Capítulo 02

Entre uma pausa e outra, fui pegar café. A cafeteria estava animada e os homens conversando, mas quando me viram, pararam de falar e saíram dispersando. Ficou claro que estavam falando mal de mim, mas não liguei, até gosto da minha fama.

Adentrei o pequeno recinto. As paredes eram decoradas com um ladrilho marrom claro, como os móveis antiquados. Os puxadores de aço estavam gastos e em alguns pontos, até enferrujados. Havia um micro-ondas e uma mesa de quatro lugares que ficava no meio do caminho até a geladeira que os policiais enchiam de donuts velho. O cheiro de café estava forte, na cafeteira dos anos 50 e tinha litros de café pronto para mais de um batalhão.

De dentro de um dos armários peguei a caneca preta e tirei a cafeteira da base, enchendo até a boca. O cheiro de café passado se expandiu por todo o lugar e soltei um suspiro cansado de trabalhar. Quem disse que a vida de policial é fácil? Não que eu me considerava um, aliás, eu não me considerava nada como aqueles cães imundos.

— Então… — A voz morna arranhou a parte detrás da minha nuca e virei-me surpreso. Remy tinha ido até mim. Analisei como livre do paletó e do sobretudo, eu podia ver como a camiseta se adequava ao seu corpo magro e branco. Considero a pele de Remy tão delicada quanto um lírio branco. E cheirosa por igual. — Escolheu Cazal para poupar Thiers. — Ele passou para dentro da copa, ficando sozinho comigo. — Arrependeu-se?

— Não fica com ciúmes, bebê. Não escolhi Thiers porque não queria te expor a um constrangimento, mas fique sabendo que quando estou enrabando ele, penso em você. — Fiz um brinde no ar com o café.

— Nossa, que romântico, fico lisonjeado. — Remy bateu os cílios sem paciência. A pistola cromada estava em seu coldre, mas não me ameaçava. Não me importei que ele fosse até o balcão atrás de uma caneca para si. Ele tomou café feito um maldito e estava estalando a língua nos dentes enquanto fazia anotações em um caderno, mas não se importava de tomar mais. Se fosse para ficar perto de mim. — Com licença.

Dei um passo para o lado livrando o acesso a cafeteira e fiquei encostado na bancada. Dei um gole no meu café, estava amargo, passado, mas não estava frio o que já era uma vantagem. Remy se serviu, sem me olhar, um pouco de café, completou com leite e encheu de açúcar, contei quatro colheres. Suspirou cansado e deu um gole no café. Fez uma careta, colocou mais duas colheres de açúcar antes de se dar por satisfeito.

— Está em Brume Peak e isso te deixa irritado? — Cortei o silêncio que nos oprimia.

— É bom estar de volta em casa. — Remy deu um sorriso fraco, porém genuíno. Já disse que amo aqueles dentes? Especialmente em volta do meu pau. — Além disso, meus pais pararam de ficar ligando. É uma vantagem.

— Ah, sim. Seus pais adotivos. — Ergui as sobrancelhas. Remy confirmou com um aceno de cabeça, os cabelos graciosamente se moveram sobre a alça do coldre. Ele podia pegar o café e ir para a sala de reuniões, mas preferiu ficar ali comigo. — Suponho que eles sejam boas pessoas, bem-educados e se orgulham de você.

— Estupidamente caricatos. Jean-Marc e Marie-Thérèse. — Deu um riso frouxo e mais um gole no café. — Eles são ótimos, é verdade. — Havia nostalgia em seus olhos e ele não escondeu o suspiro leve e saudoso. — Suponho que devo a você o fato de ter sido criado em tão bom carinhoso lar.

— Para quem odeia falar de Terrence comigo… — Provoquei. Remy nunca me falou de sua família e esse era um campo nebuloso entre nós. Claro que pesquisei sobre eles, hoje em dia todo mundo tem perfil nas redes sociais, mas eu não explanaria para o cara na minha frente quantas vezes passei diante da residência de seus pais no Quarteirão Nobre. — Você está puxando conversa. Estou surpreso.

— Bem… — Remy abaixou a cabeça e depois levantou o olhar. — Você escavou seus ossos para que pudesse receber um encerramento, eu não sei. Só estou grato. Não confunda com mais nada.

— Não estou confundindo o óbvio.

