Capítulo 0

                                                                Capítulo 0

                           Não estou com vontade de ir buscar um diário velho, posso ficar em casa? Não? Merda

       
Acordar de um pesadelo tornara-se comum para Pedro. Desde os bizarros sonhos com a raposa vermelha, que agora ele sabia que eram presságios sobre Ana estar viva, e então o evento com os faróis e os dentes na escuridão, suas noites de sono eram perturbadas eventualmente por aberrações do subconsciente. Por mais que o mês de abril estivesse passando, nada parecia mudar em sua mente.

            Ele não sabia explicar os motivos. Antes, acreditava que o excesso de stress e situações absurdas lhe causavam desconfianças de seu julgamento das coisas e que seus desejos internos diziam-lhe enquanto dormia o que ele de verdade queria, ao invés do que se forçava a acreditar como certo. Tinha odiado a garota que agora dormia ao seu lado na cama com uma expressão pacífica no rosto, um meio sorriso tímido desenhado nos lábios rosados. Mas, depois, quando Goblikon, o fantasma de um meio-goblin alquimista surgiu, os sonhos ficaram intensos com a força de socos em seu estômago.

            Sem o fantasma, agora, os sonhos talvez fossem levados a ele pela bizarra entidade que o atacara naquele dia, em sua mente. Dois grandes olhos de fogo, dentes longos como espadas de gigantes, o hálito com aquele cheiro de ferrugem e adocicado que só os predadores máximos possuíam... Era assustador, um estorvo. A cada duas ou três noites os pesadelos iam e vinham, numa escala regular que parecia coordenada. E sempre que ele tocava naquela nova cicatriz em seu rosto, a misteriosa runa Perthro marcada de forma sobrenatural e sangrenta em sua carne, visível para todos, ele não podia esquecer nunca daquele dia. Mas ele não conseguia as respostas que queria, por mais que buscasse estudos e fontes. Era muito frustrante, mas nada podia ser feito a respeito.

            Pensou em falar com Judy, sua amiga fauna que entendia do assunto, sonhos proféticos e coisas do tipo, mas ela estava por demais ocupada com as aulas de dança em seu estúdio e a vida com Gerard, então achou melhor esperar um momento em que ela tivesse uma folga, ou tentaria descobrir sozinho.

            Mas, para descobrir sozinho, ele tinha de saber com o quê estava lidando.

            E ele não sabia nem da metade.

            Pegando seu celular no criado mudo ao lado da cama, checou as horas e viu que eram seis da manhã. O sol ainda não nascera direito em Howlingtown, era cedo demais para ser perturbado assim, mas tarde demais para o pesadelo vir. Normalmente eles aconteciam durante a plena madrugada, em torno das três da manhã, às vezes quando ele mal fechava os olhos, sentia os dedos escuros das “premonições” (na falta de uma palavra melhor para descrever aquelas coisas, ele pensava) invadindo sua mente sonolenta e cansada de um dia de trabalho.

            Não sentia mais sono, então decidiu que era melhor preparar um café da manhã reforçado para ele e Ana. Mas ele se demorou a sair da cama, olhando para a vulpina que ainda dormia e ressonava baixinho.

            Aquele era um sonho do qual ele não queria acordar, caso fosse um sonho. Lembrando-se dos eventos do Dia da Fúria, onde uma cópia exata dela fora usada por Harold Goldstein, ou Lev Bronstein, para manipular suas emoções e quebrar sua vontade. Achando que ela era uma traidora, o rancor que sentiu pela imagem dela só se desfez quando seu amigo fantasma com cara de advogado lhe encaixou novas peças de um quebra cabeças que lhe perseguiu desde aquele dia. Judy dizia, meses atrás, que sentia que a amiga ainda estava viva ou que era inocente, embora o lobisomem lhe desse pouco crédito sobre o assunto, e nem se quer pensava que fosse possível. E agora, com ela ali, parecia que tinha fugido de um abismo de total desespero para um novo mundo de felicade e paz, algo que ele almejava e agora, ele conseguira ao lado dela.

            Levantando-se devagar da cama (que nada mais era que um conjunto de tijolos presos uns aos outros por cimento, como numa placa, e um grande colchão de casal macio cheio de almofadas e lençóis por cima que ele tinha a audácia de chamar de cama) para não acordar a vulpina, vestiu sua calça de moletom e uma camiseta que achou por ali apenas para perceber que era uma camiseta dela, pequena demais para o seu tamanho. Tirou-a, vestiu uma dele, e então foi até a cozinha. O barulho de coisas sendo fuçadas na geladeira acordou seu corvo, Nevasca, o pássaro caolho de penas brancas como neve.

