Cap. 1 - Choque de Realidade

Parecia um sonho! Era lindo ver aquele cenário! Tudo era de uma cor muito pura, parecia pintura em três dimensões. As cores vibravam, assim como o vento vibrava ao tocar meu rosto. Era um campo muito esverdeado e uma grama bonita e vistosa. Bem aparada. Podia-se até mesmo deitar-se sem nenhum receio de sujar-se, era densa como um tapete. As árvores, impunham-se de um verde causador de inveja a qualquer Pantanal. As frutas, eram grandes e pareciam ser mais puras do que as que costumava ver, ou as quais, achava estarem perfeitas. As pessoas, alegravam-se em pequenas rodas de amigos sempre com um sorriso verdadeiro ao rosto, dizendo coisas belas. Relatos bons. Esse sorriso puro em seus rostos contagiava a todos que ali estavam. Era, verdadeiramente, um cenário de pura alegria e tranquilidade. Vestiam-se uniformemente, com roupas dentro da tonalidade da cor bege e todos, todos, eram de uma beleza invejável.

Uma bela garota de cabelos cacheados à cor do sol, alta, chegou ao meu lado. Seus olhos azuis me contaminaram de pureza.

- Olá Coiote! Chegou cedo! Não esperávamos que chegasse tão cedo assim! Mas, já que está por aqui, venha, vou lhe apresentar a todos! – disse assim e foi puxando-me pela mão.

Enquanto andávamos, percebi que tudo era mais perfeito ainda. Crianças divertiam-se correndo e jogando-se à grama. Havia uma música quase que angelical sendo tocada em meus ouvidos. Alguns metros de distância, debaixo de uma árvore, um grupo de jovens tocava alguns instrumentos. Parecia eu conhecer a composição a que tocavam, mas, seus instrumentos pareciam distintos e não havia como entendê-los. Comecei a perceber que as cores iam desfazendo-se e pouco a pouco iam borrando-se, até que tudo se desfez num redemoinho instável de tintas borradas. Tudo aquilo sumiu da minha frente e voltei à minha realidade.

Encarei-me ao espelho de meu pequeno banheiro. Cabelos despenteados, completamente desbotados e viam-se apenas os resquícios das tintas que eu usava. Meu rosto cansado, meus olhos vermelhos, completamente estáticos. Percebi logo o barulho de alguém batendo à minha porta e deduzi que isto havia me trazido de volta dos meus pouco insanos pensamentos. Dei uma última olhada em meu rosto, joguei uma água para acordar mais depressa e respondi gritando que já iria atender a porta, por fim peguei um boné pendurado à maçaneta da porta escondendo o cabelo bagunçado.

Saí do banheiro, peguei o maço de cigarros na cozinha e acendi um. Cheguei à porta e olhei ao olho mágico. Vi que se tratava de algum amigo meu, mas, mesmo sem diferenciar quem era abri a porta.

- Fala Coiote! – disse Marquinho.

- O que conta meu velho? – respondi cumprimentando-o da forma que tínhamos costume.

- Trouxe algumas primas da Lenice. Podemos entrar? – disse e entraram todos.

- Claro! Claro! Acho que está um pouco bagunçado, nem lembro o que fiz ontem. – falei enquanto entravam. A casa tinha somente duas cadeiras à cozinha, onde existia uma mesa de metal, dessas de bar. Havia, onde era para ser a sala, um grande tapete verde que já estava ali quando cheguei. Sempre que amigos vinham me visitar, sentávamos todos ali para fumar, para beber e para contar histórias engraçadas enquanto escutávamos alguma boa música de Rock and Roll. Assim, como era o costume, liguei o som e ficamos escutando um bom CD de uma banda chamada Dream Theater.

O cigarro foi preparado e logo aquela fumaça invadiu a sala, os pulmões e nossas mentes.

