Olá, Gavetinha

Ao cair da tarde, o celular não parece ser tão estusiasmante como dizem. Não há nada de interessante. Enquanto meus pais estão ocupados com seus afazeres, encontro-me em meu quarto, pensando em mil coisas que poderia estar fazendo se ainda estivesse em Dona Colina. Brincar com GineGeni seria uma delas.

Será que ela está sentindo minha falta? –Perguntei para mim mesma.

Ouço o barulho da cidade. Buzinas, pessoas falando alto e rindo.

Não parece um lugar tão perigoso. Como um lugar que aparenta ser tão calmo pode ter um grande número de assaltos? Logo, uma luz se acende em cima de minha cabeça, e uma ideia surge: Por que não dar uma volta de bicicleta para conhecer o novo espaço?

Tudo bem que não sei nem andar direito, mas, como dizem, é com a prática que se aprende.

Levanto de minha cama e pego meu celular. Vou até o lado de fora da casa, sem que ninguém perceba.

Já na rua, subo nela e respiro fundo, colocando meu telefone na cestinha.

Não deve ser tão difícil!

Ao começar a pedalar, começo a tremer.

Por que andar nessa coisa tem que ser tão difícil?!

Ao conseguir trocar de rua, passo por um grupo de pessoas, e infelizmente viro o guidom sem querer, caindo.

Uou…!!! –Exclamei, dando de cara com o chão.

Ouço risos. Um senhor de cabelos grisalhos e pele negra, que está com um cigarro entre seus dedos, é o único que se levanta para me ajudar, oferecendo ajuda. 

Você se machucou? –Ele perguntou, mostrando que tem uma voz rouca.

N-não… Está tudo bem. –Sorrio, completamente sem graça e envergonhada, sentindo meu rosto queimar.

Vejo que meus joelhos estão mais ralados ainda. Talvez, não tenha sido uma boa ideia sair sozinha para conhecer o novo "espaço".

Olho para as outras pessoas em volta e dou um sorriso, como se dissesse: "Tá tudo bem, não doeu nada!", mas a verdade é que essa imundice está doendo sim. Monto em minha bicicleta novamente, e lá vamos nós outra vez.

– – –

Depois de algumas voltas, paro perto de uma árvore para descansarr.

Ficar esperando carros passarem, olhar para os dois lados antes de atravessar e ainda correr o risco de morrer atropelada é difícil. Nunca pensei que teria que conviver com isso.

Tomando um pouco de ar e tentando controlar minha respiração, vejo um rapaz, que parece ser bem jovem, me observar ao longe.

Ele tem o cabelo platinado e usa correntes que parecem ser de ouro no pescoço, junto com um óculos colorido. Encaro-o de volta.

Ele coloca uma mão no bolso da calça e a outra por baixo de sua camiseta, caminhando em minha direção, fico parada.

Posso perceber que ele possui 3 riscos em cada sobrancelha. Será que esse é o padrão de beleza da cidade? Será que precisarei fazer esses risquinhos medonhos em mim?

De qual que é? –Questionou, baixinho.

Levanto minha sobrancelha, mostrando uma expressão confusa.

— Oi? Você tá falando comigo? –Questionei, sem entender o que o garoto disse.

Issoéumassalto... –Murmurou rapidamente, sem que eu possa entender.

Um ponto de interrogação aparece em minha mente.

— Desculpa, como é? Não entendi o que você disse...

— Eu disse que issoéumassalto! –Acelerou sua fala no meio da frase.

— Você tem alguma deficiência nas cordas vocais? –Perguntei.

Caralho, porra, tá surda?! Tá com o ouvido onde?! Eu disse que isso é um ASSALTO! A-Ç-A-L-T-O!

— Ahh, sim, entendi, mas... Assalto se escreve com dois ésses.

— Tú tá me tirando, cocota?! Passa tudo que você tiver, anda logo, me passa esse celular!

Ele leva sua mão a minha cestinha, mas sou mais rápida e pego o celular, o escondendo atrás de mim.

— Não vai pegar nada, safado! Tire suas mãos do meu celular!! –Exclamei alto.

— Tá querendo levar um tiro nessa sua testa de rodovia?!