            O corvo crocitou algumas vezes, até chamar a atenção do dono.

– Ei, Nevasca... – Pedro olhou para ele por de baixo do corpo, vendo tudo de cabeça para baixo, pegou uma tira de carne seca e jogou para o pássaro – Faz um pouco de silêncio, a Ana ainda tá dormindo... – E recebeu a resposta na forma de duas bicadas na mesa de madeira onde o pássaro estava parado e observando – Bicho esperto...

            O corvo realmente desenvolvera um grau de inteligência acima do normal desde que voltara dos mortos. Aprendia rápido, obedecia a comandos simples e quase nunca falhava quando lhe eram dadas ordens. Era impressionante, Pedro pensava, o quanto uma morte e renascimento podiam tornar alguém mentalmente evoluído.

            Riu consigo mesmo da mórbida piadinha que fizera algumas vezes, e que resultaram em olhadas feias de Ana, mas elas não duravam muito e logo ela também ria daquela besteira. E, parando para pensar no assunto, a própria Ana vinha recebendo grande atenção e tratada como heroína, assim como ele também até era agora. As pessoas chamavam-na de a “Não Morta”, “Raposa Fantasma”, e coisas do tipo, e ficou bastante popular com as crianças. E ela gostava de assinar alguns autógrafos quando pediam no balcão da loja.

            Crianças... Pensar naquilo dava idéias ao lobisomem. Mas não queria pensar no assunto agora, uma vez que eles acabavam de se estabelecer como um casal propriamente dito, tinham de aproveitar um pouco a privacidade que tinham um com o outro. Se era para que tivessem filhos, que fosse algo natural.

            O lobisomem sonhava acordado enquanto fritava em fogo baixo algumas fatias de presunto e não percebeu a vulpina vindo por trás dele, abraçando seu corpo e escondendo o rosto em suas costas. Ele sorriu ao gesto, sem poder se virar, mas apreciando o carinho.

– Bom dia – Pedro disse enquanto tirava o presunto do fogo e o colocava num pratinho no balcão da pia.

– Hm... Dia... – Ana respondeu ainda sonolenta, bocejando e voltando a esfregar o rosto nas costas dele – Eu senti que você havia acordado muito rápido... O que houve? Outro pesadelo?

– Estamos juntos tem pelo menos um mês e meio e você já sabe exatamente o que há de errado comigo sem eu dizer?

– Coisa de namorada. E raposa. E, além disso – Ela bocejou novamente –, nós estamos juntos a mais tempo, teoricamente.

– Teoricamente, é? – Pedro arqueou uma sobrancelha.

– Desde o Instituto, você sabe.

– Bom, nós éramos amigos lá, muito grudados um no outro. Eu me refiro ao fato de que somos namorados agora, sabe?

– Também – Ana deu de ombros e sentou-se à cadeira perto da mesa, ajeitando-a para poder observar o lobisomem enquanto ele cozinhava – Mas eu aprendi muito sobre você, eu sei quando tem algo te incomodando. Você tenta ocupar a cabeça fazendo coisas triviais pra esquecer o que te incomoda e pensar nisso com calma outra hora. Estou errada?

– Não, você descreveu exatamente como é – Pedro suspirou, satisfeito, sabendo que com ela podia desabafar tudo sempre que precisasse – Sim, foi outro pesadelo. Esse foi particularmente... Doloroso.

– E como foi? – Ana perguntou, subitamente interessada.

– Bom... – Ele tentava se lembrar dos detalhes que teimavam em lhe fugir da memória a cada instante – Eu era um tipo de pássaro, eu pude ver minhas pernas e minhas penas. Eu dificilmente sonho em primeira pessoa, então foi bem estranho. O “eu pássaro” teve as asas arrancas lentamente por cobras com bocas afiadas, as pernas devoradas por lagartos, e eu só podia mover os cotocos que restaram, deitado, de barriga pra cima. Depois, dos cotocos, nasceram filamentos de metal como galhos de árvore, eles iam e vinham muito rápido, até formarem asas e pernas de novo. Mas era doloroso mesmo assim, não pertenciam ao corpo do pássaro.

– Nossa... – A vulpina tremeu por um instante por causa daquilo, sentindo a intensidade daquela loucura violenta – Isso eu poderia muito bem ter visto em algum filme de terror conceitual ou vídeo obscuro de fóruns absurdos da internet.

– Aquelas merdas que os humanos chamam de “arte moderna”?

– Mais ou menos por aí.

– Que horror – Pedro riu, fez um sanduíche com presunto defumado frito e queijo quente, entregou um para a vulpina e comeu o outro – A pior parte é que o eu pássaro gritava com uma voz estranha, pedindo pra que parassem de maltratar ele. E a parte que era eu só assistia.