As conversas logo tomaram um rumo sem sentido algum. As duas garotas, primas de Lenice, estavam dando gargalhadas e olhando em volta. Minha casa não era realmente muito interessante. Paredes brancas, um aparelho de som e um tapete verde surrado e cheio de manchas de cervejas e outras bebidas “tri” destiladas. Da sala, via-se um pedaço do quarto com a cama desarrumada, algumas roupas jogadas ao carpete azul escuro e algumas caixas empilhadas a um canto, que me serviam de guarda-roupas. A cozinha era pequena, não maior do que precisava e não menor que minha descrição. Tinha fogão e geladeira em miniatura, até mesmo o botijão de gás era em miniatura, como assim gostava de chamar, além de mesa e duas cadeiras de bar, como já havia dito. O banheiro, simples com um boxe, um armarinho e outro espelho às costas da porta. Havia dois espelhos, o que se tornou muito interessante quando eu os descobri. Este era meu apartamento e não mais do que realmente precisava. Muitos gostariam de ter aquilo que eu tinha, pelo menos disso eu tenho absoluta certeza.

- Mas, o que estas garotas estão rindo tanto? – perguntou Marquinho.

- Deve ser por causa desta casa. Elas me disseram que nunca fumaram dentro da casa de alguém. – respondeu Lenice vagarosamente dando uma risadinha picada, curta, daquelas que tem e não tem graça ao mesmo tempo.

- Hei! – houve silêncio. – Garotas! – chamei demorando um pouco para conseguir chamar a atenção. – Podem levantar-se e olhar minha casa. Ela é desarrumada, mas podem olhar à vontade. Parecem estar curiosas.

- Nossa! Como é morar sozinho? – perguntou Dani, uma das garotas.

- Normal! – respondi.

- Como assim, normal? Só isso? – perguntou Cristiane, a outra prima de Lenice.

- Tem seus momentos. Não tem hora para chegar, mas você tem que arrumar tudo. – falei.

- Mesmo assim deve ser legal! – disse Dani olhando para a pilha de louças sobre a pia.

- Deve ter também seus puros momentos de solidão. – retrucou Marquinho.

- Sim, tem sim. Estes momentos são cruéis, mas depois que se acostuma, tira-se de letra. – respondi.

- Você está sumido Coiote! – disse Lenice com seu jeito tranquilo de falar. – O que anda fazendo?

- Fico em casa a maior parte do tempo. Fumando, pensando, dormindo. – respondi.

- Isso que é vida. – disse Dani.

- A conversa está boa, mas a loucura está pouca. E agora, o que fazemos? – disse Marquinho.

- Vamos fumar de novo! – respondi indo ao meu quarto e trazendo mais um cigarro pronto.

Em alguns minutos, todos estavam de pé curtindo o som de outra banda de Rock, desta vez era um estilo mais pesado e não nos deixava ficar parados. Como todos gostavam deste tipo de música, estávamos balançando a cabeça como se estivéssemos tocando guitarra em cima de um palco. Eu já estava um pouco distante em meus pensamentos e nem mesmo percebi que estava dentro do banheiro, novamente, brincando com as gotas d’água da torneira, enquanto caiam no ralo da pia. Virei-me em seguida, quando havia terminado de lavar minhas mãos e levantando os olhos encontrei-os ao espelho, ao qual estava atrás da porta. Ali fixei meu olhar. Lembrei-me o que havia acontecido alguns momentos antes e ali parei meu pensamento.

Meus olhos estavam estagnados novamente ao espelho, sem movimento algum, nem sequer um espasmo óptico. Em algum tempo pareciam já estarem cansados de não fazerem movimento, então o meu reflexo ao espelho fez um movimento levantando a pálpebra. Incomodei-me. Achei aquilo engraçado, pois, não havia eu feito movimento algum, ou pelo menos, não havia sentido.

Continuei a observar-me ao espelho e, segundos depois, comecei a me sentir estranho, como se sentisse nauseado. Meu reflexo ao espelho começou a mudar, primeiro devagar, depois com certa rapidez obteve um aspecto bem diferente. Não era de um reflexo, mas, de uma realidade conflitiva, como se fosse uma janela, onde poderia visualizar outro mundo, completamente diferente e, por conseguinte, outro eu.

