Capítulo 4

O café da manhã em família foi maravilhoso, com direito a minha amada mortadela e outras gostosuras que fartavam a mesa. Tudo estava ocorrendo bem. As conversas fluíam entre todos nós. Havia um interesse sobre o meu trabalho, ultimamente, e a vida corporativa. Adriana, minha irmã, sempre ficava responsável por nos contar histórias que presenciou durante sua atuação clínica. Havia as mais tensas e as mais bonitas. Sem dúvida ela é uma médica excepcional, sempre tentando dar o seu melhor, pelos seus pacientes e por sua equipe. Ou seja, orgulho puro.

Quando o pai dela, meu padrasto, colocou a mão no peito e fez uma cara de dor, eu pensei que fosse algum tipo de brincadeira, mas os instantes seguintes revelaram o que realmente estava acontecendo. Eu paralisei. Tudo transcorreu em câmera lenta para mim e mesmo com minha irmã tomando o controle da situação, minha mãe desfazendo-se em choro, os enfermeiros ao redor, nossa chegada ao hospital e minha espera sozinha em um dos corredores do pronto-socorro, nada daquilo fazia sentido.

Nesse momento, depois de toda a tensão vivida, estou olhando para o teto. Minhas mãos estão tremendo. O pavor não me permite saber quanto tempo se passou. Pego meu celular e informo sobre o acontecido ao RH do serviço.

Estou com medo e pedindo a Deus pela vida do meu padrasto. Pela vida do pai da minha irmã, pela vida de alguém que me criou com dureza, mas que também me deu tudo o que precisei até hoje.

Não expliquei antes, pois poucas pessoas sabem sobre isso, não porque sinto vergonha e mantenho em segredo, mas porque não tenho motivos para falar a respeito, normalmente. Minha mãe sempre foi casada com Carlos, que é o meu padrasto. Namoraram, noivaram, casaram e tiveram Adriana, mas logo tudo mudou.  Houve brigas e ciúmes que resultaram na separação. Foi nesse período que minha mãe conheceu o homem que é meu pai biológico, eles ficaram juntos por tempo suficiente para que ela engravidasse. Depois terminaram antes do meu nascimento. Dois anos depois, o pai de Adriana, meu padrasto, reapareceu e convenceu minha mãe a esquecer suas diferenças e reatarem o antigo relacionamento. Mamãe não me deixou no escuro, explicou-me tudo. Eles decidiram virar aquela página de suas vidas, mas agora tinha um marcador de páginas ali para sempre: eu.

— Como estão as coisas com ele. Qual o diagnóstico? — pergunto ao ver minha mãe caminhando em minha direção.

Ela parece calma agora e já não chora mais.

— Infarto. A rapidez no atendimento e a ajuda da sua irmã têm sido fundamentais. Mas, por agora, precisamos aguardar.

— Ele é tão tranquilo — divaguei. — Será que minha presença o estava incomodando tanto assim?

— É claro que não, Nalu! Ele estava prestando atenção em tudo. Riu daquele caso da tal Larissa que você contou. O problema dele...  deve ser a tensão com as dívidas — fala ela receosa.

— Dívidas?

— Eu não vou mentir mais para você ou para sua irmã. Isso só trouxe problemas — minha mãe respira fundo antes de prosseguir. — Estamos com dívidas e você sabe como o Carlos gosta de tudo certinho, desde então ele tem tido insônia, não tem comido bem...

— Eu tenho um dinheirinho guardado, vocês sabem disso.

— É para o seu futuro negócio — sentencia antes que eu possa dizer qualquer outra coisa. — Todos nós assistimos seus esforços para poupar o que ganhava nos estágios e agora o quanto se empenha nesse emprego. Você compra muito pouco, gasta cada vez menos com comida e outras coisas que você acha bobeira, tudo para juntar esse dinheiro. Carlos não acha certo e eu concordo.

— Claro que é certo, mãe. Não dormir por causa de dívidas? Não descansar, não colocar a cabeça no travesseiro em paz? Ter um infarto por isso? — indago atônita. — Quando posso ajudar?

O silêncio que vem a seguir me desperta a sensação de que eu estou indo longe demais. Minha mãe e meu padrasto estão pensando em mim, porém de alguma forma, isso me irrita. Me irrita que todos queiram decidir por mim quais serão as minhas prioridades.

— Eu vou dar o dinheiro para vocês e não se fala mais nisso. Tudo bem?

