(5) Sociedade dos Vampiros

DEPOIS DE MAIS UM DIA DE TRABALHO na lavanderia, Byrn deu mais uma sacola com dois potes, contendo refeições para minha mãe e meu irmão. Eu a abracei forte. Quando puder, vou retribuir todo favor que ela fez.

Tenho uma sensação de dívida terrível com todos os meus amigos, especialmente Lyek e Byrn, que têm me auxiliado sem que eu precise pedir.

Veja se come um pouco, você tem que estar forte para a doação. — Byrn pisca um dos olhos azuis sorrindo e bate as duas mãos em meus ombros. — E depois conte tudo sobre a festa! Espero que a comida seja realmente boa!

Byrn é capaz de animar qualquer um quanto a isso, a empolgação dela é única e, por um instante, quase esqueço o verdadeiro motivo de pisar em uma festa dos nobres! As pessoas normais, os plebeus, não participam de festas, a menos que sejam doadores e a maioria fica do lado de fora. Apenas a nobreza é permitida dentro do salão.

Se der. Você sabe, estou indo trabalhar e não me divertir.

Ah, por favor, Jay! — Byrn torce a boca, contrariada. — Você está indo trabalhar e não para o abate.

Dá quase no mesmo — resmungo. Todos sabem que é questão de tempo. — Nosso sangue não dura para sempre e nem todo mundo tem uma medula óssea tão forte, especialmente quando trabalha para o Glutão.

Toda vez que você fala o nome dele, fico arrepiada. — Byrn faz cara de nojo, do tipo quando a gente vê uma barata em cima da nossa comida. — Ele deve ser um velhote nojento. Bem, conte sobre isso também! E tente se aproximar da casa dos Rynbelech! Quem sabe você pode me indicar para uma vaga!

Suspiro. Byrn não tem jeito mesmo, ela acha que vampiros são como aqueles do livro que ela lê e isso a torna incapaz de enxergar a monstruosidade dentro deles. O que me faz pensar em Nytacha, minha prima, que também está enganada.

Byrn! — Seguro no braço da minha amiga com força. — Você fica de olho na Nytacha para mim?

Ahn? — Byrn pisca sem entender e olha para trás de mim. Nytacha está conversando com dois outros jovens da lavanderia, acredito que ambos interessados em sexo! — Por quê? Ela parece ótima e apesar de ser simpática com esses idiotas, ela não faria nada com eles.

Estou mais preocupada com quem ela anda sendo simpática! — Dou uma risadinha de nervosismo. — Certo alguém que muda de turno para estar sempre na porta da lavanderia...

Zerion?! — Byrn abre a boca e os olhos de forma exagerada, sem se conter, olhando para trás, onde os guardas estão.

Fale baixo! — Solto seu braço e seguro em seu rosto, virando para mim. Resfolego e sussurro. — Você sabe que eles têm ouvidos supersônicos.

Calma, Jay. — Byrn coloca as duas mãos na boca para esconder um sorriso. — Nytacha é tão sortuda! Agora tudo faz sentido!

Pare com isso, não é amor. — Bufo, enchendo as bochechas de ar. Arrumo as sacolas no meu braço. — Você sabe que ele está interessado em sangue e Nytacha é uma garota inocente e indefesa. E se ele estiver forçando ela a doar sem um registro?

Acha que ela cairia nessa? Seu tio está sempre em cima...

Isso é o que preocupa. Meu tio sempre a protegeu demais! Ontem vi Zerion e ela se beijando depois do toque de recolher, e sabe lá o que mais eles andam fazendo! — Coloco uma mão na testa, ainda falando baixo. Esse assunto está me dando dor de cabeça. Byrn exala ar como se estivéssemos assistindo Romeu e Julieta. — Você entende, certo? Eles combinaram de se encontrar essa noite durante a festa.

E como você sabe que não posso doar, quer que eu os espie?! — Ela parece relutante com a ideia. Faço que sim com a cabeça. — Não, nem pensar.

Qual é Byrn, você é a única que pode ajudar, e olhe bem para Nytacha — aponto. Minha prima está de costas para nós, acenando para os rapazes. — Ela tem esse corpão, mas a maturidade dela é de uma criança.