O meu reflexo ao espelho começou a transformar-se. O cabelo, ao reflexo, que era de um azul desbotado, tornou-se um preto vistoso e muito bem cuidado. Parecia estar penteado, para meu espanto. Meu semblante, que sempre era de um cansaço extremo, por sempre estar distante da realidade e por um imenso toque de desmazelo, tornou-se belo e bem aparentado. Barba feita, olhos mais vivos do que os meus aos quais já havia acostumado. Em seguida, as roupas também se modificaram para um tom mais vivo do que as minhas. Por ter um estilo mais agressivo, minhas roupas eram um tanto desgastadas e rasgadas. Mais porque eu queria que fossem assim, surradas. Mas, tudo aquilo era incrível! Fora uma transformação que vi em meu próprio reflexo! Ainda sério, olhava aquela moldura sem ação, que se tornara viva! Uma piscada e, em seguida, um largo sorriso abriu-se. O susto levou-me a dar um passo para trás, quase que me fazendo bater a parede e assim pensando que a mesma não estivesse ali, construída atrás de mim.

- Me desculpe. – disse o espelho para mim numa forma muito gentil.

- Mas, você mostrou-se muito mais do que pronto para isto. Acho que seu susto não será tão grande assim.

Fiquei alguns segundos sem ação. A voz, que saia do espelho era realmente igual a minha, mas tinha um toque de sutiliza que não sabia ser possível em meu jeito de falar, ou assim pensava. Estático, observei, até que tive forças para fazer algo. Fechei os olhos e abaixei a vista colocando minhas mãos sobre meu rosto.

- Eu devo estar pirando! – falei com os olhos fechados e em voz baixa.

- Não! Você está apenas enxergando a realidade. – disse a voz calma saindo do espelho.

Levantei meus olhos e vi seu sorriso, idêntico ao meu.

- Incrível! – sussurrei ainda com as mãos tapando metade de meu rosto. – Quem... ou... o que é você? – perguntei observando a borda do espelho.

- Não me reconhece? – disse o reflexo em tom de zombaria. – Sou seu outro eu! Mas, um pouco melhor cuidado, como pode notar. – disse olhando para si mesmo.

- Mas... Mas... isso... Como é possível? – perguntei indignado.

- Simples! Sua mente chegou a um ponto, quando as realidades vêm a se convergirem, uma com as outras, não existe ilusão. – respondeu ele. – Mas, a pergunta que deveria ter feito, ainda não é essa.

- E qual seria? – perguntei.

- Não sou eu que irei perguntar! – disse ele olhando para o lado como se estivesse vendo alguém do seu lado do espelho que eu não conseguia ver.

- Mas, eu nem sei o que devo perguntar! Não sei agora nem se estou vivo? – indaguei.

- Vivo? - disse e riu-se vagarosamente. - Sim, está vivo, e diga-se, muito vivo! Agora, você pode começar a fazer todas aquelas perguntas sem resposta que você tem aí dentro, guardadas em sua mente tão grande, como já sabemos que é.

- Tenho que fazer perguntas então? Bem, acho que tenho muitas perguntas sem respostas, mas, devo perguntá-las a você? Talvez suas respostas sejam iguais as minhas respostas, nas quais, verdadeiramente, não fazem sentido algum.

- Não necessariamente. Não irei lhe responder automaticamente. Vou lhe mostrar o caminho certo para achá-las por si só. – disse o espelho. – Respostas, todos podem dar, aprender a encontrá-las que é o difícil.

- Mas, não entendo. Quem é você? Você é meu outro eu? – perguntei finalmente sem ao menos perceber que havia feito uma pergunta.

- Chegamos ao ponto! Você fez sua primeira pergunta certa! E agora respondendo, não! Por enquanto é assim. Sou seu outro eu, até que você tenha entendimento suficiente para diferenciar você mesmo de outra pessoa, com personalidade diferenciada.

- Meu Deus! – exclamei colocando as mãos à boca e olhando o espelho em volta. – Acho que estou ficando cada vez mais louco.

- Muito bem! É disso que precisamos agora! Loucura! – respondeu ele.

- Não estou entendendo nada. – falei.

- Na hora certa irá começar a entender. – falou calmamente enquanto eu olhava para ele de forma interrogativa. - Agora vá! Seus amigos estão preocupados contigo. Não deve deixá-los esperando, nem mesmo dizer o que está acontecendo. Não é uma situação agradável de explicar. Bem, seria a deixa para uma internação em algum sanatório do estado. – disse e riu-se.

O espelho começou a voltar ao normal, sem que eu quisesse. Vagarosamente as cores iam mudando e a as formas também voltavam ao normal, até que vi meu reflexo novamente. Movimentei meu rosto para ver se era eu mesmo e vi que agora era a minha realidade. Eu estava pálido, como se estivesse presenciando algum fato sobrenatural, o que não deixava de ser verdade. O meu cabelo despenteado voltou a estar ali. Levantei o braço e vi que este era meu. As batidas na porta estavam cada vez mais fortes. Abri-a com cara de assustado e pálido. Todos estavam assustados junto à porta do banheiro.

