Tudo a seu Tempo
Tudo a seu Tempo
Por: Lari Pontes
Capítulo 1

Pode-se dizer que costumo exagerar um pouco nos meus barracos. Talvez porque seja intensa demais. Também pode-se dizer que na grande maioria das vezes tenho razão para o tamanho de minha irritação com a humanidade. Afinal, parece que sempre há um idiota para furar a fila, ou esquecer do troco, ou tentar passar a perna em um desavisado. Parece até que as pessoas não percebem que não levo desaforo para casa.

Veja bem, não tenho sangue de barata; não posso deixar que alguém tente me enganar ou as pessoas com quem me importo. Não mesmo! Sempre faço tudo o que posso para ajudar quem precisa, em especial aqueles que merecem toda a minha atenção, sabe, aqueles que considero mais fracos.

Porém, por mais esperta e ligada que possa parecer pela descrição recém-feita, imagino que seria difícil acreditar que alguma pessoa nesse mundo conseguiria enganar essa pessoinha aqui. Mas sim, isso realmente aconteceu!

Posso mesmo ser uma pessoa de extremos. Transpareço toda minha determinação e inteligência, minha força e atitude de rainha, mas a verdade é que no fundo sou uma trouxa. É isso mesmo, trouxa. Burra. Ignorante.

Ignorante no sentido mais literal da palavra, já que ignorei por meses certas atitudes de uma pessoa em quem confiava plenamente: meu próprio namorado. A essa altura, poderia dizer meu ex-namorado, pois ele conseguiu quebrar todos as minhas barreiras e, com isso, toda minha confiança.

Bernardo foi o namorado mais romântico e atencioso que já tivera até então. Um cara que vivia me dando presentes sem motivo nenhum, que me levava para viagens a dois e a restaurantes maravilhosos, que me cobria de todo o carinho que alguém pode suportar quando estávamos sozinhos.

Qualquer um poderia ter se enganado como me enganei. Quem poderia imaginar uma coisa dessas? Nunca tinha sido traída, ao menos que soubesse, então não havia como perceber. Talvez por isso o choque tenha sido tão grande.

Tudo começou quando notei que ele estava recebendo uma quantidade incomum de mensagens no W******p. Quer dizer, ele sempre recebia muitas mensagens de clientes. Somos os dois advogados e a maior parte de nossos clientes estava preso, então não era surpresa que nossa comunicação fosse via internet. O problema é que, diferente do que era esperado, já que trabalhávamos juntos, Bernardo passou a se esgueirar uma vez ou outra para responder essas mensagens. Grande idiota! Se ele tivesse respondido perto de mim, como provavelmente fizera antes, eu continuaria sem perceber nada.

Acredito que depois de tantas vezes sem ser pego, achou que não precisava mais se esforçar muito.

Exceto que, como uma pessoa ciumenta e possessiva, comecei a desconfiar. É claro que não deixaria algo do tipo passar por mim despercebido.

Bernardo, todavia, não era totalmente um imbecil. Muito pelo contrário, pois foi justamente sua sagacidade e inteligência que me conquistaram. Talvez já imaginasse que eu poderia esbarrar em alguma coisa, e, por esse motivo, levava o celular onde quer que fosse, sem desgrudar nem um segundinho. Como o bom advogado que era, precisava ser esperto, é claro.

Só que não era páreo para a minha esperteza. Esperei que caísse no sono e começasse a fazer os barulhos estranhos que fazia quando estava dormindo pesado e, silenciosamente, peguei seu smartphone.

Eu não sabia sua senha, é claro. Nunca achei necessário saber. Mas não subestime a capacidade de engenho de uma mulher traída. Eu sabia que nem se mexeria se encostasse nele, então consegui colocar seu indicador no reconhecedor de digital do Iphone e, vualá! Como num passe de mágica seu mundo todo se abriu para mim.

Ou assim eu pensava!

