Capítulo 2

– A última caixa! – Anuncio no meio da sala.

– Até que enfim. Achei que essa mudança não fosse acabar nunca. – Diz Zula, pulando do banco da cozinha e vindo espiar o que tem dentro da caixa. – Mais livros? Eu achei que já tinham acabado a umas três caixas.

– Não são só livros. Tem alguns cadernos de receita, blocos de nota e material de escritório também. Ainda vou ter que comprar algumas coisas, mas meu cantinho de trabalho vai ficar perfeito.

– Ainda bem que o meu escritório é a rua. Falando nisso, vou sair para dar uns cliques por aí.

Ela me dá um beijo no topo da cabeça, pega a câmera em cima da mesa e sai. Eu me levanto do chão, batendo a poeira do corpo, e arrasto a caixa para o meu quarto para arrumar depois. Vou em direção a cozinha para preparar o jantar, mas antes paro na porta de Will.

Ele está falando com Luciana pelo Skype enquanto arruma o quarto dele. Tudo foi milimetricamente medido por ele para caber em cada cômodo da casa, mas agora ele está tendo problemas para encaixar a sua mesa de desenho no canto perto da janela e está bastante aborrecido. Will é o cara mais calmo e fofo que eu conheço, mas o que ele tem de romântico e amigo, tem o dobro de metódico e teimoso.   

– Quer ajuda?

– Não precisa, ela não vai caber nunca! O marceneiro fez do tamanho errado. – Ele bufa.

– Então coloca na sala. A gente tem bastante espaço lá.

– Não acha que vai atrapalhar? É o nosso espaço de convivência.

– É claro que não. A gente se ajeita, troca algumas coisas de lugar, e vai dar tudo certo.

– Obrigado, Morg. – Ele dá um sorriso torto e vejo que Lu também sorri na tela atrás dele. Eu mando um beijo pra ela e saio.

            A nossa cozinha não é imensa como a que eu tinha em casa, mas foi uma exigência minha que ela tivesse pelo menos um tamanho aceitável para eu me movimentar por ela. Eu amo cozinhar e sou espaçosa, mas aqui tem lugar suficiente para todos os utensílios e para eu me mexer o quanto quiser. E ainda temos uma ilha que dá para a sala, o que dá a impressão de ser um espaço ainda mais amplo.

            Vou tirando os ingredientes para o strognoff de carne da geladeira e depositando tudo na bancada. Coloco meus fones de ouvido e começo a cozinhar cantarolando baixo. Corto a carne em pedacinhos, descasco e pico a cebola e alguns dentes de alho, que vão para o fundo da panela com azeite. O cheiro logo começa a subir. Se tem algo que eu amo é refogado de alho com cebola, é impressionante como isso é a base de qualquer receita e dá um sabor todo especial. Mas só se for alho fresco, e não aqueles que vendem em conserva.

Alguns minutos se passam e já estou com o arroz quase pronto e a carne soltando o caldo temperado da panela. Enquanto isso já vou lavando a louça, pois odeio deixar para limpar tudo no final. Esfrego uma colher de pau com a esponja enquanto rebolo ao som de Thank You Next, da Ariana Grande, quando, de repente, a música para, indicando que estou recebendo uma ligação. Seco a ponta dos dedos no pano de prato e, assim que aperto um botão no fone, a voz estridente de Lorie adentra meus ouvidos.

Mon chéri, tout va bien?[1] Já se instalou? Amanhã mesmo quero você aqui para a reunião de produção da semana. Às oito em ponto! Depois vou te apresentar para todo mundo. Todos estão ansiosos para te conhecer, mon petit! A nova coluna será um estouro!

– Que bom que estão com tanta expectativa, Lorie. Só espero corresponder propriamente. – Eu digo, com a voz trêmula.

– Deixe de bobagem, é claro que vai. Andei vendo o seu Blog e você é magnifique. Que escrita! É exatamente o que eu estava procurando. E a sua última postagem me deu uma ideia para a sua primeira matéria. Estou tão animada! Vous êtes mon trésor trouvé[2].

Oui. Até amanhã.

À demain.[3]  

            Ela desliga e eu me deixo cair no banco, esmagada pela ansiedade repentina. Achei que só começaria na revista na segunda-feira e que teria mais tempo para organizar a casa, e a minha cabeça também. Desde que chegamos em São Paulo, há dois dias, eu fiquei completamente envolvida na mudança, buscando não dar atenção para qualquer pensamento que não fosse positivo.

Nos últimos dias eu venho evitando processar alguns acontecimentos e Zula me ajudou muito nisso, já que perto dela ninguém consegue ficar pra baixo, mas agora eu estou aqui, sozinha, refletindo sobre coisas que não queria, e ela não está aqui para ser meu filtro de negatividade.

            Penso em como foi difícil tomar a atitude de finalmente terminar com Victor e como ele ficou transtornado quando coloquei um fim em tudo. Não tinha mais como continuarmos juntos. Por um bom tempo eu fui cega em relação ao seu comportamento e tentei convencer a mim mesma de que não se tratava de um relacionamento tóxico, mas chegamos em um ponto em que não era mais possível negar.

            Suas crises de ciúme se tornaram constantes, ele controlava o que eu vestia, aonde eu ia e com quem eu falava. E eu me sujeitava a isso achando que ele só estava demonstrando o quanto se importava comigo. Cheguei até a me culpar, achando que não estava me doando verdadeiramente ao nosso namoro, pelo menos não tanto quanto ele.