- Por que não respondeu Coiote? – perguntou Marquinho. – Estávamos querendo arrombar a porta já!

- Pensamos que havia desmaiado aí dentro! – disse Dani com cara de muito assustada.

- O que é que está havendo contigo? – perguntou Lenice olhando-me com cara de quem não estava me conhecendo mais.

- Galera. – falei calmamente. – Estava apenas usando o banheiro. O que há de mal nisso?

- Ficar meia hora no banheiro não é uma coisa normal, não acha Coiote? – disse Marquinhos. – Você realmente está muito estranho! Não parece mais com aquele velho Coiote que conhecia! Pra mim já deu o que tinha que dar, vamos embora daqui pessoal! – disse por final virando as costas e indo em direção à porta com as meninas.

Todos eles ficaram temerosos com que havia acontecido, pareciam estar indo embora da casa de um psicopata que lhe tentaria contra suas vidas. Acharam ainda, que iriam me encontrar morto dentro do banheiro e, sinceramente, minha aparência não estava das melhores. Mas, encontrava-me muito bem, cada dia estava mais consciente, embora para muitos, isso não era nem um pouco convincente.

Foram embora assim, sem dizerem muita coisa. Não era de se admirar pensando bem, embora no momento, para mim, não fazia o menor sentido. Olhei então para o relógio e vi que haviam se passado um largo período desde que entrei em meu banheiro. O que foi de principal motivo para que eles achassem que eu estava me drogando com outros tipos de drogas pesadas e escondido deles. Fiquei um tempo pensando no ocorrido e depois cheguei à conclusão de que eles na verdade tinham razão. Se eu contasse o que realmente estava se passando dentro do banheiro, daí sim, eles me internariam em algum sanatório ou em alguma clínica de recuperação para adictos.

Achando graça da situação, fui até meu quarto e peguei mais um cigarro enrolado e ascendi indo de volta ao banheiro. Agora, o banheiro fazia parte de uma grande verdade, da qual ainda não estava ciente de que seria a maior descoberta de minha vida.

Tragando a fumaça e soltando-a em seguida, em frente ao espelho, percebi que o reflexo mudava novamente. Foi tornando-se um filme e logo eu estava dentro dele. Mesmo com o cigarro à mão, ao qual tirava um trago longo e lento, observava que não estava mais dentro do meu banheiro, estava agora num cenário totalmente diferente. Esta primeira observação fez-me vibrar, pois nunca, jamais acreditaria se alguém me contasse que isso podia acontecer dentro de uma mente.

Vi que estava em uma época em que eu nem mesmo pensava em existir, se é que pensamos antes de existir. Meus pais deveriam ser adolescentes. Todos estavam com roupas largas e soltas, óculos escuros grandes, calças boca de sino, camisetas coloridas, cabelos compridos amarrados com fitas. A paz reinava entre as rodinhas de jovens sentados ao chão junto aos seus instrumentos de cordas. Tudo aquilo me lembrava do quanto gostaria de ter vivido esta época gloriosa. Mesmo que meus pais estivessem vivendo o fim desta época de ouro.

A um canto, observei a figura de quem poderia ser minha mãe. Morena, de cabelos longos, um tanto jovem. Camisa indiana florida e calça azul bem larga, mais larga ainda na altura do tornozelo, fazendo jus ao nome “boca de sino” onde provavelmente os sinos eram os tornozelos das pessoas. Seus olhos pareciam deslumbrar o infinito enquanto seus amigos, sentados à grama, faziam canções que diziam sobre paz, alegria, drogas e liberdade. Dizia-se que todos eram irmãos, não importando a origem, a cor ou forma de pensar. Se ainda estivéssemos assim, poderíamos ter evitado muitos desastres na vida humana, até mesmo os sistemas desta sociedade seriam completamente diferenciados. Mas, como tudo o que é bom, dura pouco, aqui está o que viramos.

Assim enquanto via o filme, fumava também o meu cigarro, dando asas à minha pequena mente. Logo escutei a voz de meu outro eu.