– É... – Ana concordou antes de comer seu sanduíche – Um horror de fato. O que você acha que pode ser?

– Não tenho a menor idéia, juro – Pedro confessou, os olhos visivelmente cansado daquela coisa de pesadelos – Eu consegui entender depois os sonhos sobre a raposa vermelha, que era você, mas aqueles sonhos ainda guardam umas coisas estranhas a respeito deles que eu não entendi.

– E o que eram? – O interesse dela no assunto era ao mesmo tempo preocupação com o parceiro e curiosidade com os significados dos simbolismos embutidos naquilo tudo.

– Eu esqueci o que eram, mas eu devo ter anotado em algum lugar. Mais tarde eu vou achar as agendas e cadernos onde anotei tudo, e talvez tenham até desenhos.

– Agora que falou em desenhos... Eu me lembro que você havia feito aquele desenho louco na aula de artes do Instituto, o que aconteceu com ele?

– Eu devo ter guardado no depósito, então deve estar seguro. Por que a pergunta?

– Eu queria emoldurar ele e colocar na parede da sala.

– Tu jura?

            Ana riu da incredulidade do lobisomem, e passaram a manhã que nascia conversando sobre algumas trivialidades. Era fim de abril, e seria um dia cheio a partir do momento em que todas as portas se abrissem e todos estivessem acordados em Howligntown.

            Mas Pedro queria adiar mais uma vez seu compromisso.

– E como foi a luta do fim de semana, Cap? – Pedro perguntou enquanto mexia nas carnes chiando na grelha quente com um longo garfo.

– Cara – Capivara abaixou os óculos escuros que usava nos rosto, mudou a posição das pernas na cadeira de praia onde estava sentado e olhou para o amigo – Você me disse que viu a luta pela TV, não foi?

– Exato – O lobisomem confirmou.

– Então tá me perguntando por quê?

– Uma coisa é: eu assistir o evento através de imagens isométricas num programa de TV – O lobisomem explicou enquanto cortava algumas linguiças – Outra completamente diferente é saber de você, o cara que tava lá dando uma surra no oponente.

– A lógica dele faz sentido – Yuri, que chagava agora com um grande cooler de bebidas azul, comentou com ambos enquanto depositava o cooler ao lado das cadeiras – Eu vi a luta também e achei do caralho, mas quero saber como é que rolou contigo lá na arena.

– E também eu quero saber se meu treinamento te fez algo bom na íntegra – Heitor completou o argumento de todos, enquanto pegava um espeto de madeira e cutucava alguns pedaços de carne assada na grelha.

– Tá bem, tá bem – Capivara lançou as mãos ao alto, num gesto de rendição, enquanto se arrumava na cadeira para ficar mais confortável – Seguinte, vocês viram pela luta que o cara era rápido, não é? – Todos concordaram com um aceno de cabeça – Só que vocês não têm noção de quão rápido. Cada vez que eu me desviava dos socos dele era como se alguém estivesse atirando em mim e puxando as balas de volta, a força do impacto do vento quase me tirando a concentração. E eu sabia que aqueles socos, se raspassem minha pele, fariam cortes. O problema é que quando ele acertava era até pior que bolas de queimado, aquelas de borracha.

– Caralho, no duro? – Pedro perguntou depois que os amigos fizeram um coletivo chiado chupando os dentes, externando coletivamente a dor que sabiam ser real por experiências próprias.

– Mais duro do que aquelas bolas de borracha ridiculamente inchadas de ar e prontas pra te arrancar uma orelha – O orc confirmou – Cada soco era uma tortura quando eu me defendia, sério. Mas deu pra aguentar, eu sabia que aqueles socos iam me deixar pilhado pra revidar e quando eu comecei a bater, ele não soube o que fazer.

– O adversário era o tal Kestle, não era? – Heitor perguntou.

– Exato – O orc confirmou novamente – Ele é famoso por bater de frente muito rápido e não espera contra ataques mais lentos, ele é quem toma a liderança pra contra atacar sem trégua. Um inimigo que espera e bate na melhor oportunidade que encontra é algo que ele desconhece. Ele conseguiu defender os primeiros socos, os chutes, mas depois já não via de onde vinham os meus golpes.

– Teu posicionamento dos pés foi bom pra caramba – Yuri elogiou.

– Não fosse aquilo eu teria caído e feito um vexame do caralho – Capivara concordou.

– A arte marcial dos orcs é bem violenta – Heitor comentou – São golpes que vão em linha reta e o objetivo é sempre empurrar o inimigo pra trás.