— Você seguiu sua vida.

— E você ainda me deixa duro como um inferno, sabia?

— Guarde nas suas calças. Ou para seu namorado.

Bingo. Era ciúmes. Ele nem conseguia disfarçar.

— Ah. — Sorri e larguei a caneca para o lado. Andei até Remy, ficando em sua frente. Afrontoso, não saiu. Qualquer outra pessoa que se preze sairia do meu caminho, mas Remy era uma pedra. E eu o desejava. Segurei na caneca dele, coloquei para o lado tirando de suas mãos e segurei em seu rosto. — Nem disfarça… — Cheirei sua pele, a bochecha. — Senti falta disso, bebê. Do seu cheiro doce, do seu calor morno...

Fui dar um beijo em seus lábios avermelhados e Remy virou o rosto, evitando, acabei beijando seu queixo.

— Pare.

— Shhh, relaxe. — Murmurei. — Pode fingir que desmaiou e eu me encarrego de dar a você um bom orgasmo.

Eu devia saber quando não o provocá-lo, mas aí está um problema que tenho com Remy. Não consigo prever seus pensamentos. Às vezes, eu me conecto com ele, mas a maioria das vezes apenas não consigo lê-lo.

Aquela era uma dessas vezes.

Remy se irritou, agarrou firme nas minhas bolas e eu senti dor, me afastei. Ele forçou mais, me fazendo dar alguns passos para trás. Tentei inutilmente escapar e logo eu estava contra a parede, do outro lado da copa, sendo alvejado por seus olhos. Aquele olhar repressor que era igual ao da minha detestável avó.

— Não te dei liberdades, Simon.

— No entanto, está com as mãos nas minhas bolas.

— Do jeito que você gosta. — Ergueu uma sobrancelha, me desafiando.

— Ai, ai, tá! Pare. — Arfei com dor. Uma gota de suor desceu contornando minha face. Ele afrouxou a mão e suspirei de alívio. Porém, antes que ele se afastasse, segurei em seu pulso e o puxei de surpresa.

Remy quase tropeçou e fez o que eu esperava: apoiou a mão no meu corpo. Segurei em sua bunda gostosa e o trouxe mais para perto, com a perna entre suas pernas, encaixando suas partes na minha coxa. Ele exalou ar pela boca, prendeu a respiração e antecipou o beijo, colando os lábios comigo. Ele nunca resiste. Quer dizer, se faz de difícil, mas quando chega a hora, sabe? Remy nunca decepciona.

Afundei a língua entre seus dentes, cavando o espaço para conter-me dentro de sua boca, saboreando a saliva que era como beber do cálice do elixir dos deuses. Ofeguei, ficando duro na hora e rebolei, moendo nele. Remy segurou meus ombros com força e subi as mãos, para suas costas macias.

Ele se afastou um pouco, mas ficamos nariz com nariz.

— Gosta disso, não é? — Perguntou baixinho.

— Muito… — Suspirei com uma súplica.

Eu precisava dele como um viciado precisa de heroína. Meu corpo tremia, meu coração palpitava e eu quase não conseguia respirar de tanto tesão. Remy sorriu a milímetros dos meus lábios e, tão sem explicação quanto aceitou meus afagos, se afastou, impondo novamente distância entre nós. Ele girou, pegou sua caneca e saiu da copa.

— Tenha uma boa noite, Thiers. — Ainda vi um sorriso travesso em seus lábios, antes dele sumir pela porta. Puta que pariu, que moleque desgracento!

Victor entrou logo em seguida. Os olhos castanhos firmes com raiva de mim e rangendo o maxilar tão alto que eu podia ouvir seus dentes serrando. Eu não queria me importar com Victor e poder dizer que não fiquei com raiva de Remy por jogar conosco pelo sadismo de ferrar com a minha vida, mas a verdade é que eu mentiria para mim mesmo caso fizesse isso.

— Não foi nada.

— Conhecendo sua obsessão por Bergeron, acho que foi tudo. — Victor falou sem esconder a amargura na voz. — Não consegue nem manter o pau pra baixo.

— Eu nunca prometi fidelidade a você.