- Vê? Sua mãe sentada à grama está a pensar o que fará no futuro. Ela queria ser médica, mas, como você mesmo sabe, as coisas não se realizaram do jeito que ela desejasse que fosse.

- Por que estou vendo isso? – perguntei olhando para os lados, procurando-o.

- Para que entendamos o presente, temos que saber alguns acontecimentos passados. – disse ele.

- Interessante! Nunca pensei que minha mãe tivesse sonhos, e ainda mais, que desejasse ser médica! Surpreendente!

- Seu pai queria ser astronauta. – disse a voz.

- Meu Deus! E eu pensava que eu viajava muito!

- Realmente, aquela foi a época de ouro! Gostaria de ter vivido nesta ocasião. – disse meu outro eu, fazendo surpreender-me com seu comentário.

Aquele filme parou novamente. Vi que estava olhando ao espelho, vendo-me. O filme novamente voltou a se movimentar, quando percebi, estava dentro dele. Estava ali, propenso às vontades que até então, mostravam não serem minhas. Aparecia agora, a época em que meus pais se conheceram. Era uma grande bagunça na verdade. Correria e gritos, tiros, bombas e cavalaria armada debandavam ao lado contrário dos estrondos. Cachorros latiam, sendo dificilmente contidos pelos policiais da tropa canina. Numa esquina, meu pai, ainda bem forte e com cabelos compridos, bate de frente com minha mãe. Pequenina, ela cai e seus óculos também vão ao chão. Ela se levanta, pega seus óculos e sai correndo para o lado ao qual meu pai vinha. Vendo que ela corria para o lado errado, meu pai a puxou e a segurou em seus braços. Beijou-a. No momento certo, pois, em seguida, a tropa da cavalaria passou ao lado deles perseguindo um grupo de jovens arruaceiros. Desvencilharam-se um do outro. Olharam para o bando de garotos que agora apanhavam cruelmente dos policiais. Os olhos se encontraram numa forma de agradecimento mútuo e correram de mãos dadas para o outro lado da rua. Saíram assim da confusão e começaram a conversar.

Voltei a mim. Ao espelho, estava o outro eu. Meu cigarro havia chegado ao fim de forma que o joguei ao vaso sanitário, dando descarga em seguida. Peguei o maço de cigarros e acendi um.

- Isso realmente aconteceu? – perguntei enquanto soltava fumaça do cigarro.

- Bem, você acabou de ver com seus próprios olhos, não foi?

- Sim, mas, é real?

- O que acha ser real? Acha que eu sou real? – perguntou ele num tom de sarcasmo com seu rosto dentro da moldura do espelho.

- Não sei. – respondi olhando para o seu reflexo e dando uma volta olhando o meu banheiro. – Pode ser que sim, pode ser que não. Ainda tenho dúvidas. Não sei se posso acreditar.

- Tenho muitas coisas para lhe mostrar ainda. Dentro de pouco tempo irá saber se é ou não é real, como pensa.

- Acho tudo isso uma loucura. Está me dizendo que fui ver o passado de meus pais? – perguntei incrédulo.

- O que acha que viu? – perguntou novamente ironizando.

- Não sei! Mas, o que quer mostrar-me com tudo isso?

- Isso! Isso mesmo! Mais uma vez chegamos ao ponto!

- Como? Não entendo? – falei levando o cigarro ao canto dos lábios.

- Tudo isso começa com uma pergunta, lembra-se? Se você faz uma pergunta, eu posso respondê-la ou lhe mostrar a forma de entender a resposta. Mas, se não a faz, eu não posso mostrar-lhe o caminho para você saber uma resposta sem ter uma pergunta, não é mesmo?

- Que complicação! Explique melhor, por favor?

- Sim, claro! Como quiser! Bem, é simples. Quando fazemos uma pergunta, e embora seja ela de forma imediata, existe um mecanismo em nosso cérebro que faz com que todas as informações que temos sobre tal assunto, sejam conectadas e trazidas à tona, fazendo assim, que formulemos a pergunta. Então, sendo assim, as perguntas são feitas somente a partir de um ponto de reflexão sobre tal assunto, mostrando que a pessoa está realmente pronta para ter a resposta sobre este assunto. Se não, a pergunta ficará disforme, sem conexão e terá que passar novamente por uma reflexão para que se coloquem as palavras certas. Ou, somente, a pergunta ficará superficial e a reposta, obviamente, tenderá a ser superficial também, até mesmo leviana, eu diria. – disse ele com um sorriso e terminando a resposta.