É o que dizem, é mais fácil identificar um relacionamento abusivo quando não se está dentro dele. Zula e Will me alertaram várias vezes, mas eu estava apaixonada. Eu não conseguia ver as intenções por trás das suas ações. Só quando Victor me trancou na casa dele, me proibindo de ir a uma festa com os meus amigos, é que eu caí na real.  

            Ficamos juntos por dois anos e nos últimos meses eu só conseguia pensar em todas as coisas que perdi por causa dele, todos os desaforos que ouvi, ameaças e chantagem emocional. Ele dizia que eu nunca encontraria alguém que me amasse como ele e que me aceitasse do jeito que eu sou. Ele me fez acreditar que era um privilégio que eu, uma garota fora dos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade machista, tivesse um namorado como ele, um cara bonito, popular e que podia ter qualquer mulher que quisesse.

Por muito tempo eu achei que ele era só um pouco ciumento e possessivo, mas que isso não era um problema. Bem, agora eu sei que essa combinação é sempre um problema. Eu não gostei do que vi nos olhos dele da última vez. Pra ser sincera, eu tive tanto medo desde que terminamos que mal saía na rua.

            A oportunidade de me mudar e começar uma vida nova em outra cidade veio na hora certa. Eu precisava de novos ares, assim como queria colocar a maior distância possível entre mim e Victor. Mas quando penso naqueles olhos e na sua promessa de aquilo não era o fim, eu ainda sinto arrepios.

– Morg?!

            Me dou conta de Will balançando a mão na frente dos meus olhos e sua expressão parece preocupada.

– O que foi?

– Eu é que pergunto! Por pouco não perdemos o jantar.

– Ai, meu Deus. As panelas!

            Corro para o fogão e as duas panelas já estão totalmente secas, mas felizmente o fogo já está apagado. Mexo na carne com uma colher para ver se queimou, mas foi realmente por pouco. Já o arroz, pegou bastante no fundo, mas dá pra aproveitar.  

– Eu senti o cheiro do arroz queimando lá do quarto e corri pra apagar. O que aconteceu, Morg?

– Gente, esse parque fica incrível com a luz do final da tarde, vocês têm que ver essas fotos! – Zula entra em casa jogando a chave em cima da mesa e se aproxima de nós. – O que aconteceu? Que cheiro é esse?

– O arroz queimou um pouco porque eu estava com a cabeça no mundo da lua. – Eu digo, fingindo não ser nada demais.

– Você estava realmente em outro mundo quando cheguei aqui. No que estava pensando? – Insiste Will.

– Eu não quero falar sobre isso.

– Mana, você está fugindo desse assunto há muito tempo. Fala logo o que está te perturbando. Bota pra fora. O que o Victor fez? – Zula não vai desistir fácil.

– Ah. – Suspiro. – Ele não fez nada realmente, só promessas, mas o jeito como ele me olhou, cheio de ódio, me fez estremecer por dentro. Só de lembrar me dá uma sensação estranha, uma angústia.

– Você está com medo de que ele tente alguma coisa? – Indaga Zula.

– Eu não sei. Acho que eu posso estar exagerando. Eu gostava muito dele e perceber que Victor estava se transformando em alguém capaz de me deixar com medo ainda é meio surreal.

– Ele não seria maluco de tentar te machucar. O Victor sabe que você está envolta de pessoas que se importam de verdade com você, ele não se meteria a besta de tentar nada. – Diz Will envolvendo meus ombros.

– Will está certo. Além do mais, já estamos longe! Vida nova, Morg. Você fez o certo, terminou e se afastou. Agora vocês vão superar e cada um viver a sua vida. – Zula também me abraça, sempre pacificadora.

– Obrigada, vocês são maravilhosos.

– Nós somos família, você pode contar com a gente pra tudo. – Zula me aperta mais ainda. – Certo, Will?

– Com certeza! A gente te ama e estamos aqui pra cuidar de você. – Ele aperta a minha mão e eu me sinto segura com eles.

– Obrigada, de novo. E podem ficar tranquilos que eu não vou mais ficar pensando no Victor. Minha cabeça já está ocupada. Lorie ligou e disse que eu começo amanhã na revista.

– Já? Uau, que legal. Que horas você precisa estar lá? – Pergunta Will.

– Às oito em ponto. Ela me quer lá pra uma reunião.

– Eu posso te deixar lá e ir pra minha entrevista depois. Pode ser? Depois eu vou te buscar. – Diz Will, já que combinamos que vamos os três dividir o carro.

– Tá ótimo.

– Eu vou com vocês. Quero pegar uns ângulos diferentes da cidade e espalhar meu contato. Também quero ver se já me matriculo naquele curso de fotografia que eu estava vendo pela internet. Eles estão com uma promoção até amanhã. – Zula anuncia, animada.

– Isso vai ser incrível. – Eu digo, feliz por tê-los aqui nesse momento.

– Vai sim. Eu estou sentindo uma energia vibrante! – Zula suspira.

– E eu estou sentindo minha barriga roncar. – Will reclama. – Arrastar móveis queima um tanto de calorias.

– Vou salvar nosso jantar. Vocês colocam a mesa?

– Agora! – Os dois respondem em uníssono e começam a buscar pratos, copos e talheres que já estão arrumados nos armários.

            Nós vamos conseguir. Vamos transformar essa casa em um lar e nos estabelecer profissionalmente. Estamos em São Paulo, o lugar onde sonhos se tornam realidade.

[1] Minha querida, está tudo bem?

[2] Você é meu tesouro encontrado.

[3] Até amanhã.

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