Levo minha mão até minha testa, completamente ofendida. Quem ele pensa que é para falar alguma coisa?! 

Ei, minha testa não é tão grande assim! E outra, você sequer tem uma arma, como vai me dar um tiro?!

— Claro que tenho, olhe! –Ele simula uma arma com seus dedos, por baixo da camisa.

Ah, fala sério.

— Olha, se quer me assaltar, precisa ser mais esperto. São os seus dedos.

— Não são não, tia. Tá louca? Anda, me dá o celular!!

Ele me cutuca com sua "arma"

— Vá ver se estou lá na esquina, seu ladrãozinho sem vergonha! –Mostro meu punho fechado a ele.

Coloco meu pé no pedal para ir embora, mas ele segura o banco da bicicleta.

— Onde que você pensa que vai? Sabe quem sou eu? –Perguntou, tentando me amedrontar.

— Um ladrãozinho corriqueiro?

Joãozinho Orelha Fonseca PJL , mais conhecido como Gavetinha.

U-A-U. Quanta criatividade.

—  E eu com isso, meu filho?

— Tá desafiando o Gavetinha? Tá doidona? Quer que eu mande a gangue ir atrás de você?!

Oh não, o que será de mim?

— Olha, vamos parar a palhaçada, Gavetinha. Sai da frente, que eu quero passar. Meus pais nem sabem que saí de casa, e minha mãe vai me bater. Xô, xispa, anda logo.

Meu celular vibra. Pego-o e vejo que é uma chamada da minha mãe. Como ela já sabe meu número e como eu já tenho o contato dela salvo? Desligo o telefone, já imaginando a bronca que irei levar. Um chiado de riso escapa pelo garoto.

Nó, tia, que celular cagado, hein? Quero mais não, essa porcaria. Dá nem pra comprar três pedras.

Olho para meu celular.

— Tá brincando comigo? É da última geração!

Ele gargalha.

— Qual é a graça?

— Isso daí não é nem da segunda geração, falou? Ninguém mais usa esses tijolos aí não, cocota. A moda agora é celular cumprido e fino. Esse tijolo não presta pra nada.

O olho, incrédula.

__ Tamo junto, tia. Tenho que continuar o trampo, mais. Compra outro celular da próxima vez, quero roubar coisa boa! 

Ele sai andando, retirando sua mão que estáva por baixo da camiseta, provando que não tem nenhuma arma.

Vagabundo –Murmurei– . Como ousa menosprezar meu celular? –Bufei.

É o cúmulo ser assaltada, e piora quando o ladrão é tão debochado e cara de pau como esse.

Porém, pensando melhor, se quase todo cidadão de uma cidade grande já foi assaltado, isso quer dizer que já sou oficialmente uma cidadã de cidade grande. Ninguém vai poder dizer que não, afinal, acabo de ser assaltada! —Ou quase—.

                      

       – – –

Finalmente a hora de voltar para casa. Depois de tantos acontecimentos em apenas um dia, depois de tantas coisas que eu não imaginava acontecerem comigo, chega a hora de deitar a cabeça no travesseiro e imaginar por qual situação maluca irei passar amanhã.

São aproximadamente três da tarde, o sol está de matar. Posso sentir o cheiro da gota de suor que escorre em minhas nádegas. Preciso de um banho, urgente.

Seria tão bom se tivesse uma lagoa, ou um lugar calmo onde eu possa tomar banho. Claro, já ouvi falar em parques aquáticos e clubes, mas me refiro a um lugar tranquilo, onde só tenha a minha pessoa. Um espaço perfeito e único, onde eu possa ficar pelada e balançar meus pequenos peitinhos sem que ninguém possa ver.

Um pouco longe de casa, vejo que estou perdida. Não me lembro de que lado vim, e muito menos em que rua deveria ir ou voltar.

Em todas as hipóteses e soluções, resolvo optar por descer uma ladeira. Afinal, o que pode dar errado?

Uma rua um tanto deserta, nenhuma alma andando e nenhum carro parado. Como a Dona Colina. Começo a relembrar meus pequenos momentos lá, junto com GineGeni.

Pegando lenha com minha mãe, para fazer o almoço.

Ajudando meu pai na colheita.

Os banhos na fria lagoa.

Minha pequena casa.