- Nossa! Isso realmente é muito interessante e faz completo sentido! Magnífico! – falei empolgado.

- Mas, voltemos à pergunta. Você disse: “O que quer mostrar-me com tudo isso?”, não foi?

Concordei apenas balançando a cabeça em forma afirmativa enquanto fumava meu cigarro.

- Bem. Muito podemos conhecer de nós mesmos vendo o nosso passado, visto que tudo o que passamos foi o que nos criou. Quero lhe mostrar aqui, o poder de nossas escolhas. Podemos ser felizes ou completamente solitários. Abastados ou miseráveis, saudáveis ou debilitados. O que nos modifica são nosso conhecimento, nossa consciência, o que nos faz termos nossas escolhas, acertadas ou erradas.

- Então quer me mostrar que as escolhas fazem à diferença em nossas vidas?

- Sim! Mas existem antes, as nossas referências profundas, nossos conhecimentos sobre algo, ou não, que formam as nossas escolhas. Lembra-se?

- Ah Meu Deus! Estou ficando louco!

- Não diga isso! Embora precisemos de um pouco de loucura. É simples. Acompanhe novamente meu raciocínio. Para termos uma escolha, precisamos saber o que queremos ao final de tudo. Para sabermos o que estamos realmente dispostos a fazer, temos primeiro que fundarmos uma opinião através de conhecimento a respeito de tal assunto. Agora entende?

- Acho que estou entendendo. Mas, isso parece loucura. Embora faça o maior sentido. – falei olhando para o chão.

- Sim, meu rapaz! Mas é justamente isso o que você esqueceu. – retornou ele.

- De fazer escolhas?

- Não, de ter suas opiniões fundadas em seu íntimo.

- Nossa! Perdi meu tempo então?

- Não necessariamente, não perdemos algo que não existe!

- Como assim? O tempo não existe? – perguntei ficando novamente afobado com a ideia.

- Calma! Depois eu lhe explicarei isto. Mas, voltando ao assunto, você deixou ser levado por idiotices e momentos, não tendo nenhum fundamento, nenhum conhecimento que lhe levaria a ter opinião formada sobre tais assuntos. Com isso, está hoje com a mente completamente longe e sem nenhuma diretriz a seguir. Você é o que chamamos de “Mente Aberta, sem opinião”. Um barco “a todo pano” sem um leme.

- Mas, isso, de certa forma, é bom? Não é? – perguntei.

- Sim, é ótimo! Mas, acho que já está na hora de começar a ter conhecimento próprio e formular opiniões, não acha? Tomar o leme e providenciar uma direção!

- Agora ferrou tudo! - Falei soltando a tragada.

- Sabia que iria dizer isto. Bem, vejamos em que ponto eu começo. Você, mediante suas loucuras, que se tornaram cada vez maiores, chegou a um ponto em que pôde aceitar quase tudo, mas sem saber o que é, e, o que não é realidade. Este amadurecimento mental é muito complexo e torna difícil a vida de quem é assim. Mas, precisamos esperar o tempo certo para que entendamos o que significa tudo isso e comecemos a assimilar ideias e fatos que acontecem diante nossos olhos.

- Meu amigo, vai devagar que o “santo é de barro”! Daqui a pouco eu caio ao chão! – falei e ele sorriu ao espelho.

- Não se preocupe. Você aguenta! Mais à frente explicarei melhor o porquê disso.

- Tudo bem então. Vou lhe fazer mais uma pergunta. Como irei ter ou construir minhas opiniões?

- Ótima pergunta! Seguinte. Você já as tem, mas elas estão deturpadas com a vida que você levou até hoje e com o decorrer do tempo elas foram ficando cada vez mais guardadas em seus pensamentos, em seu íntimo. Cada vez mais profundas em seu íntimo. Irei lhe mostrar o seu passado, que fora esquecido e lhe ajudarei a entender o que lhe falta. Por enquanto, irei lhe ajudar, quando chegarmos mais à frente, você terá que descobrir sozinho. Muito bem, está pronto?

- Sim! – respondi jogando o cigarro na pia.

