Capítulo 4

Dizem que existe amor à primeira vista. Particularmente, nunca experienciei esse tipo de sentimentos e nem tenho certeza se isso um dia possa acontecer comigo ou com qualquer pessoa. Acredito que o amor aconteça quando conhecemos a pessoa profundamente e que, à primeira vista, tudo o que pode haver é atração física (por isso certamente já passei muitas vezes, sobretudo com Bernardo). Isto é, como posso amar uma pessoa sem saber nada sobre ela, sem saber se gosta das mesmas coisas que eu, se torce para o time rival ou ronca à noite, se votou em certo candidato ou se não baixa a tampa do vaso?

Esse tipo de conhecimento só se adquire mesmo com a convivência diária, em minha humilde opinião.

Em contrapartida, acredito fielmente no que chamo de ódio à primeira vista. Foi assim com Henrique. Nossas almas não se bateram, éramos como almas rivais.

E aí alguém pode se perguntar como foi que tudo isso aconteceu. Ou que tanto ódio eu poderia sentir de uma pessoa que, ao que tudo indica até esse dado momento, parece normal e até mesmo simpática. Não se enganem, pois os sentimentos ruins ele guardava apenas para mim.

Quando nos conhecemos, eu tinha apenas cinco anos e ele seis. Já conhecia sua prima Carolina há oito meses, porque éramos colegas de escola e, em pouco tempo, ficamos inseparáveis. Era aniversário dela, no final de novembro, em um dia quente, mas não insuportável. A festa era na sua casa e havia poucas crianças, pois ela não convidara todos os nossos colegas, como a maioria fazia.

Henrique era uma dessas crianças. Minha amiga tem apenas uma irmã, esta cinco anos mais velha. Além disso, todos os seus outros primos também estavam nessa faixa de idade, já entrando na adolescência. O único próximo a nós era ele, então parecia óbvio que brincaríamos juntos em algum momento, porque, apesar de às vezes não parecer, sou uma pessoa bastante sociável.

Era ainda provável que nos encontraríamos quase todos os anos a partir daquele dia, logo uma amizade poderia se formar.

A princípio ainda não o tinha conhecido, e minha amiga nem havia falado nada sobre ele até aquele momento, ao menos que me recordasse, então achei que pudéssemos ter ao menos uma boa convivência. Crianças não têm maldade e ainda não estávamos na fase de separar meninos para um lado e meninas para outro.

Sempre fui uma criança bastante amigável e era daquele tipo que comandava as brincadeiras ou que colocava em prática tudo que minha amiga inventava. Contudo, Henrique não me recebeu de nenhuma forma que pudesse ser considerada amigável.

Aquele menino magrelo de cabelos claros e cacheados, como um anjinho, estava mais para filhote de Lúcifer. Quase não abriu a boca para falar comigo ou com as outras crianças, ficando sempre na espreita, de canto, apenas observando nossas brincadeiras, em grande parte sozinho, por mais que Carolina o chamasse o  tempo todo. Mas, na primeira oportunidade que surgiu, me empurrou do balanço, me fazendo cair de joelhos nas pedras, o que resultou em dois belos machucados nos joelhos. Aquele dia acabou com ele rindo e eu chorando como a criança boba que era.

Na segunda vez que nos encontramos, eu então com seis, ele com sete, já estava com um pé atrás, esperando que me derrubasse outra vez ou que me empurrasse, ou até que me batesse. Ele, no entanto, ficou o mais longe possível e esperou até o fim da festa, quando já estava menos atenta, para enfim puxar meu cabelo com toda força.

O problema era que então eu já estava mais acostumada a ficar no meio de tantas crianças e a sofrer certas consequências da interação. Por esse motivo, meu querido pai me ensinou que um homem não deveria bater em uma mulher, por ela ser fisicamente mais fraca, o que significava que eu deveria aprender a me defender do jeito que desse. Acabei por fechar os dedos e acertar um soco bem em seu queixo, para ensiná-lo de que não se deve mexer com uma garota.

Dessa vez foi Henrique quem saiu chorando. Minha mãe não achou aquilo nada engraçado, me levando para casa e me deixando de castigo com o discurso de que violência só gerava violência e que eu era uma menina e não deveria brigar, ainda que meu pai tivesse me defendido.