Bem, teve mesmo aquela vez que achamos uma boneca no lixo e ela quis para ela... — Byrn pondera e resfolega. — Tá bem, vou ficar de olho, mas só porque acho que se Zerion tem interesse em se pegar com ela, tem que oferecer mais que uma cesta de frutas. — Ela dá uma piscadela.

Até respiro aliviada e acalmo um pouco. Confiro minha prima mais uma vez e, em vez de andar até onde estou, ela retorna para a porta da lavanderia, exatamente onde Zerion está. Algo que ela sempre fez, despedir-se dele, ganha outra proporção. Nytacha sempre foi muito simpática com todo mundo e eu achava que essa simpatia com ele era agradecimento, mas agora até dói a cabeça de saber que no sorriso de minha prima há algo a mais.

Viu o que eu disse? — Olho enviesada para Byrn. — Nytacha! Vamos logo! — grito, fazendo parecer que ela está demorando demais.

Estou indo! — Nytacha acena de longe e gira, se afastando dos guardas, e para perto de nós. — Por que tanta pressa? É por causa do baile?

Nytacha! — Byrn a recebe com uma chave de braço, puxando-a. Começamos a andar para fora da área da lavanderia, adentrando o pátio. Ainda há luz do Sol, fico com uma grande sensação de segurança. — Então, você estava mesmo reconhecendo Zerion pelo que ele tem entre as pernas, huh? Quem diria!

Jay! — Nytacha joga os olhos azuis furiosos para cima de mim. — Linguaruda!

Obrigada por ser incapaz de guardar um segredo, Byrn! Arfo, ofendida.

Por acaso está tentando arrancar mais coisas antes de se tornar doadora? Faça valer muito a primeira doação! — Byrn continua, enquanto atravessamos o átrio da torre que dá acesso aos apartamentos. Muitas pessoas passam por aqui essa hora, alguns retornando do serviço, como nós, outros já se preparando para a suntuosa recepção no salão de festas.

Não é nada disso! — Nytacha solta o abraço de Byrn, escapulindo. Parece irritada. Ela cruza os braços. — Não estou doando e nem prometendo me tornar doadora, se é isso que querem tanto saber.

Então é o quê? — pergunto brava, com a voz dura. Byrn olha torto, como se eu estivesse atrapalhando e apenas reviro os olhos deixando elas conversarem.

Então o quê? — Byrn repete, mas sua voz soa animada e curiosa. Ela segura no braço de Nytacha, caminhando juntas. — Sabemos que quando um deles manda presentes está marcando o território, e não podemos negar que Zerion quer garantir que será o primeiro da fila. Então, diga, o que seus pais acham disso?

Bem, para minha mãe, quanto maior o presente, melhor, mas meu pai ficou muito enciumado! — Como um patinho inocente e casto, Nytacha cai na conversa de Byrn. Ela até sorri e ergue um dedo, enfatizando. — Não tanto quanto Román ficou ao descobrir que iam enviar presentes, aliás!

Então foi isso? Ele se adiantou?! — Byrn olha para mim e pisca um olho, sinalizando que sua tática deu certo. — Não importa se são vampiros ou humanos, garotos sempre se mordem de ciúmes quando outras pessoas manifestam interesse!

Exatamente!

O nome dele é Román Zerion? — A voz de Byrn ressoa. Não posso negar que Nytacha nunca teria revelado isso para mim.

Nytacha parece perceber que falou besteira só agora, abrindo bem os olhos e a boca.

Zerion, apenas Zerion. Tá bem? — Ela se desespera, como se o nome de alguém fosse algo sério.

Hmmm, tá bem. — Byrn concorda. — Você já o viu sem capacete?

Já.

Você tem que contar tudo! Ei, quer jantar na minha casa? Jay vai à festa e eu não tenho nada para fazer. — Byrn dá um pulo de alegria, empolgada. Tenho certeza que ela está representando, tentando fazer Nytacha ser levada por sua emoção. Byrn faz isso com as pessoas.