— E tendo três substitutos para Remy, acha que não sei? — Victor me encarou bravo. — Outro dia tive que lidar com Jean-Éloi. Ele estava desesperado porque o cabeleireiro cortou o cabelo dele um pouco acima do ombro e você não o chamou mais. Ou quando Edmond confessou que usava lentes azuis, você lembra? — E se aproximou, ajeitando a gola de minha camisa. — Você tem tudo o que quer, Simon, mas não é suficiente!

— Talvez não seja tudo o que eu realmente queira. — Cruzei os braços.

— Você acha que Remy é a resposta para suas ânsias, mas ele não é.

— Ele é.

— Um delírio. — Piscou os olhos e forçou um sorriso.

Fiquei sério. Na verdade, ele já estava me irritando.

Como não me movi, Victor continuou:

— Vamos para casa, querido. Estou com sono, você também deve estar exausto. Faço uma massagem grega em você, bem gostosa, pode chamar os três garotos.

Segurei nos pulsos de Victor, afastando-o de mim. Desencostei da bancada e aprumei o corpo, enquanto o encarava. O policial teve que erguer os olhos, pois sou realmente grande e alto.

— Vou para casa quando eu quiser. — Soltei as mãos dele, dando um empurrão para trás. Ele me devolveu o olhar com raiva. — A propósito, tire suas coisas da minha casa. Agora que Remy voltou não preciso de nenhum de vocês.

Deixei a copa. Alguns policiais estavam no corredor, mas achei que não escutaram minha conversa com Victor, ou eu teria mais problemas. Voltei para a sala de reunião e foi como explodir por dentro.

Logo que entrei vi Remy conversando com Cazal, sentado na mesa de frente para o policial de cabelos enrolados. O desgraçado parecia muito entretido na conversa sobre como poderia monitorar o Quarteirão Central de Brume Peak através das poucas câmeras de tráfico da cidade. Trocamos um olhar rápido, mas quando Remy virou a cara me dando o tratamento do gelo, meu sangue ferveu.

Precisei me controlar para não surtar. Não. Eu não podia ceder a mais uma provocação de Remy. Era claro que ele estava me punindo, mas eu achava o motivo ridículo. E também… Estava na hora de virar aquele jogo. Sou um caçador e não gosto de ser caçado, muito menos atraído para uma armadilha cozinha. Eu estava pronto para uma revanche. Remy me pagaria.

Cazal, por sua vez, tentava impressionar o detetive Bergeron e continuou falando e falando e falando, tentando dar alguma ideia que fosse relevante. Passei reto por eles, cortando a sala. Sentei em uma cadeira mais distante possível e debrucei-me novamente aos relatórios do legista.

Eu estava intrigado, analisando o que ele tinha a dizer sobre a desfiguração facial. Estava convencido que era uma desumanização das vítimas, especialmente porque as supostas moças eram muito bonitas e parecidas entre si, mas não conseguia encaixar. Afinal, se eram obras de arte, por que não utilizar a beleza das moças?

— Bem, o melhor a se fazer é monitorar todo o perímetro próximo da área em que os corpos foram encontrados. — A voz de Dylan cortou meus pensamentos. Ele se uniu aos dois agentes. — Se ele tentar pendurar uma obra de arte no meio da rua, poderemos identificá-lo.

— Vale a pena. — Remy concodou.

— Naudé e Valleé? Vocês ficam com o centro de tráfico, aproveitem para analisar as exaustivas horas de filmagem.

— Ainda bem que ele sabe que é exaustiva. — Naudé cochichou com Yvonne. Ela, que não fazia o tipo preguiçosa, deu uma cotovelada em suas costelas e apontou a porta.

Naudé se espreguiçou e Yvonne o seguiu. Olha, pela boa vontade dos dois, acho que não encontraremos nada de útil com as câmeras.

Dylan logo se concentrou no quadro de crime:

— Certo, vamos ser visuais. — Pegou as fotografias, escolhendo uma de cada cena e as garotas assassinadas.

Dylan pregou no quadro. Remy escolheu um barbante amarelo, puxou o fio e ligou, cada vítima a um local de exibição usando uma das tachinhas idênticas as encontradas na cena do crime, veja que irônico! Enrosquei o olhar em seu dedo, onde o fio de barbante contornava. Meus pensamentos ficaram o mais sujo que poderiam ser.