Imaginei que depois desses dois encontros terríveis, não precisaríamos de mais nada para o ódio crescer. Porém, no aniversário de sete anos de minha amiga, seu primo muito engraçadinho me lançou um pedaço de melancia, sujando meu vestido novo e branco, porque ele parecia muito sem graça, segundo suas palavras. Eu quis pular em seu pescoço e matá-lo com minhas próprias mãos, porém já havia aprendido que, se fizesse isso, Henrique poderia se revoltar. E ele era maior que eu, então achei melhor apenas guardar o rancor e me vingar quando fosse possível.

Parece que sempre fui alguém que guardava sentimentos! A verdade é que por culpa dele eu provavelmente me transformei em uma pessoa vingativa.

Aos oito anos, o nível de nossas brigas chegou a um novo patamar. Agora, já no Ensino Fundamental, os dois sabiam ler e escrever. Assim, fomos convencidos por Carolina a brincar de escolinha, pois ela sempre queria copiar a mãe professora. Utilizando as portas do roupeiro como quadro, Henrique, como nosso “professor”, escreveu de giz, bem grande, a frase Andressa é feia. Furiosa e sabendo que não poderia agredi-lo ou ficaria de castigo, escrevi Henrique é viado na porta.

Naquela época não fazia ideia de que isso não deveria ser usado como ofensa! Nem que estava escrito errado! Isso o fez ficar roxo de tanta raiva e querer partir para cima de mim. Não conseguiu apenas porque Cristina, irmã de Carolina, já com uns treze anos, bem mais alta que todos nós, o segurou pelos braços.

Acredito que foi aí que nossas discussões passaram a ter um tempo maior de duração, com bem mais argumentos e insultos. O que talvez até devesse agradecer, pois me ajudou muito na decisão de escolher a carreira do Direito.

Na festa de nove anos de Carolina, não precisávamos de mais nenhum estímulo extra. Já nos cumprimentamos com agressões verbais, xingando-nos de burros e idiotas, o que nos rendeu mais castigos. Por esse motivo, pedi a Carolina que nunca mais convidasse seu primo para as festas.

No entanto, no ano seguinte, para meu ódio subir a um nível extremo, os pais de Henrique aproveitaram que os irmãos estavam maiores e terminando o colégio e resolveram gastar um pouquinho mais dando uma educação de qualidade ao filho mais novo. Foi quando o matricularam em nossa escola. Ao menos para minha sorte, ele estaria no turno inverso, porque eu estudava à tarde.

Naquele ano, convenci minha amiga a fazer uma festa do pijama para comemorar os dez anos. Apenas para meninas. Logo, não precisaria encontrar com seu primo até o ano seguinte. Foi o primeiro aniversário dela que pude aproveitar ao máximo, sem me preocupar com encontrar aquela pessoa irritante e desagradável de sua família, quem eu já havia apelidado de Praga (até porque só aparecia uma vez ao ano para me importunar).

Ao entrar para o sexto ano, para meu desprazer, passamos a nos ver todos os dias. Seus pais o colocaram o mesmo turno que estudávamos. Então nossas brigas e discussões se intensificaram. Henrique não perdia a oportunidade de andar atrás da prima, como se fosse um guarda-costas, como se não tivesse amigos, e eu não perdia a oportunidade de inventar histórias horríveis sobre ele, ou de insultá-lo de alguma forma.

Além disso, devido à puberdade, naquele ano eu já era mais alta do que ele, o que significava que passaria os próximos anos o chamando de Anão, mais uma palavra que demorei para aprender não se tratar de uma ofensa, mas de um distúrbio de crescimento. A maioria dos garotos da nossa idade eram mais baixos do que eu nessa época, uma vez que, com onze anos, já tinha quase 1,70m e que continuaria crescendo por mais dois anos. Henrique era o único que recebia o apelido maldoso, mesmo não sendo muito mais baixo que eu, apenas porque me dava prazer vê-lo trincar os dentes e fazer aquela expressão irritada sem conseguir me apelidar nada.

Também foi nessa época que, em retaliação, ele passara a me chamar de Noiva do Chuck, em referência à namorada do boneco assassino. Bem, ela era loira e de olhos azuis, mas eu odiava quando ele me chamava assim, pois tinha certeza que não era por causa de seus cabelos e olhos, mas por ser demoníaca.

Como Carolina sempre ficava em cima do muro, sem escolher um lado (que fosse de preferência o meu), já que queria se dar bem com todo mundo, acabava também brigando com minha amiga. O teor de muitas dessas brigas era justamente porque ela queria que o primo também participasse de alguma atividade, como ir ao shopping ou ver um filme, mas que eu nunca deixava. E Henrique parecia fazer de propósito, a convidando para sair sempre que possível apenas para que não pudesse fazer nada comigo.

