Capítulo 02

Estiquei o corpo, olhei a fotografia e peguei na mão. A mulher estava em cima de uma cama e tinha a barriga dilacerada. Ela estava nua, com a calcinha arriada nos joelhos e havia alguma coisa enfiada em sua vagina, grande o suficiente para causar um estrago e pequena demais para eu reconhecer o objeto.

— Que tipo de jogo bizarro o assassino estava fazendo? — Perguntei sem querer. Lembra o que eu disse antes sobre não me impressionar? Aquilo me impressionava. O cenário era sujo demais para que ele não tivesse deixado marcas, pistas, qualquer coisa.

— Eu pensei que era um jogo também. — A voz de Remy chamou atenção. Ele mordiscou os lábios pensativo, com a mão no queixo. — O que você acha que é o objeto?

— Alguma coisa ofensiva. Religiosa. Não me surpreenderá que a mulher seja uma freira.

— Bem, estou impressionado, levou menos tempo do que eu para descobrir. — Ele puxou a imagem da minha mão.

— Reconheci pelos sapatos, os mesmos que via na cozinha da casa de jovens em que morei.

— Era uma imagem furtada de uma igreja. — Remy revelou, soltando aquela fotografia em um lado da mesa. — Um perito reconheceu como uma obra de arte. Estava perdida e acredita-se que tenha sido vendida para colecionadores do mercado negro.

— Então é um assassino com dinheiro.

— Ou uma pessoa de sorte que achou a santa por acaso no lixo. — Ele pegou outra imagem, da mesma cena e me entregou. — Estava quase intacta.

— De qualquer forma, a santa na vagina da freira é apenas uma referência a um filme de terror, não tem a ver com o crime. Eu tentaria achar o que tinha no estômago da vítima.

— Por que acha que tinha alguma coisa? — Remy perguntou, seus olhos estavam cheios de curiosidade em mim.

— Deu a impressão de que era um jogo. E se ele colocou algo lá dentro para desenterrar? — Percebi que estava passando por uma espécie de prova. Sorri. — Mas você já sabe disso, não é?

— Ele insere ovos de inseto em grande número. — Revelou. Franzi a testa. Sequer fazia sentido. — Moscas, mariposas, baratas… Enfim, o estômago dela explodiu.

— Violento e artístico.

— Eu sei. — Soltou um suspiro.

Fiquei encarando-o nos olhos. Remy parecia querer arrancar alguma resposta de mim, seu olhar continha esperanças e o traço de admiração que me incomodava e me atiçava ao mesmo tempo. Aquele detetive mexia comigo em níveis inimagináveis e eu não conseguia pensar em nada a não ser aplacar aquele desejo que renascia em minha alma. Por Remy, eu viraria um assassino novamente.

— Não posso ajudá-lo. — Arrastei a cadeira para trás e levantei.

— O quê?

— O assassino que você procura é frio, sádico, ele está brincando de matar pessoas. Não tem nada a ver com os crimes que cometi. Eu nem saberia por onde começar a investigar algo desse jeito! — Esbravejei. Meu estômago estava pegando fogo e eu não sabia se era o cigarro ou se aquilo realmente me enojava. — É ridículo! Insetos? Que demônios! Como se não precisássemos lidar com esses bichos todos os dias e inclusive em nossas covas. Ninguém escapa da morte, ninguém escapa dos insetos!

— Vê? — Remy juntou as fotografias e não parecia falar comigo agora. Guardou tudo na pasta e ficou de pé e ficou de frente para a câmera. — Eu disse a você que ele perceberia.

A porta abriu. O brutamonte o cumprimentou e Remy saiu da sala sem se despedir. Momentos depois o guarda voltou para me tirar de lá, com um mau humor sem igual. Ninguém quer ver o homem que demoraram tanto para colocar atrás das grades ser liberado porque um policial de outro estado, mimado, tem bons contatos.

***

Respirei fundo. O cheiro do mar parecia distante no meio de tanta montanha. O céu estava verdadeiramente cinzento e os trovões poderiam tirar a vontade de qualquer cachorro de estar na rua. Menos a minha. Segurei firme a sacola plástica na minha mão, carregando pertences que eu não via há dez anos.