Não havia uma mensagem estranha, nem na caixa de entrada, nem no W******p, nem no e-mail, nem em parte alguma. E isso que fiquei mais de meia hora procurando, já que não conseguia mais ter sono depois de começar com minhas paranoias.

Nessa procura, porém, acabei esbarrando, sem que estivesse tentando encontrá-lo, em um aplicativo em modo invisível, um aplicativo que já fora muito conhecido por mim e que estava desativado há mais de dois anos e meio. Que era o tempo que eu estivera namorando.

O Tinder!

Ele ainda tinha uma conta ativa no Tinder.

Bernardo usava o aplicativo antes de começarmos a namorar, é verdade. Mas isso quando éramos apenas amigos e ele parecia não ter nenhuma intenção de ficar comigo, ainda que já fosse bastante óbvio meu interesse por ele.

Escondida em meu escritório do outro lado do corredor, com a porta fechada para que ele não escutasse, chorei como um bebezinho, morrendo de raiva, não só dele quanto de mim. Eu não conseguiria dormir ao seu lado naquela noite, então, depois de chorar mais um pouco na sala, silenciosamente, dormi no sofá e fingi que nem o vi sair de manhã para ir à academia.

Como é que nunca percebi isso? Facilmente alguém se perguntaria. No entanto, meu namorado (ou ex-namorado) era o senhor gentilezas, o senhor carinhoso, o senhor romântico. Do tipo que fazia surpresas, que me enchia de elogios. Eu era sua lindinha! E eu tinha plena certeza que ele me amava mais do que tudo e que a última coisa que faria era algo que me fizesse mal.

Assim eu pensava. Assim me iludia. Até que ele arrancou meu coração de meu peito e ainda pulou em cima sem nenhuma consideração. Mas eu não guardaria aquele rancor em meu peito, como algumas pessoas preferem fazer. Não. Eu podia ser taurina, uma pessoa racional, calma e serena na maior parte do tempo, mas talvez tivesse um ascendente no diabo ou coisa do tipo, porque não conseguiria deixar aquilo passar em branco.

E foi aí que tive a ideia mais maluca que alguém poderia ter.

— Você é louca, Dêssa! — falou Carolina, minha melhor amiga de infância, depois que contei meu plano. — Para que fazer tudo isso? Só o fato de ter o aplicativo já não é suficiente? Manda ele pastar e segue o baile.

Revirei os olhos, irritada por não ganhar parabéns ao bolar aquele plano maligno e astucioso. Ela não entendia. Apenas terminar com Bernardo não era suficiente, precisava de uma vingança bem elaborada. Carolina não era ciumenta, muito menos vingativa, ela não conseguia acompanhar meu raciocínio lógico. Eu sabia disso porque a conhecia desde os quatro anos de idade. Diferente dela, teria me vingado daquele namorado imbecil que ela tivera no Ensino Médio e que desaparecera sem terminar o relacionamento antes. Até sugeri m****r uma bomba pelo correio, mas ela não achou engraçado.

Carolina nem sentia ciúmes do atual namorado, que além de bonito, trabalhava em uma área onde vivia cercado de mulheres, a mesma que ela, a educação. E olha que ele tinha tentado ficar com minha amiga quando ainda namorava outra. E é fato: quem faz uma vez, faz de novo!

Não que não goste do cara, eu gosto. Ele é muito divertido, isso é verdade, mas é sempre bom ter um pé atrás com pessoas desse tipo. Se ela não tinha, ao menos eu teria. Cuidaria dela como cuidava desde que nos conhecemos. Ninguém tentaria enganar minha melhor amiga!

— Cá, preciso de uma confirmação — respondi — Não havia nenhuma mensagem.

A verdade é que, embora parecesse determinada a descobrir a verdade, ainda nutria uma esperança de que não passasse de uma alucinação e que Bernardo não havia feito nada. Talvez estivesse só flertando pela emoção. Talvez nunca tivesse saído com alguém.