— Ao menos podemos concluir que não é um descarte, mas uma exibição. — Remy comentou. Eu adorava como ele podia perceber as nuances do crime e diferenciar os assassinos. A maioria apenas nos vê como pessoas doentes.

— Isso faz desse criminoso diferente dos outros. — Cazal deduziu o óbvio. — E agora?

— Talvez o próximo passo seja monitorar e descobrir onde essas duas garotas estavam quando foram pegas pelo assassino. Ele as escolhe, certo? Será proveitoso tentar refazer seus passos e definir uma área de ação. — Dylan ponderou, coçando a barba. — Talvez começar por parentes e vizinhos, onde estão os depoimentos?

— Na caixa. — Cazal apontou o chão.

— O que acha, Louic? — Remy me chamou. Só pelo prazer, fingi que não ouvi e virei uma página do relatório que estava lendo. — Simon?

— Ahn? — Levantei a cabeça, apoiando o queixo na mão, com um lápis entre os dedos.

— Qual a sua opinião? — Repetiu sem vergonha na cara.

Pisquei duas vezes os olhos. Mantive a seriedade por todo o rosto e saboreei aquele momento.

— Pensei que haviam dito que meus comentários eram bizarros e inoportunos.

Vi quando Cazal e Dylan fizeram uma careta, torcendo todo o rosto como quem lambe um limão azedo. Remy passeou os olhos entre eles e não precisou dizer nada, eles perceberam e para o bem deles próprios, consertaram:

— Bem, você é nosso consultor. — Dylan coçou a garganta com os dedos.

— E tem know how. — Cazal deu de ombros.

— Não, não, isso não será suficiente. — Larguei o relatório e curvei as costas para trás. Juntei as mãos e apenas observei, os olhos fixos em Remy.

— O que exatamente você quer? — Sem medo, Remy perguntou, cruzando os braços.

— Não faça isso, não caia no jogo dele. — Dylan alertou. Cazal franziu o cenho. — Remy?

— Não serei exigente. Quero ouvir o quanto você precisa de mim. — Pedi.

Remy absorveu minhas palavras buscando um pouco de ar. Dylan rangeu os dentes e Cazal ficou perdido sem compreender o que estava havendo. Remy contornou a mesa, cortando a distância que nos separava, parou do meu lado.

— Somos muito diferentes, Sr. Louic, mas fiz questão de trabalhar com você nesse caso, ou nem aceitaria. Sem você, não acho que eu, ou qualquer outro investigador, possa avançar nesse caso peculiar. — O desgraçado nem corou.

— Eu quero um jantar com você. Uma conversa a sós. — Negociei.

— Que diabos? — Cazal estremeceu, mas Dylan deu um olhar ardido na direção dele, que o fez recuar.

— Achei que já tínhamos passado dessa fase.

— Esse é seu problema, acha demais. — Ralhei.

Remy ficou me encarando sério, sei que estava mordendo a bochecha pela parte de dentro da boca. Bateu os dedos na mesa ponderando os prós e contras de aceitar minha proposta. Ele não temia por sua vida, eu nunca mataria um agente sendo monitorado por tantos policiais como eu era, mas Remy sabia que eu representava um risco muito maior do que de vida… Eu representava o risco de que ele pudesse se apaixonar.

— Tudo bem, mas você tem que fazer vale a pena para eu aceitar.

— Sempre um negociador. — Dei um sorriso e levantei da cadeira, ficando de frente para ele. Remy nem piscou. — Ele desfigura as vítimas. Esse é o maior sinal de que não é sobre elas. É sobre sua obra. Ele não as escolhe diferente de uma pessoa diante de uma prateleira com itens de decoração. Elas são matéria bruta, não possuem nenhuma importância para o assassino. Ele pega as mais fáceis. — E voltei a olhar para Remy. — Foi bom o suficiente para você?

— Como sempre. — Provocou com um quase sorriso, não sei, senti que ele estava orgulhoso de mim.

Cazal e Dylan ficaram em silêncio, sem saber onde enfiar suas caras. Remy deu um passo para trás se afastando de mim. Bocejou, passou por Dylan e deu um tapinha no ombro do amigo.

— Quero investigar nessa linha, mas continuamos amanhã. Estou exausto. — Pegou seu paletó, vestiu o sobretudo e chegando perto da porta, nos cumprimentou. — Boa noite, senhores.

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