— Você não poderá contatar nenhum dos seus familiares, amantes, correspondentes, merda nenhuma! E se fugir, vou encontrá-lo e jogá-lo na solitária, está ouvindo Sr. Louic? — O policial grosseiro na minha frente usava terno, cachecol, luvas e tinha a gravata bem apertada em seu pescoço de pele preta. Rugia como um leão e tenho certeza que eu teria motivos suficientes para temer aquela ameaça, por mais fraca que ela parecesse.

— Entendi muito bem. — Respondi apenas para não deixá-lo no vácuo. Algo que me dizia que ele não era o tipo de homem que aceitava desrespeito.

Um policial uniformizado prendia uma tornozeleira eletrônica no meu pé, por dentro da calça jeans que quase não me servia mais, de tão pequena. Ele levantou, cumprimentou o chefe e saiu. Senti um calor diferente no braço e percebi a mão de Remy, me empurrando para a frente.

— Vamos sair daqui.

— Estou falando sério, Bergeron!

— Ele não fugirá, relaxe, Michard.

— Não pode garantir isso. — O homem de terno retrucou, ainda com as mãos dentro de seu sobretudo. Acho que estava segurando uma arma. — Vou m****r Garcia ficar de olho em vocês.

— Ah, por favor. — Remy me apressou. — Vá andando, sim?

Fiz o que pediu. O vento gelado atingiu meu rosto e corpo, foi revigorante. Uma sensação de estar voando e de poder ir para onde quiser! Sentir a liberdade novamente, ainda que temporária, fazia minha alma vibrar. Eu não sentia felicidade há muitos e muitos anos. O sol parecia me cegar, mesmo quase inexistente nascendo no horizonte cinzento. Sempre fui fotossensível e tenho por mim que Remy leu bem meu arquivo para saber disso. Caminhamos até um carro de lataria azul escura estacionado no pátio externo da penitenciária, o homem de terno continuou gritando coisas para nós, ou para o detetive, mas ele não se interrompeu.

— Quer dirigir?

— Eu?

— Quanto tempo faz que não dirige? — Jogou o dispositivo da chave no ar, peguei de surpresa. — Bons reflexos!

— O que você está querendo Sr. Bergeron?

— Ah, me pegou. — Contornou o carro e abriu a porta. Ficou com o braço em cima do capô, me olhando. Ele tinha um quase sorriso agora. — Dirigi a madrugada inteira para estar aqui, então é sua vez, preciso descansar.

— Vai dormir ao lado de um assassino em série que costumava ser o predador de pessoas como você?

— Não. Não confio em você, não confunda as coisas. — Ele ficou sério e entrou no veículo, bloqueando minha investida. Vi apenas seus cabelos castanhos balançando com o vento gelado.

Quando se tornam difíceis, meus amantes causam raiva. O sangue ferve e perco o controle. Mas naquele instante, não foi a raiva que se manifestou. Fiquei com a impressão de impotência. Cacei minhas presas, como um leão predador. Elas se encantavam facilmente por mim e cediam quase que desesperadamente pela minha atenção. Remy parecia desacreditar que fui capaz de cometer aqueles crimes, ou que não cometeria contra ele, que eu era fraco. Ou talvez, ele estivesse me testando.

Abri a porta do carro e me sentei ao volante com a sacola no colo. Logo percebi que estava em seu veículo pessoal, pois senti o seu cheiro de flor impregnado por todo o carro. Haviam coisas pessoais no banco de trás do carro, uma mala de roupas e uma mochila preta. Além disso, a poltrona estava mais perto do volante do que eu precisava e minhas pernas não cabiam. Soltei um sonido, empurrei a poltrona para trás.

— Coloque suas coisas lá atrás. — Pediu.

Segurei o saco e livrei-me do extra, soltando no banco de trás, por cima da mala. Remy ligou o sistema de navegação do carro, tinha uma espécie de tela no painel. Notei que não havia onde colocar a chave.

