Prólogo

                                                                 Prólogo

            Escuridão. Se sonhava ou não, ela não sabia dizer. Sua mente simplesmente processava o que acontecia com ela e ao seu redor num modo automático, pois ela mesma não compreendia mais nada.

            Ela se lembrava de ter feito coisas, coisas em favor de sua ideologia e por aquilo em que acreditava. Por que a julgaram errada? Ela lutava por um futuro melhor para todos os monstros, era o que ela mais acreditava. Será que a prenderam para impedi-la de espalhar a palavra? É, era provável.

            Ao longo da história fizeram isso repetidas vezes com vários agitadores de revolução contra a máquina, contra a lei suprema que comandava as rédeas da civilização, seja ela de monstros ou humanos. Sim, tentaram calá-la, silenciá-la e mandaram-na para a pior prisão já vista, contrataram pessoas lá dentro para destruir seu corpo, seu espírito, sua mente e todo o resto, abusando de tudo o que ela tinha a oferecer em prazeres carnais não autorizados. Enfraquecê-la e deixá-la fraca demais para lutar, para resistir.

            E o pesadelo enquanto estava acordada foi demais, sua mente se partiu como um espelho em milhões de pedacinhos. As funções básicas ainda funcionavam, mas qualquer coisa mais complexa do que comer, se lavar, trocar de roupa, era impossível sem ajuda ou direcionamento. Ela era uma casca vazia, não tinha mais o desejo de lutar por algo quando este algo nada fez por ela quando precisou, quando gritou de dor e chorou por horas e horas e horas incontáveis. Seu coração ainda batia, mas não havia nenhum sentimento ali. Sua mente ainda tinha lapsos de lucidez, mas apenas agiam em prol de sua própria sobrevivência.

            Ela agora era um fantoche para quem quer que quisesse usá-la. E não foi surpresa quando os guardas vieram buscar por ela em sua cela. Ela não podia resistir e não tinha como se proteger. Não suspeitou de que quem a queria tinha objetivos estranhos, diferentes da rotina normal.

            Agora, deitada numa mesa com rodinhas e com todos os seus membros presos para não fugir, ela se sentia mais como uma mercadoria. Mas, para onde fugiria? Não tinha ninguém, seus pais a odiavam, seus irmãos e irmãs a desprezavam, e seus amigos sumiram um a um. E como fugiria? Suas asas já não tinham mais penas como antigamente, cinzentas e brancas, algumas negras, e as poucas que ainda restavam eram feias, sem cuidados, envelhecidas e manchadas com sangue ou outros fluídos mais impuros e vulgares.

            Era cativa há muitos e muitos dias daqueles estranhos que a recolheram das mãos dos guardas. Não tinha para onde correr, ou voar. Estava a serviço daqueles estranhos de roupas brancas ou ternos negros que ela podia ver quando sentia-se parcialmente desperta. Seus olhos viam borrões indistintos, mas sua mente fazia o trabalho de separar quem era quem, formas singulares, mas nada muito claro.

            E agora, um deles, um homem alto e louro falava com o pessoal de branco. Ela podia ouvir algumas coisas, e sem saber bem o motivo, ela tentou prestar atenção ao que diziam.

– Então... – Dizia o louro – Ele fugiu. Uma lástima, eu vejo. Certas coisas não podem ser evitadas quando lidamos com o desconhecido, não sabíamos que ele usava tais tipos de truques.

– Eu lhe asseguro, senhor – Respondeu um dos homens de branco – Nós vamos localizá-lo de pronto e acabar com qualquer chance de ele contar a alguém qualquer coisa.

– Quem iria acreditar nele? – Retrucou o louro, e ela pôde ouvir em sua voz uma estranha intenção... Só não sabia dizer qual era.

– Ainda assim, senhor, era um investimento caro e um dos nossos melhores protótipos. Ele não pode ir muito longe, tem de viajar apenas a noite, eu afirmo que vamos capturá-lo e trazer o fugitivo de volta ao projeto.

– Bom, já que insiste... Mas eu tenho de te alertar, August, de que... – E naquele momento ela ouviu a voz do louro tornar-se fria, baixa, vil como o silvo de uma cobra pronta para injetar grandes doses de veneno – Falhe mais uma vez comigo, e sua família será forçada a tirar férias permanentes. Entendeu?

            O homem de branco assentiu, tremendo e sem dizer mais nada. Aquele louro era... Mau. Ele era alguém de grande poder e muita malignidade. Mas o que mais a perturbava era que ela já ouvira aquele estranho tom de maldade numa voz, mas onde...?

            Sua mesa de rodinhas começou a andar novamente. Um corredor, largo e longo se estendia com luzes acima. As luzes a deixavam tonta, e ela precisou fechar os olhos. Quando fez isso, ouviu os homens vestidos de branco falarem coisas estranhas sobre “medir a pressão” e “avaliar o pulso”, além de falarem sobre injeções antes da operação. Ao que o louro que os seguia respondeu que não seria necessário muita coisa, pois fazia parte do projeto.

            “Projeto... Que palavra esquisita”, ela pensou.

            Uma sala, grande, se abriu ao redor dela. Ela podia sentir que o espaço ao seu redor se expandira muito e que os homens de branco se espalhavam, enquanto o estranho e malvado louro buscava um objeto retangular de madeira. Ele leu um nome naquele objeto, então talvez fosse uma prancheta.