— Sim, tudo bem. Mas talvez esse nem seja o motivo. Porém se eu tenho certeza de algo é que você não é o motivo dele ter passado mal.

— Se você diz, eu realmente acredito nisso — ficamos em silêncio por poucos segundos, quando volto a falar. — Mãe, você quer beber algo? Comer alguma coisa? — pergunto um pouco mais calma. Ela assente. Deixamos o correndo abraçadas, não sei se ela trouxe dinheiro.

— Eu só quero que tudo dê certo, minha filha — confessa em um fio de voz. — Estou rezando muito.

— E vai dar mãe. Vai ficar tudo bem — digo, apertando-a nos braços.

***

Depois de um tempo, minha irmã veio com notícias animadoras, apesar da gravidade da situação, Carlos estava reagindo bem à medicação. Seu coração estava fraco, mas com cuidado ele iria se recuperar. Logo após a boa notícia, Adriana pediu que eu voltasse para a casa de nossa mãe. Ela estava tendo problemas ao permitir que Carlos tivesse mais acompanhantes do que o permitido pelas normas do hospital. Restou-me a missão de dar a notícia ao restante dos familiares, tanto por parte da minha mãe, quanto de Carlos.

Já era noite quando saí e só olhando para o céu em um azul escuro que tive noção de que o dia havia ido embora e que eu não tinha entrado em contato com Marcelo e nem ele comigo.

Seria um bom sinal? Acho que sim.

Para hoje estava programados uma reunião e um jantar. Marcelo possui uma lábia incrível, não tenho dúvidas de que vai conseguir reverter todas as possíveis jogadas de Felipe.

Enquanto o ônibus segue rumo a Marechal Hermes, decido checar o tal do horóscopo de Marcelo para os próximos dias em questão do trabalho:

"Você pode estar se sentindo perdido e freando os seus planos, mas isto é apenas um aspecto do trânsito do seu mapa. O bom é que nessa semana você, geminiano, estará mais disposto. As ideias fluirão, sua criatividade e habilidades estarão em alta. Uma ideia em particular pode surgir e fazer com que você ganhe muito dinheiro."

Muito dinheiro? Não com quatro grandes projetos a menos para se trabalhar. Essa eu pago para ver.  Pego meu celular e começo a realizar ligações para alguns parentes meus e de Carlos. É horrível ter que ligar para os outros para dar notícias não muito boas. Lembro a primeira vez que o Sr. Moreira decidiu escolher uma equipe para trabalhar em um projeto de uma empresa de cerveja famosa, eu tive que dar tanto a boa quanto a péssima notícia de quem foi escolhido ou não para o trabalho. Naquela época eu senti que o Sr. Moreira estava me testando para saber se eu estava realmente pronta, se eu era competente do jeito que me mostrava. Por eu ainda estar na empresa, parece que sim.

 Os poucos passageiros no ônibus aparentam uma solidariedade no olhar ao me observarem ligar diversas vezes seguidas para dar a notícia do enfarte de Carlos.

Logo todos estão a par e eu chego em casa. Sento-me na cama coberta com uma colcha rosa e permaneço olhando o quarto em que dividi vários momentos e confidências com a minha irmã; sinto um pouco de vazio. Minhas coisas, as coisas que fazem as pessoas se lembrarem de mim, não estão aqui, eu levei comigo.  Eu não queria deixar rastros da minha presença. Sinto que minha existência atrapalha, mesmo quando todos dizem que não. Uma amiga minha, Carol, certa vez me disse que não importa muito o que todos digam, isso é algo interno com o qual eu devo aprender a lidar, pois, senão, esse sentimento nunca vai mudar. Acho que ela tem razão.

No bolso, meu celular toca fazendo com que eu quase pule de susto. No display o nome de Brenda pisca:

— Oi, Bren. Tudo bem?

Ela respira fundo e o ar se transforma em um ruído sobre o alto-falante de seu aparelho.

— Não, não está. Felipe me chamou em sua sala enquanto Larissa estava lá e ele me insultou muito. Disse coisas horríveis sobre o meu trabalho, sobre como eu me visto, sobre tudo...

— Ele perdeu o juízo? Se acalma e me conta o que houve. Devagar e desde o início.

— Felipe armou um barraco por causa do hotel. Ele disse tanta merda. Me chamou de inútil, dizendo que eu deveria ter usado minha "boceta" se fosse necessário para conseguir o hotel que estava em primeiro lugar da lista.