— Pise no freio e aperte o botão, vai dar partida. É silencioso, o carro é elétrico.

— É um carro de brinquedo? — Ergui as mãos do volante. — Não se fazem mais nada como antigamente!

Remy riu, achando graça e amei como seus dentes eram bonitos e simétricos. Incisivos grandes. Ele era mesmo muito bonito. Obviamente que meu pau não ficou quieto e como a calça estava curta, o volume saiu pela abertura, como uma cobra prestes a dar um bote.

— Um dos primeiros lugares será onde possamos comprar roupas para você. Isso não é apropriado.

— Isso o quê? Uma ereção?

— É muito inapropriado, Sr. Louic.

— Acho que é chover no molhado eu dizer a você, Sr. Bergeron, o quanto se encaixa no perfil físico de minhas vítimas.

— Sim, eu sei. — Ele apertou um botão na tela do painel e as portas travaram. Levei um susto, os cintos de segurança rolaram para cima de nossos corpos automaticamente. — Como você se sente com isso, então?

— Como você acha que me sinto, Sr. Bergeron?

— Bem, talvez você pense que pode me seduzir. Ou talvez, se falhar, que pode me drogar, violentar e depois me esquartejar e jogar em uma vala. Foi a primeira coisa que o Sr. Michard disse antes de aceitar a hipótese de conversar com você para se tornar auxiliar nesse caso.

— Sempre fico com uma parte das vítimas. Um troféu. — Arranhei a voz na garganta de tal forma que ardeu. — Eles te contaram isso?

— Li tudo sobre isso nos seus arquivos, fiz uma tese, lembra? Além de guardá-las em um freezer no porão da sua casa, onde costumava transar com cadáveres, alimentava-se do falo.

— E isso não te aterroriza?

— Agora que tocou no assunto… — Torceu um pouco a cabeça, seu rosto não tinha uma expressão que eu pudesse interpretar e fiquei louco com a impassividade dele. — Deixa-me curioso.

— Curioso?!

— Que parte de mim você guardaria e qual comeria, Sr. Louic?

— Você não pode estar legitimamente me perguntando isso! — A inocência em seu olhar era o que mais me atraía e não saberia distinguir até que ponto era mesmo verídico. Ao mesmo tempo que Remy parecia articulado, esperando eu tropeçar em armadilhas verbais, ele parecia tolo ao pensar que eu não pretendia matá-lo. — Além disso, agir de forma tão leviana perto de um assassino como eu… Chega a me ofender.

— Tudo bem, se quer guardar segredo, não precisa responder. Foi apenas curiosidade. — Abanou a mão como se não fosse nada demais.

— Na verdade, preciso de tempo para conhecer você melhor e saber em qual parte me apego mais. Daí eu te digo. — Falei na esperança que ele demonstrasse respeito por quem eu era, talvez um pouco, só um pouco de medo.

— Teremos muito tempo para nos conhecer. — Remy fez parecer um convite. — Se serve de consolo olhe o retrovisor, verá um carro. Nele há quatro policiais armados. Viu? Não tive intenção de ofender, Sr. Assassino Muito Perigoso.

— Você está flertando com o perigo Remy. — Pisei no acelerador e girei o volante, saindo do local estacionado. O carro atrás de nós acelerou, seguindo a uma distância bem próxima.

— Era o que minha última parceira gostava de me dizer.

— E o que houve com ela?

— Pediu transferência. — Respondeu com pressa querendo encerrar o assunto.

Fiquei com a impressão de que ele estava omitindo informações, mas não fiz perguntas, elas pouco me importavam. Dirigi pela estrada. Eu estava do lado de fora da prisão e o mundo parecia diferente. Porém, eu ainda era o mesmo. O homem que matou, estuprou e esquartejou dezessete homens de aparência angelical. Eu era o Demônio de Brume Peak.

***

O policial enfiou a sacola de compras pela janela. Abri, tirei de lá um conjunto de lingerie pink feito de renda e poliéster e o homem deu uma risada sarcástica.

