4. O Pacto

— Calma! Deixa ver se eu entendi... Lá na missa da Bahia eles tomavam Cachaça no lugar de vinho, e tapioca no lugar de hóstia?!...

— Pernambuco!!! — Corrigimos eu e Suzy pela milésima vez.

— Lá as comidas são meio limitadas, né? Por isso vocês comem calango...

— Ulisses cara, com todo o respeito, cala boca! — disse Suzy.

As bochechas dele coraram e eu não sabia se sentia pena ou se dava um tapa.

— É uma pergunta sincera. — disse ele, ajustando os óculos no rosto.

— Na verdade, é bem xenofóbico. — disse ela com a testa franzida.

Os olhos escuros de Ulisses se arregalaram e sua boca se abriu formando um "O".

— Nossa, desculpa...

— Ah meu, eu já percebi que não é por mal... Tá mais pra falta de informação, só que... Para que tá feio!

Ele alisou a nuca e olhou para baixo, um gesto que percebi que ele fazia quando ficava sem jeito.

— Desculpe. — disse olhando para mim.

— Vou desculpar, né? De novo! — falei revirando os olhos.

— Mas conta... Fiquei curioso sobre a missa na Paraíba.

— Essa é a última vez que vou falar que sou pernambucana! Repete comigo: 'Lis é Pernambucana'.

— 'A Lis é Pernambucana' — repetiu ele corado — Tô parecendo um idiota.

— Um dia te levo em Pernambuco, na Bahia e na Paraíba. Pra tu ver bem de perto as diferenças e as belezas de cada estado.

— Boa ideia, porque acho que ele não conhece nem o estado dele. — debochou Suzy.

Eu e Suzy rimos de Ulisses que estava completamente sem graça.

— Deixa eu continuar... — retomei a palavra — Em 1817 os pernambucanos estavam todos encaralhados com os portugueses que só faziam aumentar os impostos virados no mói de coentro. Foi quando se desembestou uma revolução que fez Pernambuco virar um país. Com direito à primeira constituição do Brasil que dava pro povo liberdade religiosa e de imprensa. Como os padres tinham muita moral na revolução, ela também ficou conhecida como Revolução dos Padres. Aí, eles se arretaram com os portugueses e como protesto pelas fuleragens que os galegos tavam fazendo, começaram a oferecer nas missas cachaça no lugar do vinho de lá da Europa e hóstia de mandioca no lugar do trigo português. Isso era como se eles dissessem: "Vão simbora daqui com as resenhas de vocês que a gente já tem as da gente. Visse?"

— Eu queria um dicionário pernambuquês agora... — disse Ulisses — Mas meu, que irado! Se fosse aqui em Sampa ia ser café no lugar do vinho e pizza no lugar da hóstia.

— Olha só... Ele conhece a culinária local. — brincou Suzy.

— Eu não sou especialista, não. Mas sei que lá no Instituto Biológico tem uma cacetada de pés de café e sei também que o paulistano é um dos maiores comedores de pizza do mundo.

— Danosse! É tanto café assim, é? — perguntei.

— Sim e é bem perto da Avenida Paulista. Te levo lá um dia.

— O povo gosta de café, né? Eu não vejo graça naquele bregueço amargo. — falei torcendo o nariz.

Dessa vez não só Ulisses estava de olhos arregalados como também Suzy e eu fiquei com vergonha do que disse, pois agora estava trabalhando em uma cafeteria.

— Você não sabe o que tá dizendo. Amanhã vou preparar o melhor café da sua vida! — afirmou ela.

— Eu prefiro cachaça. — falei fazendo sinal para o garçom trazer a conta.

— Tudo bem, eu faço pra você um Irish Coffee. Não é cachaça, mas leva whisky.

O garçom se aproximou me entregando a conta.

— Você já vai? Tá cedo. — disse Suzy olhando para o relógio de pulso.

— Eu preciso ir, tenho uma pirralha que perde o sono se eu não chegar em segurança em casa.

— Uma pena que você já vai. O Paulo, meu noivo, chega daqui a pouco.

— Vai ficar pra próxima. — respondi arrumando a bolsa para sair.

— Eu não vou ficar aqui de vela. — disse Ulisses.

— Da próxima vez você traz a Laura pra te fazer companhia. — Suzy falou rindo.