Todas as vezes em que ele nos acompanhava, alguma coisa horrível parecia acontecer. Em uma dessas vezes, o pai de Carolina nos levou para jogar bola em um parque onde havia várias outras crianças. Acabamos nos enturmando com outros garotos e garotas de nossa idade e fomos jogar “três corta”, aquela brincadeira em que o terceiro precisa bater forte na bola e acertar em alguém para tirá-lo do jogo.

Não, ele não cortou a bola em mim dessa vez, embora eu tenha tentado tirá-lo do jogo diversas vezes. O problema é que alguém jogou a bola e me esquivei, mas ela continuou rolando e saí correndo atrás para que não caísse no lago artificial no meio do parque.

Henrique correu para pegar a bola antes de mim, simplesmente porque seu divertimento era ficar competindo comigo em tudo. Quando cheguei bem perto, ela caiu no lago e precisei me abaixar para alcançá-la. No mesmo instante, aquele diabo me empurrou dentro da água suja fedendo a esgoto, me deixando encharcada.

Me levantei, sentindo a água escorrer por meu corpo e o cabelo pingando em minha roupa, espumando de raiva daquele garoto. Quando ergui a cabeça, trincando os dentes, ele tinha os olhos arregalados e tapava a boca para não rir. Mesmo assim, me estendeu o braço para que eu pudesse voltar à superfície. Não perdi tempo e o puxei para dentro da água.

 O problema foi que ele tentou se equilibrar, pulando, e foi se segurar justamente em mim, fazendo com que nós dois estrássemos na água fétida outra vez. Todo mundo ficou rindo da nossa cara. Inclusive o pai de Carolina, que ainda disse para esperarmos até ficarmos secos antes de entrar no carro.

Ficar perto dele era tão insustentável que paramos de bater boca perto de minha amiga, apenas nos olhando com olhos cheios de sangue e fogo e esperando que saísse de perto para discutirmos. Muitas vezes fingíamos estar tudo bem, embora os dois soubessem que não estava, e ela parecia nem perceber o que acontecia.

Além disso, Henrique era campeão de não dizer nada e só me olhar com cara de poucos amigos. Eu achava essa sua atitude bem pior e às vezes tinha a sensação de que partiria para cima de mim e me quebraria em duas. Isso nunca aconteceu, mas minha imaginação não deixava de ficar criando expectativa para o dia que ele tomaria coragem e eu precisasse me defender.

Eu, por outro lado, tinha partido para a violência diversas vezes, sendo impedida por outras pessoas que estavam por perto ou mesmo por Henrique, que era muito mais forte. Não fosse assim, o teria ferido de alguma forma. Ele conseguia me tirar do sério de uma maneira que ninguém mais era capaz.

Certamente a pior briga que tive com minha amiga em todos os nossos anos de amizade aconteceu por causa de um jogo idiota. Estávamos com treze anos e era uma reunião na casa de Júlio e Juliano, dois irmãos que, apesar dos nomes parecidos, não eram gêmeos.  Um era da nossa turma, o outro era da turma de Henrique. Logo, havia adolescentes de ambas as séries naquele dia.

Em algum momento, mais para o fim da festa, alguém sugeriu que jogássemos Verdade ou Desafio. Sempre havia alguém para dar essa ideia com o único objetivo de beijar alguém na boca, porque parecia ser esse o único desafio que eles conheciam.

O caso é que rapidamente vários jovens foram se aproximando, felizes em jogar algo tão idiota e com propósito tão besta. Bem, o que poderia dizer? Eu era uma dessas pessoas.

Enquanto Carolina se aproximava da rodinha com o único fim de se divertir vendo os outros passarem por maus bocados, sempre levando tudo na brincadeira, o meu era o de conseguir ao menos um selinho do garoto que era meu crush na época. Como não era do tipo que revelava meus sentimentos para qualquer pessoa, achei que fosse uma boa oportunidade de que ele notasse sem que precisasse dizer nada. Essa sempre foi a parte mais difícil de meus relacionamentos: começar um.

Esperava que alguém me desafiasse a beijar o bendito garoto de meus pensamentos, mesmo que para isso precisasse beijar outras bocas no caminho.

Minha amiga já tinha feito isso com três garotos depois de trinta minutos de jogo e, até então, eu havia apenas escolhido verdade, por medo de que me desafiassem a beijar qualquer pessoa aleatória de que não gostasse. Até que foi a vez de Luísa, nossa colega e amiga, e a garrafa parou com o gargalo apontado para mim.