— Você comprou lingerie feminina para o Sr. Louic, oficial Brenson? — Remy tirou os olhos do celular apenas para encarar o soldado de uniforme. Ele a princípio não compreendeu o tom e manteve o sorriso. — Volte lá, tire todos da loja, vamos entrar. — Remy guardou o celular no bolso. O soldado nem se mexeu. — O que está esperando?

— Senhor, a loja tem três andares, está cheia.

— Bem, já que você é incapaz de realizar uma tarefa tão simples, eu mesmo terei que fazer. Ou talvez eu deva preencher um relatório sobre o seu exótico desejo em ver o Sr. Louic de lingerie?

— Não senhor, já estou indo senhor. — O guarda se afastou com desgosto, assobiou para outro homem e o chamou. Eles se encontraram na calçada. — É para as pessoas saírem, o Sr. Bergeron vai acompanhar o Sr. Louic nas compras.

— Mas que droga. — O soldado olhou para nosso carro e coçou a barba, rangendo os dentes.

— Sabe… — Perfurei o silêncio do carro, mas Remy não me olhou, ficou observando os soldados e as pessoas saindo da loja. — Você não precisava fazer isso. Mais tarde no hotel, eu encheria ele de socos. Sei me defender.

— É claro que sabe, mas isso traria problemas. Preciso de você aqui fora resolvendo um caso que nem mesmo o mais inteligente detetive em serviço, no caso, eu, conseguiu resolver! Então, não vou deixar você socar a cara de Brenson por mais que eu queira. — Ele abriu a porta e desceu. — Venha, traga esse pacote, vamos trocar por algo mais interessante.

Que pena que não era um sex shop, eu poderia fazer uso daquela lingerie de outra forma. Abri a porta e desci do carro, ainda estranhando o ambiente externo. O sol já estava um pouco mais quente, mas não o suficiente para me fazer suar. Coloquei o capuz do moletom na cabeça, em uma tentativa de não ser visto, e emparelhei com Remy, que ficou me esperando na porta da loja.

— Bem, você é um cara grande, vamos direto na sessão de roupas largas. — Avaliou, subindo os olhos pelo meu corpo. — Conforto ou estilo?

— Vai mesmo ser casual a respeito disso?

— O quê? Somos dois homens muito bem-apessoados fazendo compras. — Ele puxou a jaqueta ajeitando no corpo e empurrou o cabelo para trás do ombro. Admirei a curva de seu nariz empinado, como ele se encaixava com perfeição ao rosto, o pescoço de cisne tão convidativo que se eu fosse um vampiro não hesitaria morder. Aliás, mesmo se não fosse.

— Então você me acha bem-apessoado? — Não escondi o sorriso.

— Você sabe que é. Era como conquistava os caras com quem se envolveu, certo? — Passou para dentro da loja. Três atendentes estavam em pé paradas no corredor. — Onde fica o setor masculino, por favor?

— No segundo andar à esquerda. — Uma mocinha acenou, a única que não escondeu o rosto.

— Obrigado. — Remy retribuiu a gentileza da informação com um sorriso e virou o corredor, olhou para o teto, onde havia uma placa pendurada e marrom indicando a escada rolante. Adiantou-se até o local, um segurança da loja nos deu passagem.

— Não vou mentir. Todos me achavam bonito e sedutor. — Aproximei-me dele, observando como ele se mexia pela loja, procurando em todas as araras, mas ao mesmo tempo, não procurando nada.

— E articulado, você enganou muitas pessoas. — Remy segurou no corrimão e pegou o primeiro degrau.

— É assim que você me vê? — Segui logo atrás dele, ávido em não me distanciar demais. — Bonito, sedutor e articulado como o demônio?

— Ah, vamos. — Ele girou me encarando e guardou as mãos no bolso. — Eu vejo você exatamente como você é.

— Um cruel, sádico e horrível matador? — Desafiei.

— Não sou juiz, sou investigador. — Desviou-se da pergunta.

Ao chegar no segundo andar, Remy tomou distância. Fiquei um pouco desnorteado com o local, era uma loja grande e com diversos tipos de roupas. Manequins se espalhavam por todos os cantos e parei diante de um, branco, cuja forma do corpo era extremamente realista, embora não tivesse rosto.