Não posso, eu tenho um... — Nytacha se interrompe, percebendo suas próprias palavras dessa vez. — Meus pais estão esperando. É melhor eu me apressar. — Ela se adianta alguns passos. — Até amanhã, Byrn.

Até! — Byrn acena, lança um sorriso, mas estou de cara fechada, nada feliz com o que escutei de Nytacha.

Você ouviu? Não sei o que é pior, um interesse amoroso ou uma doação sem registro! — Coloco a mão na testa de novo, exausta com esse assunto, e olha que faz só um dia que fiquei sabendo disso!

Não é assim tão ruim, Jay. Estamos falando de Zerion, ele é um Soldado de média patente! Se fosse um nobre, eu entenderia sua preocupação com a segurança de sua prima, mas ninguém liga para o que um soldado faz. Não é proibido que um vampiro namore com uma humana.

Claro, esqueci que estou falando com você, que acredita que um vampiro poderia mesmo se apaixonar por uma de nós! — Dou até uma risada, mas agora Byrn fulmina com o olhar, irritada.

E se for? E se eles estiverem apenas apaixonados, você já pensou nisso? Além do mais, ele deu uma cesta para garantir que outros caras não fizessem primeiro, é até um gesto bonito, tipo uma prova de amor.

Dizer que quer ser o primeiro a cravar os dentinhos na Nytacha não é uma prova de amor, Byrn! — Ergo as mãos, a sacola do braço direito balança e Byrn cruza os braços, colocando as costas um pouco para trás, aborrecida comigo. — Olhe, eu apenas quero ter certeza que ela não está doando sem registro ou que ele não está forçando ela a nada, tá bem?

Byrn descruza os braços e resfolega, colocando as duas mãos na cintura.

Você está fazendo drama! E eu entendo que você está estressada por causa do baile, da doação, do Glutão... Te entendo, Jay, e se eu estivesse no seu lugar, também me preocuparia com minha prima. Só por isso eu vou ficar de olho nela essa noite, mas quando a gente descobrir que está tudo bem, que é um flerte normal e os pais dela estão de acordo, inclusive, como parece que estão, então vamos deixá-los viver esse romance em paz, combinado?

Se tiver tudo bem. — Deixo a ênfase no “se”.

Ótimo! — Byrn sorri e dá as costas, pegando o caminho para sua ala.

Observo ela se perder entre a multidão com um pouco de resignação. Será que eu estou fazendo mesmo drama? Será que está tudo bem para Nytacha se envolver com Zerion? Se fosse Byrn que estivesse apaixonada e sendo correspondida, eu ficaria até feliz, mesmo que fosse um vampiro. A melhor das hipóteses para subir de vida nesse inferno é ser cortejada, melhor ainda que não seja apenas pelo valor do nosso sangue, certo? Eu deveria ficar feliz por minha prima achar um vampiro disposto a bancá-la pelo resto da vida… mas, então… por que sinto esse aperto tão grande no coração? É como se tivesse algo errado, algo que Nytacha está escondendo.

Respiro fundo. Não tenho muito tempo para perder com isso e preciso ficar pronta para o baile. Vou para casa, minha mãe está brincando com meu irmão e mostro a comida. Johin ataca os potes e minha mãe se alimenta. Vou para o banho.

O nosso banheiro não é o melhor do mundo e a água é um luxo que nem sempre podemos pagar. Vou ficar feliz quando puder instalar um chuveiro novamente e não precisar mais banhar na torneira ou com um pano úmido.

Assim que tiro minha roupa, escuto uma batida na porta. Abro só uma frestinha e minha mãe invade com vontade, empurrando.

Jay, precisamos conversar. — Ela diz séria, os olhos azuis em cima de mim com fervor.

Eu sei o que vai dizer, mas agora é tarde para eu voltar atrás. — Cruzo os braços por cima do meu corpo nu. — Já peguei meu certificado.

Não vim te convencer a não fazer. — Ela ergue as mãos em sinal de paz. Até estranho. Ué, normalmente ela faria de tudo para convencer-me de que estou errada. — Você quer doar, tudo bem, concordo com você. Mais cedo ou mais tarde você precisaria ajudar em casa, a lavanderia paga pouco e meu sangue já não vale mais. Temos que nos unir para sustentar Johin.