— Laura? — perguntou ele e então seus olhos se arregalaram — Ela... gosta... de mim?

— Não sei se gosta, mas com certeza é a fim de te comer. — respondeu Suzy.

Me despedi dela com um abraço e acenei para Ulisses, mas ele parecia muito distante olhando para o seu copo de suco, perdido em pensamentos.

Saí do bar em direção ao ponto de ônibus, estava tão frio que eu não via a hora de chegar em casa e me aninhar com a Maria Flor embaixo do edredom.

— Ei Lis!

Virei e vi Ulisses correndo para atravessar a rua.

— O que foi? — perguntei quando ele parou ao meu lado.

— Eu te levo pra casa.

— Não quero atrapalhar.

— Não atrapalha... — ele disse dando o seu braço para que eu encaixasse o meu — Você saiu tão rápido que nem vi.

— Tu não viu porque tava todo abestalhado pensando em Laura. — falei rindo.

— Você também acha que... Não, você acabou de chegar.

— Eu vi o jeito que ela te olha.

— Sério? Eu nunca percebi.

— Porque tu só enxerga o teu umbigo.

— Lis, aquelas coisas que falei sobre a sua origem... Quero pedir perdão. De verdade. Eu sou um idiota! Mas, quero que você saiba que não falei com a intenção de te ferir. Eu só... Sei lá... Repeti o que sempre ouço, mas nunca tinha parado pra pensar sobre isso. Agora com o que a Suzy disse, fiquei pensando em quanta merda a gente fala sem saber o impacto que isso pode ter na vida de um ser humano por pura falta de empatia…

— Tá perdoado. — falei com sinceridade — Tu podia aumentar meu salário pra compensar. — brinquei para quebrar um pouco o gelo, ele ainda parecia envergonhado.

— Sou besta mas nem tanto. — disse rindo — Vou compensar... — pensou por um instante — Não sei como, mas vou.

— O pedido de perdão já é suficiente... Prefiro pensar que a gente pode se unir e se ajudar ao invés de brigar. Feito o que a gente tá fazendo aqui. Tu me dá carona e eu te ajudo com Laura...

— Eu não preciso de ajuda. — defendeu-se, porém logo sorriu — Talvez eu precise um pouco... Muito! Faria isso por mim?

— É pra isso que servem os amigos.

Ulisses abriu a porta do carro para mim com um largo sorriso.

— Você se considera minha amiga?

— Apesar de tudo, sim. Ainda mais agora. Se não tiver problema pra tu.

— Eu conheço muitas pessoas mas não posso dizer que tenho muitos amigos. Ninguém que me faça passar vergonha, que me suporte e que me salve de mim mesmo. Também nunca fiz amizade tão rápido assim, muito menos com uma mulher.

— Pois tu acabou de ganhar uma amiga... — espalmei a mão no peito — Eu, Flor de Lis Silva, prometo ser uma amiga chata e presente. Prometo te fazer passar vergonha, aturar tuas leseiras, te salvar de tu mesmo e prometo ouvir tuas tabaquices românticas.

Ele dava muita risada, mas seus olhos brilhavam, talvez de alegria. O que me fez pensar que ter um bom amigo não era uma dádiva acessível a todos.

Ulisses espalmou a mão no peito e pigarreou antes de começar a falar:

— Eu, Carlos Ulisses Ferrari, serei o melhor amigo do mundo. Prometo tentar não falar bosta, lembrar que você é pernambucana, prometo não te oferecer mais calango com farinha e prometo não jogar lama em você.

— E vai ouvir minhas tabaquices românticas. — completei sorrindo.

— Sim! Prometo isso também e socar qualquer babaca que partir seu coração.

Nós gargalhamos muito e quando eu consegui me recompor abri minha mão e lambi.

— Que porra é essa?

— Tô selando nosso pacto. Você prefere cuspe ao invés de lambida?

— Não! Isso aí já tá bom. — ele lambeu a própria mão rindo.

Selamos a nossa promessa com um aperto de mão e muitas risadas estridentes.

Eu estava em uma cidade diferente, cheia de contas para pagar, uma filha para criar, uma mãe para cuidar, um ex para aturar e muito medo do futuro.

Mas acabei trocando saliva com o meu chefe no meu primeiro dia de trabalho. Foi naquela noite que Ulisses — mesmo sem noção como era — se tornou um dos meus melhores amigos.

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