Uma vez furtei um manequim de uma loja e me deitei com ele na cama. Era bom, eu podia acariciá-lo, tocá-lo e ele era tão quieto e passivo que não desagradava. Gostava da ideia de ter alguém na minha cama, eu sempre gostei, porém minha avó descobriu e me fez jogar o manequim fora. Sempre me perguntei sobre o que teria sido se eu não tivesse jogado o manequim fora. Por acaso, eu teria matado tantas pessoas? Tenho por mim que chegaria um momento em acharia frio e artificial. Aprendi a apreciar o calor, a maciez e o aroma da carne humana.

— O que vai ser? — Remy interrompeu meus pensamentos, se aproximando por trás. Girei, encarando-o e não pude evitar compará-lo com o manequim. Remy era dono de uma vivacidade sem igual, uma presença mordaz e imponente. Ele seria facilmente um cantor famoso ou algo no estilo, seria impossível passar despercebido pelos locais. Era admirável como seus olhos brilhavam, como sua boca era avermelhada e cheia de saliva e o quanto eu queria seus lábios colados no meu. — Não pode escolher casual demais e nem esportivo, tem que parecer sério.

— Qual orçamento?

— Escolha o que quiser, certamente quer colocar alguma coisa na conta do Estado.

— E devo retribuir com um desfile? Sem roupa no trocador? — Provoquei.

Ele sorriu, meio sem graça, abaixando a cabeça e balançando em negação enquanto coçou a sobrancelha. Então,Remy me encarou sério como se algum botão ligasse dentro dele. Foi o olhar mais duro, frio e repressor que já recebi. Mais ou menos como da minha avó. Meu coração acelerou de um jeito ruim, queimando dentro do corpo e foi como ser humilhado, ainda que nenhuma palavra saísse de sua boca.

Desviei daquele olhar e agarrei a roupa de uma arara mais próxima, sequer olhei se era o meu número e nem me importei que era uma camisa azul marinha com unicórnios.

— Vou provar essa. — Fui para o outro lado com pressa.

No caminho, peguei mais algumas roupas sem pretensão.Adentrei o provador, que estava vazio, mas um painel eletrônico marcou o número de peças, lembrando-me de que saí da cadeia no futuro. Não acompanhei a evolução do mundo.

Diante do espelho tive uma visão íntegra do meu corpo. Fazia tempo que não me via, mas gostei do resultado de trabalhar horas na academia da prisão. Eu tinha algumas tatuagens agora, que não tinha antes de ser preso, fiz com colegas de celas, digo, antes deles decidirem que era melhor manter-me sozinho. Retirei as roupas do cabide e vesti, gostei de algumas, de outras detestei.

Ao sair do trocador para buscar mais algumas peças, noteique Remy não estava naquele andar. Um dos guardas de uniforme estava mais afastado fingindo casualidade ao olhar um grupo de paletós quando sabíamos que estava de olho em mim.O policial vestia colete, mantinha a mão na arma em sua cintura e embora estivesse me observando, não tinha coragem de me olhar nos olhos, mantendo uma distância profissional de obrigatoriedade.

Percebi que era isso o que eu gostava em Remy. A forma com que ele me olhava. Talvez eu arrancasse seus olhos para que ficassem comigo, mas não os comeria, seriam meu troféu… Se bem que também detestava a forma com que ele me repreendia com o olhar. É, definitivamente não seriam os olhos.

Fui para perto do guarda e peguei um paletó, afinal, Remy disse que eu precisava parecer sério. Peguei uma jaqueta de couro e algumas camisas. Lembrei de pegar um pacote de cuecas e meias, provei até sapatos e quando finalmente achei que havia escolhido tudo, virei para o soldado:

— Terminei.

Ele olhou no relógio, chamou no rádio e avisou que estávamos descendo. No instante em que peguei a escada rolante e vi Remy lá em baixo, meu coração deu um salto. Ele estava com as mãos no bolso, me olhando e sério, mas foi como estar em um encontro a dois. Afinal, ele estava me esperando. Parecia que se importava comigo.