— Como é que é?! — questiono boquiaberta. — Você tem que falar urgentemente para o Sr. Moreira, Brenda!

— Eu não posso, e isso não é nem a metade. Eu não posso perder o emprego agora. Com essa crise, não posso ficar sem trabalho.

Meu coração se aperta, as coisas estão realmente difíceis para os brasileiros. Porém, como concordar que ela permaneça em silêncio? Ficar quieta e sofrer com esse chefe abusivo é um castigo grande demais. Felipe não presta, seu comportamento é extremamente machista.

— Eu só te liguei para desabafar mesmo, vamos esquecer isso. Eu também não tenho como provar, só a Larissa presenciou, mas ela nunca ficaria contra o namorado.

— Entendo.

Eu compreendo muito bem essa situação. Infelizmente vivemos em um mundo onde a palavra de pessoas com baixa renda e de classe inferior não tem valor. Pessoas como Felipe se acham no direito de pisar e fazer o que bem entender. Isso é muito triste.

Conversamos mais um pouco e depois Brenda desliga.

***

Na segunda-feira meu padrasto teve alta e, então, pude comunicar minha mãe da maior decisão que já tomei desde que aluguei um "apertamento" em Santa Tereza:  eu ia voltar para casa.

Foi algo difícil de decidir, pois estou morando a meia hora do meu local de trabalho, tenho uma liberdade maior, meu quarto e isso mudaria radicalmente com a minha volta para casa.

Entretanto, com Carlos doente e com as dívidas, minha mãe precisaria de auxilio e também de colo. Ela ficou contente com o aviso da minha volta. Finalmente, pude falar com Carlos e arrancar o peso das costas. Ele estava bem e até fez piada com toda a preocupação e cuidados da minha mãe. No fundo, bem no fundo, eu desejava um amor assim, sobrevivente a situações complicadas como a da nossa família.

No dia seguinte, quando chego ao escritório, Marcelo está ali com aquele sorriso petulante, confiante e a barba perfeitamente feita. Fico imaginando qual foi o tipo de mulher dessa vez com quem ele se deitou nesse fim de semana para ele estar tão bem-disposto.

Caminho até sua sala e organizo as tarefas de praxe. Depois de todas as confirmações e atualizações, Marcelo sugere que almoçemos juntos para discutir sobre a viagem e outras coisas, é claro, referente ao trabalho. Isso faz com que ele me presenteie com um enorme sorriso e complete pedindo para que eu leve meu caderninho de pautas.

 Levanto uma sobrancelha me questionando internamente. Ele agora irá me ensinar como fazer o meu trabalho? Não tenho tempo para questionar, o celular dele toca e ele me dispensou com um gesto de mão mal-educado.

Volto para minha mesa e atendo uma ligação da França. Eu amo falar francês, fiz um intercâmbio após o ensino médio e depois tive a oportunidade de ir visitar uma amiga do curso na casa de sua família em Paris. Foi incrível! Pude treinar meu francês juntamente com o inglês do colégio. Descubro na ligação que é um dos contatos de Marcelo, o Daniel. Ele não é apenas parceiro de negócios, mas amigo pessoal de anos.

Quando passo a ligação de Daniel, Marcelo me informa que por causa do volume de trabalho, irá se atrasar para tirar o horário de almoço. Estou faminta, porém terei que o esperar.

Marcelo sai de sua sala horas depois e, enfim, me chama para almoçar. Me pergunto quem mais naquela empresa já saiu para o almoço às três da tarde. Penso em sugerir um restaurante self-service próximo à empresa, mas a essa hora o cardápio não terá nada de bom.

Marcelo anda ao meu lado pelas ruas, minha barriga ronca alto fazendo com que ele solte uma risadinha. Talvez em outra situação eu risse junto, mas por agora só quero comer. Ele me guia pela Rua Gonçalves Dias. Por sua opção, o lugar de nosso almoço é um restaurante clássico e histórico.

Respiro fundo e entro juntamente com ele.

— O que vai querer comer, Ana Luísa? Irei de self-service hoje e quero alguma sobremesa, não tem como resistir aos doces daqui.

— Não tem mesmo. — respondo, observando as prateleiras de doces.

Pego um prato e me sirvo do cardápio disponível, sento à mesa no canto do restaurante e o espero enquanto se serve.

— Você está bem? — ele pergunta, todavia, não fica para ouvir a resposta.  Deposita seu prato na mesa e caminha até o balcão para pedir nossas sobremesas e sucos naturais.

