acaba sendo um fator que põe em risco nosso controle e conhecimento do que acontece no resto do Universo. Esse planeta é o mais distante do centro do Universo que pode ser habitado, que nós já conhecemos. Aqui, portanto o tempo passa mais lento do que em planetas mais próximos do centro. Quanto mais perto do centro mais rápido o tempo passa em relação a nós. Passar alguns meses na Terra, significa algumas décadas ou séculos por aqui. Quando voltássemos, muita coisa estaria diferente. Com o passar do tempo criamos uma série de regras para agirmos e mantermos tudo funcionando com alguma ordem. Tentamos ser responsáveis por um mínimo de paz no Universo. Agora sobre você estar aqui... - Hertho fez uma pausa na longa explicação que André acompanhava boquiaberto, olhou para Hagar que entendeu que era o novo dono da palavra.

- Sobre você estar aqui... - Continuou, Hagar. - Existiram profecias, em todos os nossos primeiros mundos, de nós 12, que de formas diferentes diziam que um dia, um garoto surgiria diante dos sábios mais poderosos do Universo e traria com ele todas as respostas para o segredo da vida. Cada planeta tem uma versão para esse mito, mas todas giram em torno desse tema. Digamos que depois de estarmos aqui por tanto tempo, comparando histórias e crenças, acreditamos um dia que um garoto poderia aparecer aqui. Com o passar do tempo desistimos dessa crença, mas ainda assim mantivemos um protocolo. Se um dia, o guardião do espaço-tempo, aquele que fica nesse planeta obrigatoriamente, função essa que revezamos de tempos em tempos, se um dia ele mandasse um portal a partir de um raio, significaria chamado imediato e a possibilidade da profecia ter se cumprido. Bom, foi o que eu fiz!

- E agora estamos aqui! - Disse com uma voz imponente aquele que deu de ombros anteriormente.

Ouvindo tudo isso, André lembrava mais detalhes da sua morte. Toda aquela história maluca de profecia, o cálice. E o que teria acontecido com sua irmã?

- Parece que ele está recuperando algumas memórias da morte. Ele soube de alguma profecia antes de morrer e... Aparentemente tem sangue de dragão nessa história. - Uma das mulheres aparentemente lia a mente de André e compartilhava com nos outros. A palavra dragão deixou todos tensos e automaticamente apreensivos, olhando de forma acusatória para Zeon.

- Ah, qual é, eu voei e soltei fogo pela boca uma única vez, essa gente idolatra os outros muito facilmente. - Zeon se defendia de algo que não parecia muito defensável.

- O fato de você ter sido Rei, virado um Deus mitológico, tendo seus feitos heróicos recriados nas mais diversas línguas e religiões nesse planeta foi só porque você soltou fogo pela boca e fez um vôo uma única vez, por certo! - Replicou a leitora de pensamentos.

- Não podia imaginar que tanta gente poderia se aproveitar da história da minha passagem por lá depois. E tentar consertar criava mais problemas que deixar como estava. Bom, vocês já me julgaram por isso... - Dizia, um pesaroso Zeon.

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