Capítulo 2

Uma semana depois, tudo o que eu queria era ficar em casa, sozinha, curtindo minha fossa como uma pessoa normal. Ao menos era o que eu achava que fosse normal. Quer dizer, você passa tanto tempo com uma pessoa, crente de que ela é maravilhosa e quase perfeita em vários aspectos, depois descobre que perdeu todo esse tempo com um imbecil sem coração (ou apenas sem razão), então estava no meu direito.

Entretanto, ao contrário de mim, as pessoas com quem convivia não estavam nem aí para meu término nem meus sentimentos e todos concordavam que o que precisava mesmo era sair e esquecer que um dia havia tido um relacionamento sério com um bosta daqueles (palavras de Carolina). Assim, no sábado seguinte, sendo a comemoração do aniversário de Igor, o namorado engraçadinho de minha melhor amiga, fui obrigada a sair de meu confortável ninho de melodrama e autocomiseração.

Por mais que quisesse continuar em casa de pijama, olhando um filme (de preferência bem dramático e romântico, para lembrar que ainda existiam homens bons por aí) bem esparramada na minha cama queen, chorando copiosamente (não pelo término ou por ter sido traída, nem por não ter percebido antes o crápula que Bernardo era, mas por ter desperdiçado mais de dois anos com um cretino como ele enquanto já poderia estar até casando com o amor da minha vida, se é que isso existia mesmo), já havia prometido à Carolina que iria mesmo que chovesse canivetes ou acontecesse um apocalipse zumbi.

Ela achava que sair de casa e me divertir com os amigos me faria muito mais bem do que ficar sozinha remoendo o passado que não teria mais volta. E não estava errada, no entanto a minha preguiça sempre foi mais forte que a vontade de festejar. Além do que, eram seus amigos, não meus. Amigos do Igor, melhor dizendo, gente que eu via uma vez ou outra, mas com quem não tinha intimidade nenhuma.

Mesmo assim, com muita determinação de minha parte (e uma enorme carga de bondade), coloquei um jeans novo, uma blusinha branca de alcinha e uma jaqueta de couro por cima, já que, sendo abril, já estava ficando frio à noite, ainda que de dia fosse bastante quente, e enchi o rosto de maquiagem para disfarçar ao máximo meus olhos inchados. Um batom vermelho escuro fechou com tudo para uma noite de matar. Eu só não sabia o que ou quem morreria.

Se eu não ficasse a vontade nas conversas, ao menos ia chamar atenção o suficiente para elevar minha autoestima um pouco abalada.

Resolvi ir de Uber em vez de pegar o carro. Com o nível dos meus sentimentos naquele dia, seria a pior companhia se não enfiasse a maior quantidade de álcool possível em meu corpo. E bêbada não dirigiria meu carro novo e lindo, comprado apenas três meses antes. Pago com o suor do meu próprio trabalho, dessa vez sem a ajuda de meus pais.

Tudo bem que eles já haviam ajudado o bastante me presenteando com um apartamento logo que me formei e passei no exame da Ordem. Tinha consciência de que sozinha ainda teria levado muito tempo para fazer uma compra do tamanho de um carro 0km se tivesse também que arcar com os custos de um aluguel. No entanto, a essa altura já havia clientes suficientes para sustentar esse luxo. Até porque ficar viajando por todas as cidades da região era muito estressante tendo que depender de carros de aplicativo ou ônibus.

Só esperava que o fato de não ter mais Bernardo ao meu lado não me atrapalhasse na busca por novos clientes agora que ele não me acompanharia mais à delegacia de madrugada para salvar os recém detidos. Era mesmo a hora certa para seguir com meus próprios pés.

Cheguei ao estabelecimento escolhido com apenas meia hora de atraso, o que, nos parâmetros brasileiros, significava que estava na hora certa. A mesa em que meus amigos estavam sentados já estava lotada. Não à toa, Igor era do tipo que tinha um zilhão de amigos e conhecidos: o grupo de professores da escola em que trabalhava, o grupo dos colegas de faculdade, o de colegas de escola, o do futebol. Se duvidasse, até um grupo da academia!

Às vezes tinha a impressão de que conhecia a cidade toda. Onde quer que os acompanhasse, ele sempre parava para cumprimentar um conhecido. O que era bastante engraçado, considerando que havia levado cinco anos para reencontrar a namorada depois de tê-la beijado em uma rua qualquer após salvá-la de um assalto. Mas, quando é pra acontecer, tem dia, lugar e hora.