Nem consigo disfarçar o contentamento quando ele retorna e em seguida um garçom traz nossos sucos e mousses cobertos com muito chantilly!

— Acertei, não é? — pergunta ao me entregar um de maracujá, meu preferido.

— Sim.

 Já perdi as contas de quantas vezes viemos a esse restaurante por questões de trabalho e sempre peço a mesma sobremesa. Este restaurante é realmente um bom lugar para fechar negócios.

— Hum... — Marcelo solta um gemido ao provar o mousse. Parece uma formiga esse homem. É nessas horas que entendo o porquê de ele malhar, fazer Krav Maga e ciclismo; precisa queimar todas as calorias que ingere em formato de doces de algum modo. — Você não me respondeu se está bem.

— Estou sim, por que?

— Você parece diferente, não sei... Irritada, talvez? — Marcelo deixa de lado seu doce e passa a me analisar.

— Sinto muito, não é nada demais. Deve ser a fome. — De imediato me calo e começo a comer tudo o que tem no prato, um almoço bem diversificado. Sentir fome me deixa com um humor péssimo.

— Então o problema está sendo resolvido. Desculpe-me, já está tarde para um almoço, mas você sabe como é o fluxo na empresa às vezes...

— Sim, eu sei — interrompo-o bruscamente. Marcelo enruga a testa. Sinto que ele pretende falar algo, mas logo se concentra no prato à sua frente.

 O bom de almoçar com o chefe é não arcar com a despesa e não precisar gastar o pouco que resta do meu vale-refeição. Já é um dinheirinho a mais para futuras necessidades.

— Você não está curiosa para saber como foi em São Paulo? — ele pergunta, levando o copo de suco aos lábios.

— Não, mas parece que você está querendo contar como foi — minto. Claro que quero saber, porém o que não quero é parecer desesperada, não é profissional.

— Bem, eu consegui causar uma boa impressão com minha apresentação. Todos se animaram bastante com os projetos que apresentei. Tive que fazer alguns ajustes retirando os projetos que ficarão com o Felipe, mas foi proveitoso. Teremos uma reunião lá, dentro de um mês.

— Que bom. Sabia que você iria mandar bem, sempre faz o seu trabalho bem...

— Eu não te darei um aumento, Ana Luísa — ele fala com um sorriso irônico.

— Eu estou falando a verdade, não precisa aumentar meu salário por isso. Mas se achar que eu mereço...

— Por que eu fui tocar nesse assunto? — ele respira fundo, fingindo preocupação.

— Tenho que aproveitar todas as possibilidades — dou de ombros e ele me encara por um tempo.

— Pensarei com carinho nisso — responde sério, voltando à atenção para sua refeição.

Surpreendo-me com isso. Era para ser uma brincadeira, não esperava por essa pequena esperança. Um aumento agora viria a calhar.

— Hum... obrigada — sorrio. E é minha vez de dedicar tempo a me satisfazer com a maravilhosa refeição.

 Quando terminamos, passamos a dedicar os vinte e poucos minutos restantes do horário de almoço para conversar um pouco sobre trabalho. Contudo, não resisto a fazer uma pergunta:

— Posso sair do profissionalismo? — pergunto.

Marcelo me lança um olhar curioso.

— Esse é um campo perigoso, pois se você sair, também sairei. E bem, você parece me achar invasivo demais. Se tiver certeza de que quer ir por esse caminho, fique à vontade.

Ele tem um bom ponto. Realmente, eu acho que ele extrapola quando falamos do pessoal.

— Conheceu muitas meninas interessantes lá?— Marcelo ergue uma das sobrancelhas surpreso, e logo me apresso a terminar de falar. — Você fez até a barba.

Marcelo abre a boca para me responder, mas logo se cala quando meu celular começa a tocar, porém, antes que eu tenha a chance de atender, ele para. É uma notificação sobre o signo. Guardo o celular rapidamente e volto a encará-lo.

— Para ser sincero conheci algumas e pude conhecer melhor uma delas, se é que me entende, mas não foi por isso que tirei a barba.

— Ah. — É a única coisa que consigo dizer antes de pegar o mousse e continuar a comê-lo.

Pensei que ele tinha ido trabalhar, não conhecer melhor alguém. Concentro-me no mousse para não acabar falando besteira.

— Mas e você, Nalu? Há alguém interessante à vista?

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