– Sim, exato – Capivara concordou de novo – Socos, joelhadas, chutes bem localizados e retos, eu consegui causar um estrago enorme nele. Meu fôlego tava queimando meus pulmões àquela altura. O último soco eu precisei pensar muito antes de atacar direto, ele tava louco a ponto de começar a socar rápido e tentar me acertar a esmo.

– Eu lembro daquilo – Pedro comentou enquanto cortava algumas fatias de carne numa tábua de madeira e jogava para o corvo Nevasca – Parecia uma metralhadora de socos, ele perdeu a cabeça e começou a bater sem parar.

– Por isso eu precisei acertar o rim direito dele antes de socar o nariz dele com força total – Capivara encerrou a narrativa – Eu só espero que ele não queira revanche. Refazer aquela luta vai ser um pesadelo, mas valeu a pena. Vou precisar me preparar pra próxima luta daqui a umas semanas.

– O circuito da Liga Inferior tá pra terminar já, né? – Heitor perguntou enquanto abria uma latinha de chá gelado.

– Sim, as próximas oito lutas vão ser classificatórias até a última, que vai decidir quem vai pegar vaga na Superior.

– Bom, muito bom—Pedro concordou – As coisas só tendem a melhorar daqui pra frente então, Cap.

– Assim espero, de verdade – O orc concordou com um suspiro aliviado.

– Já imaginaram se alguma loucura acontece e a gente precisasse bancar o herói de novo? – Yuri comentou, rindo consigo mesmo conforme os amigos reclamavam e pediam para que calasse a boca.

– Olha só meu querido – Pedro disse depois de mastigar algumas fatias de carne – Eu não quero saber de putaria nenhuma envolvendo vilões, corporações do mal, doidos querendo vingança nem nada do tipo, não basta os pesadelos que eu tenho toda a noite me tirando do meu precioso sono. Minha vida tá boa assim mesmo e vai ficar assim.

            Mal tinha o lobisomem terminado de falar quando ouviu a voz de Ana vindo do apartamento, inquisidora e impaciente. Ele encolheu os ombros um pouco, fechou a cara e começou a reclamar baixinho.

– Pedro! Vambora! Você não ia ao armazém de inventário buscar aquele diário velho? Cacete, já esperou semanas e ficou adiando demais! – Os amigos riram conforme a garota cobrava do parceiro – Vou esperar você na porta da loja!

– O que é que tá rolando? – Capivara perguntou com um sorrisinho besta.

– Uma longa história, coisa do Goblikon. Eu explico quando voltar – Ele ia saindo para descer ao apartamento quando se virou gritando – E não se atrevam a comer tudo sem mim, seus malditos! – E saiu.

                                                           ****

            Através da janela do táxi, Pedro via a cidade com novas construções aqui e ali surgindo eventualmente, a arquitetura lembrando as construções tribais dos trolls da floresta que se juntaram à civilização após anos e anos de acordos políticos e visitas diplomáticas. Levou muito tempo, mas agora os trolls podiam se integrar à civilização como todos os outros, sem serem marginalizados ou ficarem exclusivamente presos às suas tribos e comunidades, que não abandonaram de todo.

            As construções apareciam em tempo recorde com a ajuda dos myrmekos. O contraste dos corpos magros, mas musculosos, com tatuagens tribais e ossos enfiados nas peles dos trolls, as roupas se misturando entre coisas mais “modernas” como calças e camisetas de bandas de black metal ou jazz com trajes tribais como capas e tangas, junto com os corpos altos, de muitos braços e cores vivas dos muitos metamorfos insetos de muitas junções nos braços e pernas e suas carapaças brilhando ao sol, seus exoesqueletos os dando uma compleição física distinta de todo o resto.

            Os myrmekos, por sua vez, viviam em colônias subterrâneas ou construídas nos jardins e parques da Howligntown e outras cidades ao redor do mundo civilizado. Onde quer que existissem eles agora cumpriam o papel de operários, tecelões e lenhadores, eram eficientes em várias funções e trabalhos onde precisavam de mais de uma mão para ajudarem o equipes pequenas ou com pessoas inexperientes. Os myrmekos eram diligentes em suas tarefas, sempre concentrados e trabalhando em equipe de forma coordenada ao máximo, mas não era de se surpreender com tal façanha, uma vez que todos eles, separados em suas espécies, como formigas ou besouros ou abelhas, partilhavam uma linha de comunicação mental, apelidada de “mente de colmeia”, um nome apropriado que também agia como piada interna entre outros monstros.

            A raça dos insetos não se importava de todo, até gostavam da piada. Mas sentiam muito mais uma grande alegria por finalmente serem donos de suas mentes e memórias novamente, pouco a pouco recuperando a consciência e controlando seus instintos de invertebrados.