Olhei para Carolina, bem ao lado da garota, e ela me lançou um olhar de encorajamento, como se dissesse: É agora! Confiando nela, finalmente respondi:

— Desafio.

Algumas interjeições de surpresa surgiram no grupo, que era muito maior do que a brincadeira de fato funcionava. Havia mais de vinte garotos e garotas, sem contar os que não estavam jogando. Todos na expectativa, olhando de Luísa para mim e vice-versa.

Notei que Carolina se inclinara, tapando a boca com a mão, (como se a outra não fosse falar o desafio em voz alta!) ajudando nossa colega a escolher a “vítima”. Luísa arqueou a sobrancelha, surpresa, depois me encarou, dando uma risadinha maléfica. Todos saberiam de meu interesse pelo garoto. Eu tentaria matar minha amiga depois. Mas primeiro conseguiria beijá-lo.

O que ouvi em seguida quase me matou:

— Te desafio a beijar o Henrique.

Todos os olhos se voltaram para o garoto de cabelos claros e bagunçados, tão surpreso quanto eu. Mas, diferente de mim, ele estava sorrindo, como se aquilo não passasse de uma piada.

Meu coração começou a correr quase na velocidade da luz. Eu estava com tanta vergonha que seria capaz de me transformar em pó e desaparecer. Como não podia, descruzei as pernas, começando a me levantar. Henrique começou a se levantar no mesmo instante, como se estivesse totalmente disposto a passar por aquilo, sem se importar com o que todos estivessem pensando a nosso respeito. Sem se importar que todos estariam nos olhando. Mas não era para beijá-lo que eu me movia.

— Não quero mais participar disso — respondi, furiosa, enquanto lançava um olhar frio e triste para minha suposta melhor amiga.

Melhor amiga? Uma pessoa que fazia algo assim não poderia ser chamada de melhor amiga. Me apunhalar pelas costas dessa maneira? Ela, que sabia exatamente de quem eu era a fim, me fazer beijar seu próprio primo na frente de todos os nossos amigos. Me fazer beijar o garoto que mais me odiava em toda a face da Terra, o que eu tinha mais nojo, aquele que nem em um milhão de anos beijaria em qualquer hipótese. Aquele que provavelmente sairia pela escola dizendo o quão mal eu era capaz de beijar.

Não, não mesmo! Nunca passaria por aquilo!

Estava tão magoada e enraivecida que passei como um raio no meio do círculo, bem ao lado de onde ela estava. Meu sangue fervia de tanto ódio de Carolina.

Ao sair, ouvi gritinhos e risadas de meus colegas, mas continuei sem me importar.

— Até parece que eu ia querer. — Escutei Henrique falar, antes de desaparecer dentro da casa e me esconder no banheiro até meus pais me buscarem.

Fiquei várias semanas sem falar com minha melhor amiga. Para piorar, eu era obrigada a vê-la sempre com o primo, que me lançava os olhares mais debochados. Henrique nunca foi tão frio e maldoso quanto depois daquele dia.

Ela precisou me pedir desculpas por muito tempo até a raiva passar e voltarmos a ser amigas.

Com Henrique, por outro lado, eu evitava como se fosse a pior das doenças contagiosas.

Tentei não ficar incomodada quando surgiu pela escola a fofoca de que eu gostava de meninas e que era apaixonada justamente por Carolina. Passei semanas ouvindo sem tentar me defender, até que finalmente fizemos as pazes.

Então eu mesma espalhei uma mentira entre as meninas depois de ouvi-las falando o quanto Henrique tinha ficado interessante.

Interessante uma porcaria! Sabia que tinha sido ele a espalhar aquela mentira apenas para não ficar ruim para ele por ter sido rejeitado. Ridículo! Conhecendo-o como o conhecia, por causa da intimidade com sua prima, tudo que falasse seria interpretado como verdade. Então disse a elas que a rejeição tinha se dado porque ele não tinha o costume de escovar os dentes.

Eu meio que tinha uma certa maldade no coração! E era Henrique quem a despertava.

O evitara ao máximo nos anos seguintes. Não revidava seus comentários, me provocando a todo momento, nem inventava mais nenhuma história. Até que ele resolveu fingir que eu não existia. O que foi ótimo, diga-se de passagem!

E foi nesse clima de lembranças ruins que passei todo o resto do domingo, tentando me convencer do porquê Henrique e eu nunca ficaríamos juntos, por que nunca havíamos ficado juntos, e por que não devíamos ter dormido juntos. Porque do jeito que minha imaginação funcionava, não ia querer acabar pensando nele e em toda aquela situação até que sonhasse com ele.

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