Me aproximei do local, sorrindo, ainda que fosse um sorriso pra lá de falso (mas ao menos estava tentando!), e abracei Igor, com aquela intimidade forçada que somos obrigados a ter com o namorado da melhor amiga. Depois beijei Cá no rosto e dei um oi geral para o resto da mesa, a maioria do sexo masculino, alguns até conhecidos de outros encontros. Algumas namoradas me lançaram olhares de nojo, como se tivesse culpa por ser alta, loira e magra, como se minha genética fosse uma afronta e o fato de estar sozinha uma enorme ofensa às comprometidas. De certo que eu saltaria e agarraria seus namorados! Depois eu que era a ciumenta!

Puxei uma cadeira vaga de outra mesa e me juntei a eles, colocando-a ao lado de minha melhor amiga. Quase que involuntariamente minha mão se levantou para chamar o garçom. Pedi que trouxesse logo uma cerveja bem gelada para começar a noite, porque não era de perder tempo.

— Você é rápida, hein?! — riu Carolina.

Balancei a cabeça em concordância. O barulho alto de risadas e conversas atrapalhava um pouco, mas nada que não fosse resolvido aproximando bem os ouvidos.

— Aproveita que o Igor convidou vários amigos solteiros.

— Primeiro: — falei, levantando o indicador para explicar melhor — você acha que já vou ir pra cima de um cara depois de uma semana sozinha?

Ela deu de ombros, bebendo sua cerveja.

— Segundo: — continuei, dessa vez levantando também o dedo do meio. — Você acha que um homem com mais de 25, interessante, que trabalhe e tenha renda boa vai estar solteiro, amiga? Me poupe! Isso aqui é tudo besta ou pé rapado.

Carolina riu, mas eu estava sendo sincera. Não havia a mínima possibilidade de sair dali acompanhada naquele dia.

— Não tô a fim de me envolver romanticamente com ninguém tão cedo — completei. — Vou curtir minha solteirice.

Ela revirou os olhos. Provavelmente porque sabia que eu não era do tipo que gostava de ficar solteira. Eu era do tipo que ficava esperando as coisas acontecerem sem me esforçar muito.

— Nada melhor para um coração partido do que um novo amor.

Minha cerveja havia chegado, então resolvi tomar um belo gole, em parte porque estava mesmo com sede; em parte porque não queria ter que responder rispidamente. Aquilo provavelmente tinha sido algo que eu dissera a ela anos antes. Porém, mais do que ninguém, ela deveria lembrar o quão difícil era um rompimento. Só que Carolina era a pior conselheira que uma amiga poderia ter. Era muito engraçada e divertida, porém nunca sabia o que dizer quando precisávamos. Seus conselhos não passavam de frases decoradas de memes da internet!

Era óbvio que por trás da raiva e da mágoa que sentia, ainda amava aquele maldito. Não era em menos de duas semanas que apagaria aquele sentimento. Houve momentos bons também. Nos dávamos muito bem até descobrir suas traições.

Minutos depois, no meio de uma discussão sobre quando iríamos ao cinema ver o nome filme de Live Action da Disney, minha amiga parou no meio de uma frase e, olhando para alguém bem atrás de mim, gritou:

— Henrique, você veio!

Quase pulei da cadeira tamanho o susto.

Sem dúvidas era seu primo, quem eu não via há meses, pois, graças aos céus, não precisava mais conviver com ele desde que acabara o Ensino Médio. Agora nos víamos no máximo umas duas vezes ao ano e não tínhamos a menor intimidade. O que significava que eu não precisava mais bater boca com ele da mesma forma que fazia na época de escola. Isso porque, confesso, eu não era uma pessoa possessiva de pouco tempo. Já tinha essa mania de não dividir desde criança, sobretudo com Carolina.

O caso é que odiei quando descobri que Henrique estaria na mesma escola que nós. E odiei ter que dividi-la com seu primo em todas as ocasiões possíveis, mesmo que ele fosse um ano mais velho e que ela estivesse na mesma sala que eu. O que posso dizer, taurinos e seus ciúmes. Pior ainda o fato de que ele também era do mesmo signo, porque ele respondia na mesma medida, discutindo de volta sempre que a prima não estava, para que eu fosse a única a parecer louca.

Ele era só o primo querido que protegia a prima na escola, já que ela não tinha um irmão. O caramba que era!

Carolina não fazia ideia da quantidade de garotos que ele espantara. Ao menos até que ela começou a namorar sério e ele não pode mais fazer nada para impedir. E quando ela voltou a ficar solteira, Henrique já tinha saído do colégio e não estava mais lá para protegê-la ou para me atormentar. E, melhor ainda, nem tinha entrado na mesma universidade que nós duas!

Eu só esperava que ver sua cara não trouxesse aquela indisposição frequente de quando éramos mais novos, porque eu já estava mal o suficiente naquele dia.