Fecho meus olhos, sem me importar que estou andando em uma bicicleta.

Abro meus braços e sinto o vento acariciar meu rosto e bater em meus cabelos.

EU TE AMO, DONA COLINA! SAÍ DE VOCÊ, MAS VOCÊ NÃO SAIU DE MIM!! –Grito com todas as minhas forças.

Sinto bater em algo, abro meus olhos e vejo um menino caído no chão, com seu traseiro virado para cima. Aperto meus freios com todas as minhas forças, mas a bicicleta não para.

O garoto grita feito uma cabra. O entendo, também gritaria se o pneu de uma bicicleta passasse em cima de meu ânus. Os pneus param, porém, estão em cima da bunda de alguém.

— Você está bem? –Questionei, preocupada e prendendo o riso.

Margarida, essa situação não é engraçada, ele pode ter se machucado!! Não ria, não ria, não ria...! 

— O que você está esperando pra sair de cima de mim?! –Zangou.

— Tem razão, desculpe, desculpe! –Digo, dando ré rapidamente.

Deixo minha bicicleta no chão, e vou correndo ajudá-lo. Tento pegar em sua mão.

— Não precisa. –Ele não permite que eu o toque.

— Tá tudo bem? O seu dói muito? –Questionei.

Ao olhar diretamente para seu rosto, que está sujo por ter grudado no asfalto, percebo que é alguém que eu gostaria de trocar saliva.

Alto, de cabelos longos e pretos. Observo o quanto sua mandíbula é marcada e não consigo olhar em seus olhos castanhos por muito tempo. Seu rosto  está levemente vermelho, ou é vergonha, ou é raiva. Aposto na segunda opção.

— Você é louca? O que fazia de braços abertos e olhos fechados em uma ladeira? –Perguntou, batendo as mãos em sua camiseta branca, fazendo a poeira cair.

Eu só estava sentindo a brisa! –Tento me justificar.

__ Você está drogada?

— Não! Eu não uso nenhum tipo de drogas, minha mãe me mataria!

Ficamos alguns segundo sem dizer nada um para o outro.

— Tem certeza de que está bem? –Questiono

— Claro. Você passou em cima do meu traseiro, mas estou bem. Que dia lindo.

— Poxa, eu já me desculpei! O que posso fazer pra você me perdoar?!

— Tem uma coisa. –Murmurou.

— O quê?

Suma da minha frente! –Exclamou, seguindo seu caminho, sem olhar para trás.

Engulo em seco.

Me desculpe mais uma vez!! –Digo, gritando, entrelaçando minhas mãos e colocando-as rente ao queixo.

Que encontro perfeito, como ele é gentil. O tipo de pessoa que você vê apenas uma vez e é tão legal, que a primeira vez já foi suficiente para não o ver mais.

Essa é a prova de que contos de fada não existem. Cinderela encontra seu príncipe em um baile, branca de neve com um beijo apaixonante, Ariel vê um homem bonito pela prima vez e percebe que foi amor a primeira vista.

O primeiro garoto bonito que vejo, passo em cima de seus fundinhos . Se isso for uma história, tenho certeza que as mãos que a escrevem querem que eu me ferre muito.

               – – –

Chegando em casa, depois de pedir informações para sete pessoas diferentes, estou totalmente exausta. Meus pais estão na sala e se surpreendem ao me ver.

— Onde você estava?! Já íamos ligar para a polícia! –Mamãe disse, se levantando bruscamente.

Fico sem saber o que responder.

— Você não pode sair sem nos avisar, Margarida! Tem dezesseis anos, não é mais uma criança, deveria saber disso. –Papai comentou, cruzando seus braços e fazendo um sinal negativo com a cabeça.

— Eu queria dar uma volta de bicicleta…

Mamãe vem até mim, agarrando meus ombros.

— Aqui não é a Dona Colina! Mais uma vez, quantas vezes vamos ter que repetir isso, Margarida?! Aqui têm assaltantes soltos, estupradores, marginais, foragidos!! Você não pode fazer isso!

O assaltante que encontrei não parecia ser tão perigoso.

— E se algo acontecesse com você?! –Papai indagou, se sentando novamente e colocando a mão no peito.

Desculpa… Não pensei que iriam ficar assim.