            Pedro pensava naquelas coisas para não ter de pensar no objetivo que o forçava a ir ao armazém da polícia e do judiciário da cidade. Ambos ficavam no mesmo lugar devido a problemas relacionados a inventário de herança e discussões ou brigas familiares pelos bens do morto. Essas coisas eram mais comuns do que se poderia esperar, uma vez que algumas famílias de monstros tinham raízes ou ligações com humanos, e sabendo que os monstros tinham heranças gordas em tesouros ou coisas de valores incalculáveis por métodos comuns, os humanos tentavam a todo custo obter esses tesouros e heranças.

            Então, para assegurar que o inventário legal da herança de um morto ficasse segura e intocada até que as brigas judiciais terminassem e os acordos fossem fechados, todos os itens seriam mantidos em cofres, se assim previamente o dono original pediu em documentação legal.

            E não foi diferente com Giovanni Doriani Goblikon, o alquimista meio-goblin que se parecia com um advogado. Pedro ainda usava o anel dele, que havia sido enterrado com o corpo e abrigou, no ano passado, o fantasma do estranho personagem da cidade. Ele fora de boa ajuda e crucial valor em vários pontos da investigação dos cinco foragidos, a serviço de Alexander Maximov Blake, um antigo inimigo do lobisomem quando era estudante do Instituto Acadêmico Mãe Lua. O fantasma tinha grandes poderes e ajudou a Pedro a usar sua magia latente de forma mais eficiente, mas agora se fora.

            Em um último gesto de sua estranha meia vida, ele sacrificou sua essência de fantasma e sua energia para trazer Nevasca de volta a vida, e agora o animal exibia um olho azul com luzes verdes chamejantes. E Pedro às vezes tinha um brilho semelhante no olho direito quando usava as runas. O fantasma havia anotado um endereço e algumas coisas, como números, num papel, como uma espécie de permissão. Mas permissão para quê, o lobisomem não sabia, e nem tinha vontade de saber.

            Há semanas ele evitava o compromisso de ir buscar o diário, mesmo que Ana e Loyd o motivassem e incitassem demais. Loyd por razão de ser uma espécie de mentor para o jovem lobisomem àquela altura, e Ana por mera curiosidade de saber a respeito daquele objeto que pertenceu a alguém tão singular. Mas ele não tinha vontade de ir buscar tão cedo aquele diário porque tinha uma estranha sensação de que, no momento em que colocasse as mãos nele, coisas começariam a acontecer que tirariam sua paz. E o lobisomem queria proteger o sossego que conquistou ao lado da mulher que amava a todo custo, independente de que o diário fosse como o último desejo de um fantasma.

            Sua paranóia era justificada pelos acontecimentos passados, primeiro seu desejo em localizar um assassino em série que se descobriu ser um agente de uma empresa maligna, e depois um crustáceo mutante que era filho de dois inimigos da época em que era estudante. Quisera que não tivesse se envolvido, mas, caso não o tivesse, ele não teria amadurecido nem conquistado coisas das quais agora daria falta.

            A posição que conquistou, o respeito dos outros que ganhou, a confiança que as pessoas agora depositam nele. E, se não tivesse se envolvido na luta contra Alexander uma vez mais, jamais teria reencontrado a vulpina que agora sentava ao seu lado e apertada delicadamente sua mão direita e calejada.

            Mas, por agora, queria manter a paz e a vida pacata que conquistara ao quase morrer duas vezes em um curto prazo de alguns meses. E algo internamente dentro de si dizia que assim que aquele diário fosse removido da gaveta protegida onde estava a tanto tempo, certas engrenagens começariam a andar e coisas bizarras aconteceriam. No entanto se continuasse postergando a aquisição daquele objeto, sua namorada e seu mentor tornariam a atormentá-lo sem parar, ao ponto de que, ele sabia que um deles buscaria o objeto e o entregaria. De um jeito ou de outro, as engrenagens tinham de continuar girando sem parar, ele querendo ou não ser o operador da alavanca a fazê-las funcionar.

            Ele só percebeu que o táxi havia chegado ao local quando Ana cutucou seu ombro levemente, tirando o lobisomem de seus devaneios. Ele desceu do carro e pagou ao motorista o valor da corrida, e a vulpina o esperava na calçada.

– Eu vou aproveitar e passar numa loja de especiarias que vi pela rua – Ana falou enquanto andavam juntos alguns metros – Eu queria experimentar alguns temperos num ensopado, pode ser? Eu sei que você adora ensopado, especialmente de peixe.

– Por mim tudo bem, posso te encontrar na tal loja, então? – Pedro perguntou com ar entediado.

– Deve, se não vou ter que buscar você feito uma criança.