– Vento de Névoa... Era seu sobrenome, não é, querida? – Ele falava com ela, e ela não sabia se o louro esperava uma resposta – Bom, tanto faz, não me importa. Seus crimes são impressionantes pra uma adolescente de meros dezessete anos. Hilário é achar que seu nome foi de uma criminosa política... Que comédia, garota. Já pensou em apresentar shows de humor? Você seria ótima contando piadas da vida pessoal que teve, um verdadeiro espetáculo o que você fez em tão pouco tempo – Ele ia e vinha, aquela voz esquisita e maligna fazendo pouco caso dela e de sua vida idealista. Fria, venenosa e cruel, aquela voz teria feito seus amigos fugirem no mesmo instante – Bem, eu devo dizer que, infelizmente pra você sua vida não ia durar muito mais, não, então pode esquecer a carreira de humorista. E você só tinha duas opções: execução ou isso aqui, mas dadas as circunstâncias da sua psique, você não ia muito longe em qualquer coisa e não tinha muita chance de escolher. Então, cá está você. Legal, não é?

            Ele riu um pouquinho, provocando alguns risinhos dos homens de branco. Eles iam e vinham pela sala, andando ocupados como formigas e carregavam coisas que faziam sons metálicos.

            O louro se aproximou dela, sentou-se à mesa e ficou olhando-a de cima abaixo. A um comando dele, os homens de branco removeram aquele avental esquisito que ela vestia, um tipo de roupão de hospital, expondo seu corpo magro e maltratado numa nudez de dar pena. Mas ela não podia resistir. E por que resistiria? Não era isso que faziam a ela todos os dias na cadeia?

            Ali, no entanto, não era o que ia acontecer a ela. O louro voltou a falar num tom mais condescendente, mas ainda cruel.

– Devo te chamar de quê? Hilly? Lary? Não, não posso te chamar de Lary, você é uma garota. Francamente, eu nem mesmo me importo com o que você seja, o que eu vejo nessa maca é meramente um monstro, uma ferramenta primitiva e esquisita, sabe? Mas, sinceramente, eu acho que você merece uma segunda chance de funcionar como a ferramenta que queria ser antes. Você vai ter essa chance porque eu vou lhe conceder isso. Entendeu? Eu. E ninguém mais, então não se esqueça.

– Senhor, nós começaremos a cirurgia em breve.

– Eu só preciso de mais alguns momentinhos, pode ser? Não me apresse, merda, sou eu que pago seu salário, idiota – O louro não parecia irritado, era quase infantil – Onde eu estava? Ah sim, é claro. Você, uma harpia, foi privada de voar por causa dos maus tratos, uma pena o que te fizeram. Entendeu? Pena? Eu sei, é hilário... – Ele ria da própria piada e forçou os outros a rirem. Era cheio de si, uma insanidade logo abaixo da pele só esperando para se libertar. Onde ela ouvira aquele tom? Ela tinha de continuar ouvindo a voz dele para descobrir – Você vai voar de novo, garota. Vai voar e fazer parte de um trabalho muito maior do que você defendia antes. Aquilo era peixe pequeno se comparado ao que eu te ofereço. Você será a liderança de um movimento que trará melhores condições para todos, eu prometo – E ele deu um sinal aos homens de branco conforme se levantava e saía da sala.

            Ela sentiu a picada, as várias picadas em locais de seu corpo onde ela supunha estarem veias sanguíneas. Mas, para sua surpresa, não eram anestésicos que injetaram nela. Ela ainda estava parcialmente desperta, sua mente ainda metade na defensiva e metade acordada para ver o mundo assustador ao redor... Um mundo repleto de facas, serras, ferramentas afiadas que se aproximavam de seus braços e pernas.

            Não, aquelas amarras não eram para impedi-la de fugir deles enquanto estivesse cativa. Era para impedir que ela fugisse quando o momento certo chegasse. E chegou com cortes, rasgando sua carne e lentamente abrindo pele, músculo e tendão. Serras que lhe partiam os ossos.

            A dor lancinante e cruel, a dor a forçou a gritar o mais alto que pôde. Seus gritos de ave de rapina eram poderosos, e ela jurava que havia nocauteado alguns dos homens de branco ao redor dela. Mas outros surgiam e tomavam seus lugares no trabalho de mutilar seu corpo frágil.

            E ela gritava. Gritava e implorava para que parassem. Infelizmente, enquanto gritava por misericórdia, ela finalmente se lembrou onde havia ouvido aquele tom maligno combinado em uma voz.

            Ela se lembrou, enquanto apagava lentamente em um desmaio de exaustão e dor. A perda de sangue foi anestésico suficiente para ela, que ainda teimava em gritar mais um pouco antes de desmaiar.

            Ela se lembrou onde ouvira maldade na voz de alguém, olhando para o alto enquanto sua mente desaparecia e sua visão se enchia com estranhas e borradas construções metálicas, junções esquisitas e bizarras que chegavam cada vez mais perto.

            Ela ouvira aquela maldade em sua própria voz, quando lutava por uma causa que lhe disseram que era nobre.

            Mas era tarde demais para se arrepender.

            E a harpia deu seu mergulho na escuridão da inconsciência mais uma vez, para esquecer-se de que ela fora como o louro um dia. E que tornaria a ser como ele novamente.

            Pois era tudo o que sabia fazer.

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