CAPÍTULO 1: FELIPE IV, O BELO

CAPÍTULO 1: FELIPE IV, O BELO

“Sempre quis ouvir uma música que extasiasse meus sentidos e me conduzisse a um lugar encantado.... Imagino que lá as corujas com um par de olhos tão reluzentes quanto as clareiras noturnas cantem, e, criaturas inimagináveis dancem e sussurrem palavras em nossos ouvidos, até alguém ousar pressagiar aquilo que elas querem dizer. Já sonhei com uma que só pode estar pintada em livros raros: ela parecia um animalzinho de corpo magro com uma longa cauda como a de um marsupial; lembrava um pouco um felino, uma espécie de lobo-da-tasmânia, porém com olhos grandes e bem arredondados como os de jaguatirica, mas os dedinhos de suas patas eram mais alongados.... Não sei dizer o que era, só sei que é tão curiosa a sua beleza, que temo que ela não venha a existir mais.”

“De repente, a fantasia se torna um pesadelo quando aquele bichinho desconhecido abre um sorriso e sua boca mostra milhares de dentes fininhos e afiados e vejo três olhos em sua cara, um era até meio vesgo. Não sei o porquê, mas só poderia ser obra de bruxaria uma coisa dessas!”

“Às vezes eu sonho com uma criança abandonada no meio de uma floresta sendo resgatada por uma mulher desconhecida. Ouço o seu choro em meio aquelas árvores sombrias, em um vale sem cores, sem pássaros, só envolto pelas sombras, lá nem a luz do sol parece tocar. Não consigo ver rosto da dama, só sei que ela usa uma capa negra e parece jovem... [...]”.

“Bem, não tem sido tão fácil para mim estes últimos dias.... Parece que eu não consigo sentir nem o gosto da uva.... Parece que minha vida se tornou sem graça perante essas lutas políticas cujos destinos sempre são a morte.... Os mentecaptos tentam ferir minha reputação.... De forma maligna se atentam a possuírem meus bens e a derrubarem meu trono.... Atacam a dinastia dos Capetos, desonram nossa nação e com línguas tão bem afiadas quanto às espadas, proferem mentiras e buscam nos amedrontar.... Tudo para retirar o nosso sangue e adulterar o nosso controle em nome de sua ganância e desejo de cobiça! As vozes nossas são abafadas, martirizadas, não penetram mais os ouvidos de quem deveria nos ouvir.... As crianças morrem em desalentos, a tristeza abate meu coração que injurioso se culpa muitas vezes sem nenhuma dó.... O fardo deste reino parece tão pesado de se carregar, que o meu corpo parece estar sempre fatigado de tanto trabalhar.... Respiro profundamente e volto a retirar as lágrimas do meu rosto...”

“Se há uma questão em que a incomplacência[1] das minhas dores, me faz pensar que eu não chego a lugar algum, tento me reerguer das minhas quedas como monarca e faço o que me apetece: convoco meus cavaleiros de armaduras brilhantes de aço para se armarem contra os inimigos, e tudo o que ouço em minha mente é um comando sublime, que conversa comigo, que parece latejar em minha cabeça com o seu eco, que parece se destituir de compaixão por mim e terrivelmente amedronta o meu ínterim: “Iudicii Signum”... Como se essa voz não fosse o bastante para me perturbar, não sei de onde ela vem, só percebo que os médicos não sabem explicar o motivo de ela existir. Só sei que curandeiros de tribos distantes vieram até mim e derramaram um pouco de óleo sobre minha testa e disseram ser a voz do Grande Espírito...”

“Convidei adivinhos de todas as partes do reino e eles disseram que podem ser vestígios dos deuses tentando entrar na minha mente para me fazerem obedecer aos seus preciosos comandos... Os clérigos e sacerdotes da Igreja disseram que pode ser algo do Altíssimo me abençoando se a voz me levar à boas obras... Ao contrário, só poderia ser a voz do demônio cochichando em meus ouvidos, me fazendo desprender do meu próprio domínio, para me levar a um caminho de escuridão, prestes a me devorar nas chamas das trevas infernais.”