– Tô pagando pra ver, mocinha – Pedro roubou um beijo de Ana e saiu correndo em direção ao seu objetivo, deixando a garota para trás rindo de nervoso.

            O grande prédio ficava ao lado de um enorme banco, ambos contrastando as cores um do outro: o armazém cinzento e preto e o banco em cores brancas de mármore e dourado, prateado, quase ofuscante de se olhar diretamente. Havia um bom número de pessoas indo e vindo pela calçada, entrando e saindo de ambos os prédios, e Pedro parou para olhar um pouco a movimentação antes de entrar no armazém.

            O lugar parecia-se muito com uma repartição do departamento de polícia central, com seus balcões, oficiais de uniformes andando pelos corredores, carregando copinhos de bebidas ou caixas com lanches, a secretária com cara de tédio atendendo vez ou outra algum requerente de algum pedido, fazendo agendamentos e atendendo ligações que, pelo que ele pôde ver a distância, pareciam enfadonhas. Não parecia que ela daria trabalho para lhe atender, então achou melhor andar em direção a ela e explicar a situação.

            Quando se aproximou o bastante dela, percebeu que era uma mulher anã robusta e de voz rabugenta. “Como se trabalhar atendendo telefones sem parar não deixasse qualquer um de mau humor”, ele pensou enquanto se diminuía o passo até estar de frente com ela.

– Eu vim buscar o diário de Giovanni Dorianni Goblikon – Ele anunciou devagar.

– Ahn... Sei, sei, querido – A anã respondeu enquanto pegava uma prancheta e uma caneta e os entregava ao lobisomem – Preencha esse formulário, por favor.

– Como é? – O lobisomem pegou o formulário e ficou olhando com grande confusão.

– E espere na fila, depois que terminar de preencher as informações de remoção de objeto.

– Minha filha, eu tô aqui já com hora marcada pra buscar o maldito diário, não sei que história é essa de preencher formulário.

– Olha só, baixinho – Vindo de uma anã, o comentário soava por demais irônico – Eu não dou a mínima pra horário marcado, você só vai pegar o objeto em questão se preencher o formulário e esperar na fila. São as regras, ou segue ou se manda.

– Vai jogar duro comigo mesmo?

– É um desafio, pivete?

– Heh, só um segundo – Pedro sorriu daquele jeito malicioso que sempre fazia quando tramava algo. Pegou o celular em seu bolso, discou um número e esperou, até que Loyd atendeu na outra linha e o jovem lobisomem colocou no viva voz – E aí, Loyd. Posso te perguntar uma coisa?

– O que foi, garoto? – Ao ouvir a voz do inspetor de polícia mais famoso e temido da cidade, a atendente gelou.

– Eu tô aqui no armazém, saca? Pra buscar o diário do Goblikon que você tanto me encheu o saco pra pegar de uma vez. Só que eu tô com um probleminha aqui.

– Que tipo de problema é? Não me diga que Martha pediu pra que assinasse um formulário como ela sempre faz... – Loyd parecia exausto daquela situação, dando a entender que as reclamações da mesma eram frequentes.

– Oh, o nome dela é Martha? Que bacana, pode dar um alô pra ela aqui? – E Pedro virou o celular na direção da recepcionista, que se escondia atrás do balcão.

– Eu vou chamar o encarregado do cofre e do inventário! – Ela guinchou atrás de seu esconderijo.

– Você é um monstro, garoto – Loyd riu sarcasticamente enquanto ouvia os chiados da atendente aterrorizada.

– Todos somos, meu velho – E Pedro desligou, o sorriso em seu rosto ainda mais atrevido com o resultado.

            Não demorou muito para o tal encarregado aparecer, depois que Martha ligou para o ramal dele e ficou sorrindo forçosamente numa tentativa de parecer educada para com o lobisomem. Até mesmo tentou puxar conversa, rindo nervosamente e gaguejando aqui e ali em suas falações, mas Pedro deu pouca importância: primeiras impressões contavam muito para ele, e a impressão que teve da recepcionista era a pior possível, e agora ele só tinha indiferença para com ela.

            Mas sua indiferença sumiu quando viu se aproximando o tal encarregado: o homem-rato Escorrego. Grande foi sua surpresa ao ver o “colega” novamente (na falta de uma descrição melhor para o homem que ele caçou e espancou, depois pagou bebidas e comida num bordel cheio de garotas seminuas, pois certamente eles não eram amigos). Mas Escorrego parecia até mesmo contente em encontrar o lobisomem novamente, apertando-lhe as mãos e sorrindo, rindo alto e fazendo várias perguntas.