— Deixe ver. — Pediu.

Parei diante dele. Abri a sacola de pano grande da loja e ele colocou a mão para dentro, conferindo o que eram. Tirou o pacote de cuecas e franziu a testa.

— Precisam ser grandes para acomodar direito.

— Não perguntei. — Soltou o pacote e chegou ao final da sacola. — Esqueceu os pijamas.

— Gosto de dormir pelado.

— Pegue um pijama, Sr. Louic, não quero ter que responder sobre isso em um relatório.

— Não, obrigado. — Forcei um sorriso e fechei a sacola, indicando que não pegaria. Quis analisar suas reações, Remy estreitou os olhos. — No máximo um short.

— Menos mal. — Cedeu, apontou com o queixo para o soldado atrás de mim, que saiu reclamando para ir buscar um short para mim, sabia que não traria nada ofensivo ou receberia uma advertência de seu superior. — Venha comigo, Sr. Louic.

O segui até o caixa. A atendente se prontificou a nos atender e fiquei com a impressão de que Remy havia conversado com ela enquanto eu experimentava roupas. Se gostei disso? Nem um pouco. Já estava ardendo de ciúmes.

— Crédito ou débito, senhor? — E sorriu para ele.

Inflamei por dentro e se fosse outra ocasião, sairia da loja, sem ao menos comprar nada. Porém, ali não fiz nada. Remy pegou sua carteira do bolso detrás da calça e abriu. Vi sua foto, ao lado do impressionante e polido distintivo. Ele tirou um cartão preto e entregou para ela.

— Crédito.

— Achei que disse que tinha um orçamento. — Inqueri curioso.

— E tenho, mas assim junta milhas.

— Gosta de viajar Sr. Bergeron?

— Eu prefiro meus pés no chão, mas minha irmã tem duas crianças.

Não esbocei reação. Guardei aquelas informações como ouro precioso. Eu sabia que ele não seria perfeito, que cometeria erros e naquele momento, me deu duas informações que poderiam ser usada contra ele no futuro. Saboreei aquela vitória pessoal.

A atendente colocou minhas roupas em sacolas separadas. Puxou o cartão e a nota de compra e entregou para o policial ao meu lado. Remy guardou o cartão na carteira e a nota, na parte de dentro. Notei que ele tinha algumas notas em posse, certamente, ninguém anda com a carteira vazia se não passa necessidade, mas eu poderia me aproveitar desse hábito mais tarde.

— Obrigada pelas compras. — A desgraçada continuou sorrindo.

Peguei as sacolas de forma brusca só para que ela levasse um susto e parasse de sorrir para Remy. Ele não se manifestou e tomou a frente de novo. Os guardas vieram logo atrás e dois, na porta da frente, abriram para nos dar passagem.

Coloquei tudo no porta-malas e fechei. Soltei um suspiro enquanto observava os policiais irem para o segundo carro. Gravei a chapa do carro de Remy.

— Tem um cigarro? — Pedi, virando para ele.

O investigador passou a mão pelos bolsos da jaqueta procurando e tirou o maço, me entregando. Peguei um, devolvi para ele, ao mesmo tempo em que ele me passava o isqueiro. Mais um erro? Acendi o cigarro, queimei a ponta e devolvi, tragando, soltando a fumaça intensa pelo ar.

— Quando vamos comer? Minha barriga está roncando.

— Já?

— Você mesmo disse, sou um homem grande.

— O hotel terá serviço de quarto. Você também está fedendo e precisa de um banho. — Remy cruzou os braços e esquadrinhou o local, enquanto se recostava no porta-malas.

O vento frio balançou seus cabelos e fiquei observando-o por um tempo no silêncio enquanto eu fumava. Pelo cheiro do mar eu sabia que não estávamos longe do porto e que chegaríamos em Brume Peak pouco antes do entardecer. Remy se recolheria em seu quarto, eu ficaria sozinho no meu… Estava buscando prolongar aquele momento com desespero. Detesto quando me deixam sozinho. Eu não sabia o que fazer para forçar Remy a ficar comigo, mas sabia o que fazer para abrir um canal de diálogo e de conexão.