Num rodopio brusco tudo se transformou mais uma vez. O espelho me sugou, pois, senti meus pés sem apoio e logo me vi ao lado do meu outro eu, dentro do que era para mim, o espelho.

- Estou dentro do espelho? – perguntei assustado olhando para todos os lados, vendo que tudo era escuro e não pisávamos em nada. Parecia que estávamos suspensos ao ar.

- Bem, estamos entre o espelho e o seu mundo. Digamos que, estamos num buraco entre as dimensões.

- Isso é de assustar! Se eu contar, realmente, ninguém iria me levar a sério.

- Com certeza! Jamais conte. Ninguém entenderia. – disse sorrindo.

O que antes era negro e sem vida, tornou-se um grande filme. Era como se estivéssemos em uma grande sala em terceira dimensão, e em que nela fazíamos parte do cenário do filme. Embora, as pessoas que estivessem “atuando”, não nos viam na verdade, e, os “atores”, eram meus pais e eu mesmo, quando pequeno.

Tudo acontecia em meu primeiro aniversário. Eu, pequenino, aos braços de meu pai e minha mãe brincando comigo. Todos estavam sorridentes. Não havia luxo, meus pais estavam quase que vestidos como se fossem hippies. Havia muitas pessoas as quais desconhecia e pareciam ser muito amigos de meus pais. Era uma família de dar gosto de tanta felicidade. Como num pulo, já me vi com cinco anos, arteiro como eu, dando trabalho à minha mãe. Logo também vieram os machucados, as vontades, as birras e os tapas, ganhados de minha mãe. Também, eu deixava a todos de cabelo em pé com as artes que fazia.

Mostrei também que podia ser muito inteligente, desde que me interessava em algum assunto. Para os outros, aos quais não me criavam o mesmo interesse, dava de ombros e me fazia de difícil para entender.

Na escola, quando cobrado, mostrava ser extremamente capaz, mas, deixado de lado, dava vazão a inquietude e quando chamado à atenção chorava como um bebê sem mamadeira. Era até engraçado de se ver. Posteriormente, pois na época, era um sofrimento para mim.

As primeiras artes mais sérias foram aos dez anos. Foi a primeira vez que peguei dinheiro da carteira de meu pai e comprei tudo em chiclete. Quando meu pai descobriu, tomei uma surra de amargar e fiquei sem ver televisão por um mês.

Até os quinze anos, mostrei-me ser entendedor das normas de minha casa, que, eram um tanto rígidas e extremamente irreais, como assim vejo hoje. Quando tive maturidade suficiente para sair de casa, maturidade essa que “achava ter”, percebi o quanto os outros adolescentes eram diferentes de mim. Invejei-os de forma errada. Comecei a perceber que somente eu tinha horário para voltar para casa todos os dias, entre outras coisas. Todos tinham liberdade irrestrita, e eu, não possuía isso.

As drogas começaram a fazer parte de minha vida e de meu cotidiano. Tudo era novo para mim e descobri muitas coisas “legais” com os meus amigos. Percebi que havia passado muito tempo dentro de casa. Comecei, a partir daí, a desconsiderar o horário estabelecido por meu pai. Chegava fora de hora e às vezes nem mesmo chegava. Dormia na casa de amigos e passava dias sem voltar para casa. Isso fez com que meu pai ficasse sem saber o que fazer.

As discussões tornaram-se rotina e a cada dia eram mais ferozes de minha parte. Até que numa manhã chuvosa, a discussão foi muito feia, pois meu pai havia encontrado droga em meu quarto. Fiz questão de arrumar minhas coisas, colocar em uma mochila às costas e uma pequena mala, botei o violão na capa e fui saindo de casa. Minha mãe chorava desesperadamente com seu coração de mãe moído e meu pai dizia que “se eu saísse por aquele portão eu nunca mais voltaria a ser seu filho”. De costas, eu parei, respirei fundo e decidi que dali para frente eu não teria mais uma família.

Desci caminhando pela rua, sozinho. Nem sequer olhei para trás. Meus olhos cheios de lágrimas e com um medo estampado em seu brilho. Não tinha ideia do que iria fazer. Tudo virou uma grande incerteza e um arrependimento de ter um orgulho tão aflorado junto com uma rebeldia incapaz de sentir-se errado em toda aquela história. Uma lágrima escorreu de meu olho, vendo-me naquela situação que havia esquecido ou até mesmo apagado de minha mente.