            Sem saber bem como reagir, Pedro apenas acenou com a cabeça e explicou que queria terminar logo o que viera fazer, e Escorrego o guiou para o local onde o diário estava guardado. No caminho, puderam conversar com mais calma.

– O que, exatamente, você faz aqui? – Pedro perguntou em voz baixa – Se me lembro bem você era trainee na sessão de produção de apetrechos pra investigação sigilosa e detetives do departamento de polícia.

– Dito e feito, xará! Eu tava! – E Escorrego riu mais uma vez – Mesmo que eu estivesse mandando ver na sessão criativa e de produção, acharam que seria uma boa me colocar aqui, pra cuidar de bugigangas velhas! – E riu mais uma vez, o som estranho de alguém que tinha um fôlego ruim.

– Certo... E por quê? – Pedro parecia cético quanto a qualquer motivo que fosse passível de deixar um homem-rato sorrateiro como ele cuidando de objetos de valor.

– Bom, eu tenho memória fotográfica – Escorrego deu de ombros – O lance é que eu me lembro exatamente onde cada objeto foi guardado aqui, xará. Me deram várias listas de inventário, até mesmo do cofre do banco ao lado onde os ricaços guardam suas frescuras e bens raríssimos e valiosos!

– Como é?

– O banco e o armazém da polícia dividem o mesmo terreno, o espaço é separado ao meio pela clara cor diferenciada de ambos os lados. Se é pra economizar tempo por causa das paradas judiciarias desses ricaços, não sei. Nem me interessa.

– Faz sentido, eu acho...

– Esse trampo só tem um ponto negativo.

– E que seria...?

– Tenho que usar meu nome verdadeiro, vê se pode!

– Isso não parece problema – Pedro refletiu, olhando para o homem-rato com surpresa – Sério, qual o problema em usar seu nome?

– E que raios de respeito você acha que eu vou ter na corporação policial com o nome de Mitch Connor?? – Escorrego parecia bem irritado e decepcionado com aquilo.

– Teu nome é Mitch?

– Infelizmente – Escorrego suspirou de tristeza, algo que Pedro considerou um exagero enorme – Parece o nome que você dá pra tua mão!

– Por que raios eu vou dar um nome pra minha mão? – Pedro retrucou àquela pergunta estranha.

– E eu vou lá saber? Me diz você!

– Você quem começou com essa besteira.

– Que besteira?

            Pedro não sabia dizer se Escorrego, ou Mitch, estava curtindo com sua cara àquela altura. Dando de ombros e resmungando, pediu para que prosseguissem com o objetivo.

            Mas a conversa não havia terminado de todo. Escorrego ficava encarando o rosto do lobisomem por alguns momentos, até criar coragem de perguntar.

– E o que é essa coisa no teu rosto? Fez a barba bêbado?

– Eu não bebo – Pedro respondeu.

– E se diverte como?

– Não preciso de bebida.

– Hah! Até parece! – Escorrego riu novamente – Mas, falando sério, xará.

– Bem, a cicatriz antes era normal, ganhei numa briga.

– E que briga! Pra ficar desse jeito...

– Ferimento de prata.

– Ai! – Até mesmo para Escorrego, um homem-rato que dificilmente se sentia ligado às suas tradições mais do que aprender os feitiços sorrateiros dos ratos, conhecia os tabus dos lobisomens quanto à prata.

– E depois, uma entidade espiritual me marcou como quem marca gado.

– Caraca, o que você andou fazendo depois de me dar uns socos?

– Provavelmente algo bem diferente do que você andou fazendo depois de eu te deixar sozinho naquele bordel.

            Os dois riram daquela piada interna e mantiveram o passo pelos corredores grandes cinzentos. Chegaram a uma parede com uma porta pequena e cinzenta. Escorrego digitou uma senha brevemente, ouviu-se um click e a porta se abriu. O homem-rato entrou, chamou o lobisomem e pôs-se a procurar pela caixa.

            Pedro observava enquanto o homem-rato subia as prateleiras como um exímio alpinista, indo atrás de um local alto e apenas acessível com uma escada que havia ali. E ele desceu num salto que foi tão leve que mal emitiu ruído ao tocar no chão. Era fato, Escorrego tinha um metro e oitenta e cinco de altura, não era muito forte fisicamente, mas era atlético, no entanto, e o lobisomem presumia que devia ter na base dos oitenta quilos. Não emitir nenhum ruído sequer conforme se movia era uma habilidade que poucos monstros tinham, mas, cair sem nem mesmo causar o baque surdo do impacto de um corpo bípede era uma novidade.

            E o homem-rato trazia em suas mãos uma caixa de madeira e ferro com um cadeado verde, e uma chave que pertencia ao cadeado. Antes de entregá-la ao lobisomem, ele retirou do bolso um pequeno papel.