Puxa, que bom. Seria péssimo brigar com ela nesse momento. Respiro e lanço um pequeno sorriso.

Que bom que você pensa assim, mãe. Você sabe, eu faria de tudo por vocês dois. Não quero que você seja deportada da Torre Bawarrod, Johin acabe sendo adotado por minha tia e que eu tenha que me casar. — Lágrimas até começam a surgir no meu rosto.

Venha aqui, não chore. — Ela abraça meu corpo com aquele carinho protetor. — Se ficar de cara inchada, seu Mestre ficará muito insatisfeito. — Solto-me dela no susto, encarando-a. Como ela sabe que estou em uma doação permanente e não apenas um certificado esporádico? — Eu vi os papéis nas suas coisas, o certificado anônimo. É para o Glutão, estou certa. — Ela se aproxima da torneira, pegando um pano. Ela molha o pano na água e fecha, colocando no meu braço e esfregando forte. Não que eu esteja muito suja, afinal, trabalho na lavanderia. — Vão te dar um bracelete e você terá que usá-lo para sempre, substituindo esse aí que você tem. Ao mesmo tempo em que esse bracelete te protegerá, também será uma condenação. A sociedade dos vampiros não é como a nossa. Você ainda se lembra como era antes dos ataques?

Sim, eu lembro. — E como desejo poder voltar para aquela época em que tínhamos tudo e não sofríamos tanto. — Sinto falta daquela época.

Esqueça aquela época. — Mamãe molha novamente o pano, agora vem lixar meu outro braço. — Você é uma serva agora, uma escrava. Precisa entender essa relação o quanto antes se quiser sobreviver naquele ninho de morcegos. — Até soa como se ela tivesse ressentimento deles. — Quando você doa lá em baixo é quase como aquelas prostitutas de rua, mas dentro da sociedade, com os nobres, é diferente. Você tem valor e esse é um espólio que seu Mestre pode utilizar por prazer, por vaidade, qualquer motivo que ele ache que vale. Você tem que se mostrar mais valiosa ainda do que ele imagina, mais do que apenas um saco de sangue. Já vi meninas saírem das ruas para serem permanentes e darem de tudo para poder voltar, Jay. Não seja uma dessas.

Observo seus olhos sérios grudados na minha pele, procurando defeitos, valores, o que for. Minha mãe nunca se sujeitou a ser doadora permanente, preferindo doar sangue nas ruas, tentando, mesmo que de forma ilusória, ter algum controle da própria vida. Vejo isso nela agora, essa força que é como uma chama e que, infelizmente, está se apagando.

E eu tenho que ser de que tipo então, mãe? — pergunto com a voz baixa.

Você tem que fazer o seu mestre valorizar você a ponto de que, se ele beber todo o seu sangue, valha menos que exibir você para os outros. Você tem que tomar o controle, mesmo que isso signifique fingir que ele tem o controle sobre você. — Passa o tutorial, olhando diretamente em meus olhos. Não sei o que essas palavras querem dizer na prática, na verdade, tenho até um pouco de medo delas. — Se você se valorizar a esse ponto, por mais que ele sinta vontade, não vai destruir você.

Sei, tenho que durar mais que os outros, já que ele acaba com todos em segundos. — Respiro amedrontada, desabando. Estou tentando ser forte, mas os boatos sobre o Glutão me deixam aterrorizada com esse encontro. Quer dizer, é um velho nojento que bebe o sangue de todos de forma porca e nunca se satisfaz. O quão horrível não é? Agora que estou quase indo lá me oferecer a ele, percebo que é pior do que imaginei. — Tenho muito medo que ele me destrua logo de primeira, que meu sangue nem seja suficiente para as goladas gigantes que todo mundo diz que ele dá. Pensei em pedir muito dinheiro pela primeira mordida, já que não é garantia que vá ter a segunda.

Não apenas isso, Jay. — Ela segura no meu rosto com as duas mãos. — É mais do que simplesmente durar um dia ou dois anos. Você tem que fazer ele amar você.