— Mas fazer uma conta falsa para enganar o cara já é um pouco demais —ela disse, passando os dedos pelos fios do cabelo castanho-claro, que estavam compridos naquela época, chegando a metade das costas.

— Shhhh — sussurrei.

Não queria que seu namorido Igor soubesse do meu plano e fosse contar a Bernardo, ainda que eles nem fossem tão amigos assim. Sabe como são os homens e a sororidade masculina. Estávamos separados dele por apenas uma porta. A qualquer momento ele poderia entrar querendo ir ao único banheiro do apartamento, que ficava justamente no quarto onde conversávamos.

— Foi a única forma que encontrei de confrontar o infeliz sem que ele tente me engambelar, me fazendo acreditar que não aconteceu nada — expliquei, me aproximando para falar mais baixo. — Se der match, começamos a conversar e eu marco um encontro. Aí é só chegar lá e pá.

Com a mão direita em forma de arma, simulei um tiro na têmpora.

— Você vai matar o Bernardo? — Carolina riu, sem levar a sério, como sempre.

— Bem que eu queria.

Provavelmente ninguém me culparia por esse crime, culparia?

Exatamente como imaginado, meu ex-namorado caiu como um patinho, dando match no perfil da Sabrina, 23, advogada, adora cães e viagens. Usei uma foto de uma modelo morena, cabelos longos e lisos, mas sem ser estonteante, para não dar muito na cara que era falso. Depois de dois dias e muitos interesses em Sabrina, finalmente o cretino apareceu na minha lista (ou dela, no caso). E para piorar, quando estava na minha casa e eu no banho, o que me fez ter que controlar absurdamente minha vontade de voar em seu pescoço ali mesmo e estragar a surpresa.

Começamos a conversar logo. Ele disse que também era advogado e gostava de cachorros, ela (ou melhor dizendo, eu) disse que ele era um advogato e ele caiu rapidinho. Achei que ser direta facilitaria o negócio e eu não precisaria fingir que estava tudo bem por muito mais tempo. Em um dia já havíamos combinado o encontro.

Como o cínico que era, disse que estava em um relacionamento aberto e que a namorada não se importava que saísse com outras mulheres. Aff!!! Qualquer outra teria se mandado, mas a Sabrina não se importava com isso, já que não estava interessada em um relacionamento sério porque logo iria para Londres.

Bernardo era apaixonado por Londres e já havia viajado duas vezes para a Inglaterra, então eu sabia que já estaria louco pela Sabrina. O que era bastante ridículo! Eu estava muito satisfeita por conquistá-lo tão rápido.

O bobo nem conseguiu perceber que eu estava diferente, bem mais distante, sem ser carinhosa. Minha vontade era enchê-lo de tapas, porém precisava me segurar. E eu escondia muito bem minhas intenções. Além disso, como estava “naqueles dias”, pude rejeitar sexo sem nenhum problema e ainda dizer que a frieza vinha por estar com cólicas. Então nada parecia fora do lugar.

O enxerguei de longe, sentado em uma das mesas de uma cafeteria no centro do corredor do shopping, o mesmo local que havíamos combinado. Que eles haviam combinado!

Bernardo vestia sua camisa favorita, uma acinzentada e justa com as mangas dobradas, o que mostrava o quão forte eram seus braços. Estava sem nenhum rastro de barba e os cabelos lisos e escuros penteados para o lado com o que provavelmente era gel. Ele era absurdamente bonito, mas eu não ia me dignar a prestar atenção nisso. Não naquele dia.

 Quando entrei na cafeteria, Bernardo ficou branco. Por um segundo achei que fosse desmaiar. No entanto, ele levantou, com um sorriso muito falso naquela cara de pau e veio me dar um beijo, como se fosse pura coincidência eu estar lá na mesma hora que ele em uma sexta-feira à tarde.

Virei o rosto a tempo e ele conseguiu apenas me dar um beijo de leve na face. Antes, para meu desprazer, senti seu perfume de pós-barba, o mesmo que sempre entrava em meus poros e me atingia de uma maneira indescritível. Naquele momento a raiva encobria qualquer desejo que tivesse por ele.