“Não me conformei com essas formas de pensar... A minha busca por algo novo me foi tão incessante, que visitei muitos outros templos religiosos, e a voz ficava tão cada vez mais clara em minha mente, que eu começava a ouvir novas vozes se misturando com outras, que aquilo me deixava até enlouquecido. Não era possível saber de onde elas vinham, mas elas se repetiam na minha mente, até eu ouvir algumas melodias oníricas, que pareciam até cantos celestiais, talvez, ou de ninfas perdidas em alguma ilha longínqua e deserta....”

“Senti que gostaria de voltar a algumas páginas daquela minha velha infância, só para ouvir novamente a minha mãe cantando para mim aquelas composições delicadas, que me faziam cochilar e ter bons sonhos.... Que nostalgia avassaladora! Ela dizia que quando eu crescesse seria como o meu querido pai: forte, ambicioso, sagaz e belo. Minha mãe fora um anjo para mim! Confiei nela em cada palavra dita. Sempre nas horas de angústia, ela me abraçava e dizia que tudo ficaria bem... Ela rezava Ave Maria e cantava as músicas alegres das santas. Dizia que eu era um filho de ouro, que eu tinha uma grandeza tão imensurável, que ninguém precisaria se iludir comigo...”

“Ainda lembro daqueles folclores que ela me contava. E de uma história lendária sobre uma floresta.... Até hoje depois que tantos anos se passaram, ainda muitos dizem sentir medo de entrar lá.... Não sei o que me aguarda, a cada dia que olho em meu reflexo descabido na luz prateada do meu espelho, parece que ele me revela uma nova feição de mim. Não sei se ele é mágico, se pertenceu a algum mago do bosque, se esteve nas mãos do encanto dos poetas de tempos passados, ou se foi o que restou de uma cidade perdida, mas é uma herança do meu trisavô, que foi passada de geração em geração.”

“Mas será que a imagem deste cristal não me julga todos os dias? Será que ele não aponta os dedos para mim e reflete os meus piores pensamentos? Ou que ele não me cobra pelo que estou fazendo e tenta me alertar dos dias perigosos que estão por vir? Oh, se dizem que o homem será julgado após renascer de suas cinzas.... Que um dia ele acordará em outro mundo, após passar pelo vale da sombra da morte e até lá terá que passar por aflições; que o maligno o assombra por onde ele passa e que aquela serpente do Éden quer engoli-lo nas chamas, na danação eterna...”

“Enfim, eu me vejo tão pensativo, que mal sei para qual caminho onde vou... Ainda meu ânimo não se esgotou tão completamente, ainda tenho uma marca na pele que é o sacrifício doce para a contemplação da vasta natureza.... Esta carne, atrofiada às vezes, sanguinolenta por outro lado, essa natureza do homem, desumana, egoísta, que fere e é ferida, essa sinfonia tão rebelde que ela costuma tocar.... Ela apenas está apontando para qual lugar eu devo ir...”

“Mas o problema é que o homem não se questiona sobre as tragédias da sua breve existência... Ele vive como se estivesse circunscrito em um círculo sem fim de sombras, de inquietações que nunca parecem cessar. Este mesmo pensa viver no auge de sua filosofia, com a desobediência da própria mente, acreditando em tudo e em todos às vezes, e, duvidando de si mesmo. Ele se ampara na sua própria inteligência e quando descobre que está sucumbindo aos poucos, percebe um único fato bem singelo: ‘Será que estou indo para um caminho ainda pior? Será que cairei em um abismo tenebroso, onde monstros mergulhados na ira de um pandemônio sem coração querem tirar a minha vida e transformá-la em carcaça dada aos corvos?’”

“Oh, sim! Dizem que minha raça é uma das piores: a mais pessimista de todas.... Será que virão mais guerras para piorar a situação do reino? Mais pestilências por todos os lados que deixem o homem desesperado, cavando a sua própria cova? Um mortal muitas vezes não encontra nada para responder as dolorosas questões do seu destino, então o que lhe resta é se agarrar à todas as oportunidades de sobrevivência que a vida lhe traz. E tem mais: ele não pode nascer de novo, não pode voltar ao passado, só pode deliciar-se no presente com os maiores prazeres que lhes estiverem à sua disposição: ao beber o vinho, ao contemplar a luz do sol, ao deitar na cama de tecidos de seda! Ao tocar a mulher dos seus sonhos e sentir o seu beijo doce ao ver a aurora boreal!”