As palavras delas doem em mim de uma maneira estranha. É como se ela estivesse dizendo que tenho que ser uma concubina, ou algo do tipo. É o que Nytacha devia fazer, talvez o que seus pais dizem a ela para fazer. Infelizmente, nessa nossa realidade, não temos muitas opções. Tenho certeza que Nytacha conseguiria um nobre e que seus pais devem querer isso para ela, mais do que um soldado. É horrível perceber que conseguimos prolongar um pouco o nosso tempo de vida, mas que, até esse prolongamento, não tem prazo de validade. Eu vou viver o quê nessa expectativa? Até os dezoito?!

Como vou fazer isso, mãe? Nem sou tão bonita quanto a Nytacha! Não tenho nada a oferecer para ser mostrada como um cachorrinho valioso. — Encho as bochechas de ar, chateada. Eu e Nytacha somos diferentes, sou baixa, ela é alta e tem um corpo cheio de curvas, enfim, todos já sabem. — Que vantagem eu tenho para oferecer?

Você é uma garota incrível, destemida, disposta a encarar um glutão em troca do bem estar da sua família. Essa força de vontade que você tem, minha filha, é seu maior triunfo. — Mamãe solta o meu rosto e volta a molhar o pano na pia. — Além do mais, pelo que dizem do Glutão por aí, ou ele é um homem com muita segurança em si mesmo ou com nenhuma.

Arrisco dizer que é a primeira opção. — Um arrepio surge, só de pensar no tipo de monstro que ele é.

Mesmo que seja, trate-o como na segunda. — Mamãe gira, olhando para mim. — E se você o enxergar como um ratinho e não como um lobo, com certeza o colocará nesse patamar.

E se ele se irritar e quebrar meu pescoço? — Coloco as duas mãos na garganta, em pavor.

É um jogo, minha filha, e você tem que jogá-lo. Já tem um certificado, já se inscreveu na vaga… agora você precisa fazer isso, ou então vai morrer em um estalar de dedos, eu e Johin sofreremos sua perda e nada do que você pensou que ia conseguir se concretizará. — Ela cruza os braços, respirando, quase como se estivesse dando uma bronca por ter me inscrito sem sua autorização. — Escute bem, Jaylee, não há mais espaço para você ser uma criança agora, e se quiser sobreviver, precisará usar de todos os artifícios que tiver para se manter viva. Escute as conversas dos nobres, procure conhecê-los, descubra fraquezas e utilize-as a seu favor. Você vai lá se disfarçar de caça, mas você é o caçador. Você está entendendo, minha filha? Eu quero que você volte viva para casa e que cuide do seu irmão.

Sim, mãe, eu entendi — confirmo.

Procuro absorver as palavras dela como conselhos valiosos de uma mulher mais experiente, que lutou com tudo o que pôde para criar eu e Johin nos últimos anos nesse inferno de torre. Se quero sobreviver e salvar minha família como propus, preciso crescer e tornar-me o mais perto de ser como ela.

E se ele passar as mãos nojentas em mim? — pergunto, preocupada.

Você o beija em resposta. — Mamãe sentencia com firmeza.

Compreendi o que ela quis dizer. Confirmo balançando a cabeça e respiro fundo. Não posso encarar esse baile como um boi indo para o abate. Tenho que ser um boi sendo leiloada, que se orgulha de ser o boi mais gordo.

●●●

Coloque isso e entre. — Um homem alto e barbudo, com vestes antigas e monóculo, entrega uma caixa preta.

O humano estava encarregado de checar meus papéis de registro, pegou todos eles e trocou pelo o que acredito ser o bracelete. Não olhou nos olhos e nem perdeu muito tempo comigo. Um guarda uniformizado e de armadura abriu uma grande porta para mim e entrei, atravessando uma área sem luz, toda negra e com cortinas púrpuras ao redor. Parecia até que estava entrando em um teatro.

Adentrei uma sala menor, como se fosse os bastidores, uma espécie de camarim, redonda e com um sofá circular ao redor, muitas pessoas sentadas ali, cada um com seu bracelete reluzindo. Eram homens e mulheres – elas, a maioria –, de várias idades, mas todos abaixo de trinta anos, com roupas de gala quase eróticas, grandes decotes nos seios, nas pernas, homens com braços fortes à mostra. Eles se exibem, bem como minha mãe disse, e acho que vim mesmo com o vestido errado. Escuto uma risadinha de um grupo no canto e procuro não me deixar abalar.