— O crime que você precisa de ajuda, tem um arquivo para eu estudar?

— Tem.

— Alguma coisa que queira me dizer sobre ele?

— Não quero contaminar sua opinião com a minha, então, não falaremos disso no momento, mas basta você saber que é um crime pesado. O assassino ainda não parou.

— Quantas vítimas?

— Existem cinco mortes. Ocorriam a cada seis meses, mas seu método evoluiu nas últimas duas e a frequêcia entre as últimas duas foi de três meses.

— Tudo isso? — Aquela informação me surpreendeu. — Soa bem ousado.

— Identifiquei essa ousadia como prepotência, mas é quase a mesma coisa.

— Vai ficar pior. Ele vai matar mais e mais rápido. — Traguei o cigarro, sentindo o pulmão queimar.

— Por isso mesmo precisamos encontrar um suspeito. Tirando a ex-freira, as outras quatro vítimas não foram identificadas. Encontradas com um avançado estágio de decomposição e faltando as cabeças, os exames de DNA não deram compatíveis com nenhum arquivo no banco de dados da polícia. — Remy deu de ombros, fechando o casaco, com frio. Escondeu as mãos no bolso. — É aleatório demais.

— Deve haver um padrão. — Bati o dedo na têmpora. — O cara que me analisou disse que sempre tem um padrão.

— Não exatamente.

— Tem os insetos.

— Mas as vítimas possuem idades variadas, de diversos gêneros e porte físico.

— Talvez não haja razão pessoal e apenas o desejo de matar ou desafiar a polícia. — Joguei o cigarro no chão e pisei. — Quer dizer, se eu soubesse que existe um padrão antes de cometer os meus crimes, eu teria tentado evitá-los.

— É, acho que você tem razão. No caso de ser um assassino engenhoso, o que pode ser o caso.

— Não parece dar muito crédito a essa possibilidade. — Virei para ele, com as mãos na cintura. Remy ergueu os olhos para mim. — Tem alguma coisa que você sabe e não quer dizer sobre o caso? Alguma coisa que tem a ver com você? E comigo?

— Perceptivo. — Forçou um sorriso, mas saiu algo como desprezo. Definitivamente Remy detestava ser colocado contra a parede e ali estava eu, uns vinte passos na frente dele. — Já sabe que fiz uma tese sobre você no meu doutorado. Estudei seu método de assassinato, até ganhei um prêmio por dizer que se não estivesse bêbado não teria cometido deslize nenhum e passaria impune por toda a vida, como outros grandes assassinos do mundo.

— Bem, você me estudou bastante… — Debochei. Para ser sincero, aquilo me envaidecia. — Mas o que é que tem?

— Eu não fui cotado para investigar o caso, Sr. Louic, você foi. Estou aqui apenas para garantir que você o faça. — Revelou, seus olhos firmes no meu. Desencostou-se do carro. — Vamos para o hotel e você mesmo poderá ver os arquivos, estão na mochila, no carro.

Ele foi para o veículo e eu dei a volta, pelo outro lado, correndo para alcançá-lo. Quando sentei, Remy já tinha o celular na mão e o carro que nos seguiria ligou o motor.

— Quer dizer que na verdade, você quem é meu assistente?

— Ainda estou gerenciando a investigação e você. Então, não, não sou seu assistente, Sr. Louic.

— Quando disse que nem mesmo você conseguiu solucionar o caso, pensei que…

— Ainda sou o mais inteligente investigador dessa cidade, não se deixe enganar, mas minha mente procura padrões, métodos de assassinato, elos conectivos psicossociais que possam definir o perfil de um assassino. Mas para esse caso, um investigador não é o suficiente.

— Apenas diga logo que precisa de mim, Remy.

— Está se divertindo com isso, Sr. Louic?

— Muito.

— Então não vou dizer. — E calou-se.

— Gosto mesmo de um desafio. — Retruquei com um sorriso no rosto.

Apertei o botão para ligar o carro e dirigi até o hotel segundo as orientações do GPS.

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