“Ah, quem me dera poder abraçar a minha donzela amada dos meus devaneios e juntos enriquecermos o nosso palácio! Deitaria todos os dias feliz em poder olhar nos seus olhos e poder tocá-la... Ela expulsaria até os meus pesadelos! Me alegraria só com um sorriso assim como o de minha mãe um dia me alegrou! Quem dera poder saciar todos os meus desejos de uma só vez!”

“Tenho que confessar que um dia uma índia me chamou atenção: ela disse que talvez eu tenha uma capacidade incomum. Que a água, o vento, a floresta verde, bem como as plumárias dos pássaros e seu sangue eram como um só. Ela me disse que o índio é a própria natureza. E que talvez eu poderia um dia ler pensamentos dos outros. Eu não saberia dizer se isso é real ou não, mas que ela tinha um pouco de loucura. Apesar de estranho e irracional, isso era belo. Mas o que fazer se cada um possui tantas diversas crenças, eu apenas continuo observando sem entender aonde isso pode me levar...”

“Bem, ela me deixou essas penas de pássaro, disse que ouviu harmonias nas catedrais com instrumentos como alaúdes cujas cordas pareciam angelicais; flautas doces que davam vida à muitas danças e avivavam templos; vielas de rodas cujas manivelas giravam sem parar até se tornarem tão extravagantes quanto as bocas dos trovadores; tambores que representavam batidas de corações apaixonados balançando de êxtase em sintonia com as melodias das flautas; o órgão medieval cujos sons pareciam sopros litúrgicos vibrando em tubos afinados ao ser tocado com os dedinhos; a charamela soprada dando luz às cantigas de Santa Maria e deixando as cortes com mais cor e vislumbre, participando de desfiles cívicos cheios de pompas; o saltério que parecido com a harpa e a cítara, cantarolava sozinho sons etéreos e destemidos com suas cordas alimentando as almas de tantos com Codex Buranus e outros compositores... [...]”.

“Eu pareço às vezes um velho moribundo[2], existindo apenas para ultrajes[3], deixando o mundo furioso, temo estar sendo perseguido o tempo inteiro. Penso que só podem haver lá fora aqueles sujeitos em que não podemos confiar nenhum pouco, bancando coitadinhos, disfarçados de alma pueril e na verdade só estão à espreita esperando para me atacar nas esquinas! Não é à toa que devemos vigiar o reino inteiro para que o inimigo não venha fazer a festa em nossos aposentos!”

“Pois eu desconfio até da minha própria sombra! E mesmo assim não é bastante! Se vejo uma flor cor-de-rosa, ao passar por ela, ainda olho de novo para ver se não foi arrancada por um maldito vindo de algum precipício, ou para ver se ainda não mudou de nuança! Ora, o que esperavam de mim? Não quero ficar arranjando mais problemas! Já não basta a minha dor neste pescoço!”

“Quando a primavera vem, vem com ela seu longo lado arcano[4]. Não olho para só para as novas cores, mas quase fico tonto com os lençóis coloridos no jardim, para ver se ninguém está escondido por detrás das moitas pronto para nos lançar uma flecha! Nestes dias de célebre espanto, tenho receio até de que os mortos se levantem de seus túmulos só para me amedrontar! Enfim, não sou o bobo-da-corte para lhes provocar risadas, mas eu não brinco, estou falando sério! E acho que nunca fui tão sensato ao declarar isso em toda a minha nobríssima e ilustríssima vida! Enfim, eis o meu paradoxo com a minha divina comédia! É assim, afinal, ou não me chamo Felipe IV, o Belo!”

[1] Rigor, severidade.

[2] Que está prestes a morrer ou deixar de existir.

[3] Insultos, ofensas graves.

[4] Que ou o que é profundamente secreto, misterioso, enigmático.

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