Henrique se aproximou da prima e a abraçou, depois seguiu para cumprimentar Igor pelo aniversário. Claro que já era amigo íntimo do namorado da prima. O que ele não faria para ter certeza de que ela estava segura?

 Ao menos não estava mais com a chata da Fernanda, sua ex-namorada. Aquela garota era a grosseria em pessoa, não perdia a oportunidade de falar mal de alguém. Sinceramente, foi até bem feito os dois terem acabado juntos, porque ela fez gato e sapato do coitado e eu meio que tive minha vingança pessoal por todos os anos em que ele me atormentara na adolescência.

Henrique não era mais que um cachorrinho muito bem treinado nos últimos anos. Só saía se ela deixasse, só vestia o que ela sugerisse, só fazia o que ela mandasse. Ao menos era o que Carolina fazia parecer, porque, venhamos e convenhamos: se ele não gostasse, já teria se mandado muito antes.

Depois de cinco anos, no entanto, ela tinha dado um pé na bunda do pamonha e ido morar em outro estado após ter sido chamado em um concurso.

A verdade é que ele se livrou de um encosto! Por mais que merecesse.

— Oi — ele disse, finalmente se dirigindo a mim.

Ou foi o que imaginei, porque nem sequer me virei para responder. Tão educada que eu era.

 Respondi com um sorriso idiota e arrogante sem nem mesmo encará-lo. Ele, por sua vez, entendeu minha indireta e só observei suas pernas se movendo até o outro canto da longa mesa, junto de outras pessoas que certamente o conheciam.

— Caramba, Andressa! — Carolina me reprimiu, séria, o que era algo difícil de acontecer. — Vocês não brigam há anos. Precisava ser tão grossa?

— Acho que não tô nos meus dias mais felizes, então faço o que me der na telha.

Provavelmente estava precisando de mais álcool para me sentir alguém mais agradável.

Mais tarde naquela noite, depois do que provavelmente teria sido minha quinta cerveja, estava mais solta e falante do que nunca. Muita gente já tinha ido embora, mas é claro que eu ficaria até o final. Por Carolina, obviamente. Não existia uma amiga melhor que eu!

 Igor estava mais engraçado do que nunca, contando uma história que tinha se passado com ele sobre uma confusão que fizera no trabalho. Carolina ficava interrompendo e dando mais detalhes da história, provavelmente porque a conhecia melhor do que ninguém e a havia escutado mais vezes do que gostaria.

Achava aquela relação deles tão interessante. Quer dizer, os dois eram verdadeiras piadas ambulantes. Viviam brincando, falando besteira, vivendo loucas aventuras. Parecia que tinham sido feitos um para o outro. Às vezes me sentia mal por ter tentado evitar que ficassem juntos. Parecia errado, essa era a verdade.

Diferente de mim e Bernardo. Afinal, apenas eu achava que ele era perfeito e que tudo estava certo. Tão cega de amores que confiei plenamente nele, o deixando sair sempre que quisesse, sem nunca desconfiar no que estaria metido, ou o que estaria fazendo. Era só trabalho, eu me fazia acreditar, como uma demente.

Estava certa de que nunca mais confiaria cegamente em um homem. Nunca mais me entregaria assim tão fácil. Sempre estaria com um pé atrás, pronta para pular do barco quando precisasse, já vestida com um colete salva-vidas para não me afogar.

Tão concentrada estava, rindo até quase chorar, que nem vi que o casal ao meu lado tinha partido e que quem estava no lugar era Henrique. Até que tentei pegar um guardanapo e derrubei o copo de cerveja pela metade na mesa de madeira escura.

Ele levantou, no susto, antes que a bebida chegasse em suas calças, deixando que atingisse apenas seus tênis vermelhos e a barra do jeans. Eu apenas o observei, levando algum tempo para entender o que havia acontecido, já que meu cérebro estava em câmera lenta.

Minha expressão de confusão misturada com a risada de segundos antes devia estar muito hilária, porque ele logo desatou a rir, como se a situação fosse a mais engraçada do mundo.

— Quase que saio daqui como se estivesse mijado!

 Fiz uma careta para piada, mas também comecei a rir. O álcool tinha me deixado mais leve a ponto de achar graça até do comportamento de uma pessoa de quem não gostava.

Com o guardanapo que tinha alcançado, tentei limpar um pouco da bebida desperdiçada, em vão. Meu cérebro estava um pouco anuviado e eu não consegui perceber que era pouco papel para tanto líquido.

Henrique voltou a se sentar, puxando a cadeira para frente e para muito mais perto do que normalmente eu aceitaria. Depois levantou o braço, chamando o garçom.