— Vá para o seu quarto tomar um banho e não faça mais isso. –Ele disse, olhando para o chão.

— Caiu em uma caçamba de lixo? Está fedendo feito uma porca. –Reclamou, mamãe

GineGeni era totalmente cheirosa, eu até pintava suas unhas.

Me lembro do dia em que coloquei unhas postiças em GineGeni, eram vermelhas e brilhantes. Ficou linda, um luxo. Mas, ela foi para a lama correndo e tirou todas. Estava a cara da riqueza, mas parece que não curtiu muito o estilo garota má.

Vou para meu pequeno quarto, e como a tarde já estava trocando de lugar com a noite, pego meu pijama, que no caso, são apenas roupas que deixaram de ser novas e passaram a serem velhas. Uma blusa amarela e uma calça branca larga, com listras pretas.

Vou para o banheiro, um pequeno cômodo, com um armário na parede para as escovas, vaso sanitário, um ferro para as toalhas e um minúsculo espaço para o chuveiro. Fico pelada e procuro pelo shampoo e o condicionador.

Com a cabeça vaga, lembro-me de que não vou mais ser educada em casa, e que vou ter que me socializar com outras pessoas que não são a GineGeni. Sim, a GineGeni é uma pessoa.

Provavelmente irei daqui um ou dois meses. Não posso ir tão rápido, pois não saberei como agir. Então, provavelmente, mamãe fará minha matrícula em alguma escola daqui alguns meses.

Entro na água e coloco na fria, para relembrar velhos tempos, onde me banhava na lagoa. Enquanto a água cai em meu rosto, sinto meus pelos se levantarem, pelo frio. Começo a pensar como será à vida em um colégio.

Será como em livros, onde a protagonista derruba seus livros no chão, e o doce protagonista, de pele bronzeada e cabelos loiros a ajuda a se levantar, olha em seus olhos e diz: "Você é a mais bela menina que já vi"

Ansiosa para chegar a hora, mas mais ansiosa ainda para a notícia de que vamos voltar a Dona Colina. Ao sair do banho, vou para o jantar com meus pais.

— Então, Margarida, conheceu o bairro hoje? –Indagou mamãe, pegando mais verduras.

— Sim… –Digo, comendo feito uma esfomeada.

— Fez alguma amizade? –Papai questiona.

— Não diria que seriam amizades...

O que eles iriam dizer se soubessem que atropelei um garoto e bati papo com um assaltante? Resolvo trocar o assunto para eviar mais perguntas.

—  Mamãe, daqui quantos meses vai fazer minha matrícula? Precisa me dizer para que eu possa ficar preparada psicologicamente.

Mamãe e papai se olham.

—  "Meses", Marga? –Questionou, em tom irônico.

— Sim, por quê? –Indaguei, sem entender sua reação.

— Que meses o que, Margarida. Amanhã já te quero de pé logo pela manhã. –Comentou, bebendo um pouco de seu suco.

— Como assim amanhã? Você nem me falou nada! –Exlamei, soltando os talheres.

— O dia que eu precisar te avisar que vou fazer alguma coisa, mudo de nome.

— Eu não sei que escola é, eu não sei onde é!

—  É uma escola boa, a diretora me disse que as pessoas são gentis. Soube que a filha de Jenevive estuda lá!

—  Como assim? Você já falou com a diretora?!

— Claro, liguei hoje e fiz sua matrícula. Fica tranquila, querida, soube que a Jenevive só coloca a filha dela em escolas boas! É pública, mas seu pai disse que não podemos pagar um colégio particular, mas essa serve.

Não tenho materiais!

—  Já comprei tudo, Margarida. Não precisa se preocupar, eu não te contei porque queria fazer uma surpresa, mas parece que você não tá para surpresas hoje.

Se ela soubesse que já tive várias surpresas hoje.

— Sua mãe está certa, Marga. Você vai fazer amigos lá.

Concordo com a cabeça, calada, brincando com a comida.

Já sabia que iria ir para um colégio, mas não tão cedo.

Ao acabar de comer, escovo meus dentes e vou para a cama. Foi um dia longo, e amanhã será ainda mais.

Fecho meus olhos, e torço para que amanhã voltemos para o campo.

     

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