— O que tá fazendo aqui, amor? — perguntou, a voz meio esganiçada, parecendo nervoso com a situação.

Ele tinha a coragem de me chamar de amor.

— Amor? — falei, em um tom muito casual, como se fosse a coisa mais normal do mundo. — Eu sou a Sabrina, 23, advogada, adoro cães e viagens.

Bernardo deu um passo para trás, cambaleante. Eu queria gritar para todos ouvirem o cafajeste que ele era, mas me contive, sem levantar o tom de voz, sem me mexer, sem tentar estrangulá-lo. Não faria um escândalo dentro de um shopping, onde poderia ser vista por um monte de gente conhecida. Ou por potenciais clientes.

Confesso que já havia feito isso algumas vezes, brigando com ex-namorados, com funcionários de lojas e até mesmo com Carolina (porque ela me tirava do sério o tempo inteiro). Naquele dia, no entanto, seria uma dama, recatada e do lar. Até escolhi um vestido azul marinho comportado até os joelhos e coloquei uma sapatilha preta com pouco salto, já que meus 1,75m me faziam parecer uma Drag Queen se passasse de cinco centímetros. Meus cabelos estavam impecavelmente lisos e presos apenas com um grampinho na lateral. Tinha feito as unhas, num tom rosinha, e de maquiagem havia apenas passado rímel e um batom cor de boca.

Ele sabia que era pura atuação. Que por fora eu era uma princesa, calma e educada, e que por dentro havia o Satanás dominando cada movimento. Ele me conhecia muito bem para saber que estava pegando fogo.

Bernardo engoliu em seco, limpou o suor do pescoço com uma mão e se apoiou na grade da cafeteria com a outra. A fraqueza durou menos de cinco segundos e logo ele estava refeito e ereto outra vez.

— Dêssa, não é o que você tá pensando! — tentou se defender.

— Claro que não é — sorri sarcasticamente. — Você estava apenas fazendo uma pesquisa de campo, não é mesmo?

Ele começou a gaguejar, sem saber como responder, o que era um ótimo indício de que eu estava ganhando. Porque Bernardo era um ótimo orador, muito eloquente, expressivo, ele não se deixava abater por pouca coisa. Nunca demonstraria em público que estava perdendo.

Bernardo começou a tossir, tendo se engasgado com a própria saliva ao tentar se defender com mais uma frase de efeito. Segurei com muita força a gargalhada que queria irromper de meus pulmões. Essa não seria uma atitude de uma dama.

— Você não se preocupe em pegar suas coisas no meu apartamento, porque elas já foram para o fogo — menti.

Tinha colocado tudo em uma caixa e deixado ao lado da caçamba de lixo, para que algum morador de rua se fartasse com todos os objetos que havia deixado em minha casa, além de todos os presentes cafonas que ele tinha me dado. Inclusive os livros.

Carolina me mataria se soubesse disso, já que ela amava mais os livros do que qualquer outra coisa. Mas não eu. Eu preferia assistir séries e filmes do que ficar horas grudada em papel e letras minúsculas. Já bastava tudo que precisava ler nos processos.

Apenas algumas coisas que não me livrei: as roupas, porque, né, vamos combinar que dar minhas belas peças de marca para caridade já seria um pouco demais!

— Dêssa, não faz assim. Vamos conversar. — pediu ele, se aproximando e quase conseguindo encostar em meu braço.

Eu não poderia deixá-lo tocar em mim. Sabia que, se isso acontecesse, logo estaria com ele outra vez, mesmo que a mágoa ficasse gravada em minha mente por toda a eternidade.

— Não. Acabou — decretei, me afastando.

Então me virei, bela e satisfeita por fora, mas completamente quebrada por dentro, com uma imensa vontade de chorar que só pude satisfazer quando cheguei sã e salva em casa.

Lari Pontes

O que você faria em uma situação dessas?

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