— Agora precisamos pedir outra cerveja para você — ele disse, como se fosse sua obrigação por ter derrubado o copo, sendo que eu era quem havia sido a culpada.

Não era seu costume ser assim tão educado e agradável comigo. Mas o que poderia dizer? Na hora nem sequer percebi que algo estranho estava acontecendo.

— E você, não vai beber nada? — perguntei, incitando-o a me acompanhar.

Não fazia ideia por que estava puxando papo com Henrique.

Ele pensou, por um instante, olhando para seu copo vazio. Então, assim que o garçom se aproximou, pediu mais duas cervejas. Era de se esperar que ele ficasse quieto, ouvindo o resto da história de Igor, como sempre havia feito, afinal, era do tipo que falava pouco (exceto quando queria me atormentar ou se defender quando éramos mais novos). Naquela noite Henrique estava a fim de conversar.

Tinha certeza que a culpa toda era do álcool.

— Onde tá seu namorado? — ele quis saber.

E mulheres não podem sair desacompanhadas por aí?, pensei. Mas, ao invés de responder com uma grosseria ou coisa do tipo, um sorriso teimava em ficar em minha boca, me fazendo falar coisas de que me arrependeria:

— Você não sabe?

 A essa altura já nem me importava em ficar anunciando a todos o que havia acontecido. Mesmo que fosse para Henrique, o cara com quem eu mais discuti na vida.

— Não. — Ele riu, achando engraçado meu modo de falar. — Ele te largou?

Gargalhei alto, jogando a cabeça para trás, mas ninguém pareceu notar, entretidos com outro assunto. Em qualquer outra ocasião, eu teria ofendido ele da pior forma possível por causa dessa sua mania de sempre dizer a coisa errada.

— Claro que não! — falei, me virando melhor para encará-lo, passando as pernas para o lado, já que naquela posição ficaria com um torcicolo. — Eu que larguei, por assim dizer.

Henrique pareceu não acreditar no que eu contava, enrugando a testa e deixando a cabeça de lado.

— Mesmo?!

— Ele tava me traindo, acredita? — falei, encostando a cabeça no tampo da mesa, derrotada ao lembrar da ferida ainda aberta.

Uma pessoa normal diria que aquilo não era nada e que logo passaria e eu encontraria outro amor. Uma pessoa normal. O primo de Carolina, no entanto, não poderia ser considerado normal em nenhuma situação.

— Sério? Por que ele faria isso?

— Vai saber — respondi, voltando a encará-lo.

Os olhos de Henrique eram mesmo iguais aos da prima, verdes nas bordas e castanhos no centro. Ainda que no momento estivessem um pouco vermelhos ao redor.

— Também levei um pé na bunda — anunciou, virando o rosto, após tomar uma boa parte da cerveja que haviam nos servido. — Depois de cinco longos anos, a maldita me chutou bem bonito.

Carolina havia me contado tudo em fevereiro, há mais ou menos dois meses, logo que acontecera. Fernanda apenas o avisara que estaria se mudando nas próximas semanas para outro estado e que, por esse motivo, era melhor que eles não ficassem mais juntos, já que relacionamentos à distância eram muito difíceis.

Eu era bastante racional, mas não chegaria nesse nível de racionalidade. Quer dizer, cinco anos era bastante tempo, não? Já deveriam estar morando juntos, quem sabe formando uma família. Afinal, eram graduados, tinham emprego, estavam quase chegando aos trinta. Francamente, não conseguia entender.

— Fiquei sabendo. Somos dois fracassados, não somos?

— É, acho que somos — concordou, baixinho.

 Bebemos mais um pouco em silêncio, provavelmente remoendo nossos romances findados, até que ele abriu a boca novamente, com os olhos um pouco desfocados.

— Acredita que estava procurando apartamento para irmos morar juntos? Achei que ia casar com ela.

 Arregalei os olhos, espantada com a revelação. Provavelmente era o álcool que fazia com que falasse tanto assim. Isso era bastante incomum. Quando éramos crianças, o máximo que conversávamos era em alguma brincadeira, ou quando discutíamos por causa de Carolina. Ela até evitava nos convidar para algum programa ao mesmo tempo, conhecendo a rivalidade.

Não tínhamos qualquer tipo de intimidade a ponto de falarmos sobre assuntos pessoais. Sobretudo assim tão pessoal!

— Caramba, você precisa de mais álcool que eu! — levantei o braço, chamando o garçom novamente, que logo se aproximou. — Dois shots de tequila, amigo.

Henrique me encarou, petrificado.

— Você precisa disso mais do que eu.

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