Olho minha caixa de veludo preta. Há um brasão com uma serpente alada se enrolando, quase como um caduceu, em dourado, mas formando um círculo. Em dourado está escrito “Riezdra”. Acho que esse é o sobrenome do Glutão.

Abro a caixa e tiro o bracelete, igual ao brasão. Coloco no braço até o fim, mas ele fica um pouco folgado e quando abaixo o braço, escorrega até o pulso. Mais algumas risadinhas. Estão começando a me incomodar.

Aqui, me deixe ajudar você. — Uma menina de cabelos castanhos com as pontas loiras se aproxima de mim. Sabe quando a pessoa deixa o cabelo crescer, mas não continua a pintar? É o caso. Ela tem o rosto redondinho e olhos bem grandes, com a boca pequena. Dou um sorriso sem graça, sem mostrar os dentes e estico o braço. Ela empurra o bracelete e depois puxa a lateral, prendendo-o firme na minha pele. Dou um pinote, sentindo dor. — Assim não vai soltar.

Olho para o meu braço. O bracelete ficou em cima da marca do meu bracelete anterior, o de filha de doadoras. Olho para o braço dela e percebo que não é um bracelete que ela usa, mas sim uma tatuagem, marcada pela casa a que serve; um lobo negro. A menina se afasta, voltando a se sentar, e percebo que todos estão tatuados com o símbolo do brasão das casas as quais servem. Uma menina tem uma borboleta na bochecha direita, um rapaz mais velho tem a mesma marca no braço musculoso e um homem barbudo, no pescoço.

Conto mais ou menos trinta pessoas na antessala, sendo eu a única com o caduceu circular e sem tatuagem. Acho que eles nem perdem tempo tatuando para a casa Riezdra, já que o Glutão se livra de seus escravos rapidamente. A sensação do abate volta a me incomodar e preciso colocar a mão na nuca, massageando.

Está nervosa? — pergunta um rapaz de cabelos bem loiros e olhos escuros. Ele tem um lobo negro no pescoço, igual ao da menina que me ajudou a pouco, talvez sejam de uma casa mais simpática.

Como todos na sala, ele é bem bonito, alto e forte. Com certeza Nytacha se destacaria entre eles, mas eu sou engolida pela beleza de todos. Como vou me mostrar cheia de valor aqui? Preciso pensar logo em alguma coisa.

Um pouco — revelo com um sorriso sem graça. — É minha primeira vez.

Dá pra ver! — Uma garota com um sorriso sádico se intromete.

Ela tem um símbolo circular com pontas, como se pegasse fogo ou explodisse, tatuado no ombro e seu vestido é tão bonito que parece ir a uma festa de casamento, usando até as melhores joias. Sinto-me como se estivesse dentro de um filme de época, como aqueles que passava na televisão e eu detestava assistir. As outras meninas e um rapaz com o mesmo símbolo dão risada de mim. Eles estão todos no canto, sentados como verdadeiras celebridades.

Não ligue para eles. — O garoto revira os olhos escuros apontando para o grupinho e fixa o olho em mim, rindo. — Eles agem como se fossem os donos do mundo por servirem aos Bawarrod.

Oh — solto, compreendendo a razão de se sentirem tão acima dos outros a ponto de desdenharem de uma novata. Encaro novamente o grupinho de três meninas e um menino, analisando-os.

Sou Elliot e você?

Jaylee.

Eu sou Renira. — A menina, que me ajudou, sorri.

Antes que eu possa agradecê-los pela simpatia, um sino soa e todos ficam de pé. Acabo sendo empurrada pelos meus novos amigos e uma das paredes se abre, revelando ser, na verdade, uma porta grossa com proteção de áudio. A música invade meus ouvidos, sons clássicos com violinos, flautas e oboés. A luz dos lustres de cristais invade meus olhos, quase cega.

Meu coração dá um salto. É isso. É a festa.

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