– Preciso que assine isso aqui, xará. Protocolo de remoção, normas dos cabeças do departamento.

– Isso aqui eu não tenho problema em assinar – Pedro deu de ombros, puxando uma caneta que carregava no bolso de trás.

– Não encana com a Martha – Escorrego riu um pouco antes de acender um cigarro e fumar boas baforadas – Ela é sempre daquele jeito porque o noivo não quer marcar o casamento agora.

– E precisa descontar em gente inocente?

– Boa pergunta, xará. O problema é que não tenho tripas pra responder.

            Pedro riu com Escorrego daquilo enquanto entregava o formulário de remoção de objeto, e saiu sem precisar da ajuda do homem-rato. Carregando em baixo do braço direito a caixa de madeira, a chave para abri-la num dos bolsos, saiu do armazém e procurou pela loja de especiarias que Ana lhe falara.

            Andou algumas quadras até achar o prédio, uma construção baixa, mas muito larga e pintada em cores amarelas e terrosas, coisa que o deixou um pouco desnorteado. Combinações de cores claras e cores mais neutras sempre o deixavam com uma sensação de perda de direção. Mercados no geral com cores nessas combinações o deixavam com uma sensação de náusea.

            Não sabia explicar o motivo disso, então apenas evitava ficar muito tempo em locais assim. E procurar por Ana seria uma tarefa na qual teria de confiar exclusivamente em seu olfato. O problema era identificá-la no meio de tantos temperos fortes, condimentos e coisas de forte odor. Aquela loja era um verdadeiro festival de fragrâncias extravagantes e exóticas, cada uma com um perfume diferente e mais intenso. Pimentas, ervas, amostras de cozidos, temperos secos sendo feitos em balcões... Tudo relacionado a especiarias se encontravam ali.

            O lobisomem deu sorte de achar a namorada na praça de alimentação (ele sequer imaginava que aquele lugar tivesse algo desse naipe) com pratos de comida de aparência bizarra e copos de limonada numa mesa. Ela acenou brevemente para ele, que seguiu andando devagar até chegar à mesa. Sentou-se, trocou um breve beijo com a vulpina e olhou atentamente para a comida. Parecia ser um tipo de sanduíche ou coisa semelhante com muito recheio de carne e um cheiro forte que parecia pimenta.

– E o que viria a ser isso aqui? – Ele perguntou, olhando a massa gigante de pão e carne e temperos.

– Sanduíche de lebre, pelo que me disseram – Ana deu de ombros – Eu gostei da idéia de experimentar algo diferente, então pedi um pra você.

– É... Mas deve ser a receita da casa porque a quantidade de tempero que isso tem não é brincadeira.

– Eu sei, eu também senti o cheiro. Mas, me conta, essa caixa aí tem a ver com o diário, não é?

– Basicamente – Pedro confirmou ao depositar a caixa de madeira na mesa e agarrar o sanduíche com as duas mãos – Uma chave pra abrir a caixa, e dentro da caixa, o diário de Giovanni Dorianni Goblikon.

– Esse sobrenome é vagamente italiano... – Ana respondeu enquanto comia seu sanduíche com grandes goles da limonada gelada que ela pediu.

– Também percebi, o próprio fantasma falou que a família dele tinha raízes sicilianas.

– Eu não ficaria surpreso se ele tivesse sangue etrusco.

– Etrusco... – Pedro comentou enquanto mastigava o sanduíche. A carne era macia e desmanchava facilmente, mas era temperada ao máximo.

– As tribos antigas do que antes chamavam de Itália, agora chamadas de Pacha, que é o nome secundário de Fufluns, um deus dos vinhos, semelhante ao Dionísio grego.

– Isso é bem intrincado, pra ser honesto.

– Eu tenho sangue itálico, estudei essas coisas enquanto vivi com minha tia-avó antes de entrar pro Instituto.

– E eu jurava que você tinha sangue nipônico...

– Raposas vermelhas e o povo vulpe existem em boa parte da Europa e Ásia, ou no que restou dela...

            E continuaram conversando sobre geografia, tribos antigas, folclore e costumes. Pedro sentia falta de conversar assim com Ana, e desde que recuperara a garota da base militar meses atrás, conseguiu reestabelecer essa rotina em sua vida.

            E eles continuaram conversando na volta, enquanto andavam, sem perceberem que o anel verde do lobisomem ressonava suavemente junto com o diário dentro da caixa de madeira e da chave no bolso de sua jaqueta.

            Mas aquilo, nem de longe, seria um estopim para coisas que já estavam em movimento. Ele só não sabia daquilo, ainda, e seria tarde demais quando percebesse.

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