- Vê? – disse meu outro eu. – Sua escolha levou a ser o que é hoje.

- Mas, nisso, eu não tinha escolha. – revidei enxugando a lágrima que escorreu dispersa.

- Guarde muito bem isso que lhe direi! Em todos os momentos de nossas vidas, temos as escolhas à nossa frente. Basta decidirmos entre observá-las e descobrir o certo do errado ou desconsidera-las e deixarmos nossa vida à mercê. Sem direção.

- Mas, onde estaria a escolha ali, naquela situação? – perguntei.

Ao mesmo tempo da pergunta, o meu outro eu, voltou o que seria aquela reprodução de minha vida. Fez-me agora ver a mesma cena de outro ângulo de visão. Enquanto estava no portão, não olhei para meu pai. Mas, pelo ângulo em que eu estava vendo agora, podia ver que meu pai chorava enquanto falava aquelas duras palavras. Seria talvez seu último resquício de uma tentativa desesperada para me fazer mudar, ou parar com minhas atitudes de rebeldia. Era, na verdade, o seu amor e desespero tentando me corrigir. Meu eu do passado, nem mesmo se virou, e, sem ver esta cena, foi embora. Um aperto no peito me fez ficar com raiva de mim mesmo com tamanha rebeldia que agora eu percebia não fazer sentido. Depois que já não estava mais no campo de visão, meus pais se abraçaram e choraram de angustia por ver seu único filho indo embora daquela maneira, debaixo de uma garoa fria e fina. Mesmo assim, ainda continham uma preocupação por mim. A mesma que eu tinha em não saber onde dormiria e onde comeria.

Em seguida tudo parou e fiquei observando a figura de meus pais abraçados e chorando com tristeza imensa. Chorei também, não havia meio de segurar as lágrimas. Não somente uma lágrima agora escorreu.

- Agora entende? – perguntou meu outro eu.

- Da pior maneira possível. – respondi com palavras e olhos encharcados.

- Se apenas tivesse olhado para trás, teria mudado a sua opinião, em que pensava que seus pais não gostavam de você, por lhe tratarem com tanta crueldade, para você, mas, que para eles, era somente uma forma de lhe proteger.

- Acho que nunca teria feito isso se eu visse as lágrimas no rosto de meu pai. Meu erro foi não ver a preocupação em forma de lágrimas.

- Este foi seu primeiro erro quanto a desconsiderar as escolhas que são apresentadas a você. Agora, você tem que saber que as opiniões estão intimamente ligadas não só ao que ouvimos, mas, ao que vemos também. Temos de dar valor aos pequenos detalhes. Os detalhes constroem um muro, ou o deixam pela metade. Os detalhes são os tijolos de uma construção de opiniões.

- Agora eu entendo. – falei ainda cabisbaixo.

- Este é apenas o primeiro deslize ao qual voltamos. Existem muitos outros que ainda tem que reaprender.

- Reaprender? – perguntei levantando a cabeça.

- Sim! Reaprender! Ou acha que estou lhe mostrando tudo isso por um mero acaso? – houve um silêncio e eu o olhava. – Toda a nossa trajetória é constituída por nossas opiniões. Mas, ao nosso caminho, temos que aprender coisas que nos serão úteis, que serão usáveis e posteriormente, realmente usadas! Você esqueceu-se de aprender aqui, neste momento, que, todas as pessoas têm seus sentimentos, embora não saibam, muitas das vezes, expressá-los de modo correto para outras pessoas. Entendeu?

- Nossa! Tudo isso é muito estranho. Mas, jamais poderia ter pensado nisso. – falei pegando outro cigarro.

- Vamos continuar? – perguntou meu outro eu num tom de animação.

- E tem mais? – perguntei assustado e desligando o isqueiro.

- Muito mais! Nem mesmo sabe o quanto! – disse.

Fiquei em silêncio enquanto meu outro eu sorria desdenhando, porém, amigavelmente. Sabia que estava deixando-me apreensivo e curioso. Como mágica ou ilusão muito bem executada, voltamos a assistir ao filme de minha vida, vendo coisas que nem mesmo lembrava ter vivido. Era muito interessante tudo aquilo.

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