CAPÍTULO OITO

Pararam em um posto, há duas horas da cidade em que iam.

- Preciso mijar. - Roger pulou do carro antes mesmo da garota o estacionar direito. - Hanna é uma péssima motorista, não se preocupa com o bem estar de seus passageiros. Estou com fome, também.

- Vou ao banheiro e os encontro na lanchonete. - Ela disse, se afastando com a mochila do amigo, ia realmente revistá-la.

- Por que traz uma faca? - Perguntou ao se sentar com eles em uma mesinha na lanchonete, que naquela hora, pouco mais de vinte horas, não estava muito movimentada.

- É um canivete, Han, não uma faca. Sempre carrego esse canivete para emergências.

- Que emergências teríamos indo a um orfanato?

- Não é esse tipo de emergência, é para descascar uma laranja, abrir uma noz…

- Destrancar algemas. - Interrompeu-o Bento, entre risos.

- Isso. - Roger entrou na brincadeira.

- Se a polícia nos parasse, como explicaríamos estarmos com uma arma branca?

- Como assim, explicaríamos, você não a jogou fora, não é? Ganhei de um amigo, Han. - Ele a olhava, implorando.

- Não, não joguei fora, não sou malvada. Mas devia ter nos avisado, o que faremos se formos parados, como explicaremos uma faca? Você sabe que julgam pessoas que têm tatuagens, infelizmente é assim. Vamos colocar essa faca no porta malas, qualquer coisa diremos que a guardamos para um acampamento e a esquecemos lá.

- Um canivete! Não é faca. Deixe comigo, caso aconteça, e não vai acontecer, direi a verdade, o carrego para descascar frutas… 

- Destrancar algemas. - Bento interrompeu novamente o amigo e dessa vez, até Hanna riu.

- Sério, você precisa parar de ter tanto medo da polícia. E minhas tatuagens são lindas, à propósito. - Roger falava sério com a amiga.

- E você precisa parar de ser tão amigo deles, precisa parar de ser preso, Roge, e sim, suas tatuagens são realmente muito bonitas.

- As minhas tatuagens são lindas, também. - Disse Bento, passando uma mão sobre o braço recém tatuado com uma fênix.

- Não estamos falando de tatuagens, meninos. Meus pais me deixarão fazer uma quando eu fizer vinte e um anos, mesmo que eu vá morar sozinha antes.

- Você fala como se eu vivesse sendo preso, parece que estou em prisão perpétua com você. Relaxe, Han.

- Me desculpe, me preocupo muito com você porque o amo.

- Também te amo, muito, amo vocês dois. Vou repetir o mesmo que digo ao padre todos os dias: Estou trabalhando, não vou fazer faculdade, nem a pau, mas estou indo bem, não estou?

- Está sim e estamos orgulhosos de você. - Foi Bento quem respondeu. - E você, está orgulhoso de nós?

- Não muito, na verdade.

Os amigos fingiram socá-lo ao mesmo tempo. Estavam jantando lanches, cada um pedira um lanche e refrigerantes e jantavam tranquilos. - Fala sério, passamos nossa vida toda estudando, estudávamos até aos domingos! E agora uma quer virar professora, o outro quer ser um cientista das estrelas, ah, que decepção, não chega de estudos?

- Não vou ser um cientista das estrelas, seu paspalho, quero ser um astrônomo, e gostamos de estudar.

- Ainda acredito que você venha a querer um dia se formar em algo, Roge. - Hanna segurava a mão dele sobre a mesa.

- Nunca. Jamais quero pisar em uma classe escolar em minha vida. Posso até mudar de ideia, mas no momento, só penso que jamais vou ter vontade de estudar, nunca tive e não creio que vá um dia querer.

Pegaram novamente a estrada. A noite estava escura. Roger e Bento discutiram sobre ir na frente e dessa vez Bento venceu no ímpar/par e foi na frente.

Chegaram à entrada da fazenda, do orfanato às vinte e duas horas, estava como sempre, tudo escuro na estrada de terra que pegaram para estradinha que abrigava o orfanato. Bento desceu para abrir a porteira branca, colocou uma pedra em um lado da porteira e segurou a outra para que Hanna passasse. Ela o esperou fechar novamente e entrar no carro.

- Sinto saudades daqui. Penso que quando se é criança, tem uma sensação diferente de tamanho, eu achava isso gigantesco, porém continuo achando. É muito grande aqui, não é?

- Muito, são muitos alqueires; Dora disse que essa fazenda é da época dos escravos, tem mais de duzentos anos. Ela conta que um senhor muito rico, milionário ou bilionário, que era o dono dessas terras, tinha centenas de escravos e quando foram libertos, ele doou a fazenda para um casal que nunca pode ter filhos e eles criaram o orfanato. Sempre contaram com ajuda do governo, da prefeitura, de Ongs e igrejas, e é assim até hoje. - Foi o comentário de Bento e logo estavam encostando próximo às árvores frondosas que cercavam a casa grande de dois andares, o orfanato, fazendo, ou Casa Abrigo.

- Está tão silencioso ou é impressão minha? - Perguntou Roger, batendo a porta do carro ao descer.

- Está muito silencioso mesmo, e escuro. - Hanna subiu as escadarias de entrada. 

- Muito estranho, em pleno sábado. - Disse Bento. - Acho que nunca vi a Casa tão silenciosa.

Os três pararam no quinto e último degrau da escada e olharam ao redor. O silêncio parecia opressor e anormal ali. A Casa sempre estava com as luzes acesas, tanto dentro, quanto fora. Haviam luzes nos postes ao redor de toda a propriedade e só agora eles notavam que estavam apagadas. As luzes dos quartos, no andar de cima, só eram apagadas após à meia noite, haviam crianças de todas as idades e sempre uma ou outra demorava para conciliar o sono, por mais que tivesse o toque de recolher, sempre havia um cuidador ou voluntário que não seguiam as regras, ali, as crianças eram a prioridade, seus medos, fobias e inseguranças, eram ouvidos e acatados; até o mais rígido do cuidador, quebrava as regras.

- O que está acontecendo? - Roger estava preocupado. - Estive aqui mês passado e comentei com o padre que foi ótima a ideia das luzes com sensores de movimento que colocaram, onde estão, que não as vejo?

- Vai ver tiraram. - Respondeu Bento. - Vamos bater, nunca antes o fizemos, mas é o que nos resta. - Não passou despercebido aos amigos, que ele passava as mãos sobre os braços arrepiados, os três estavam arrepiados.

Ele seguiu para a enorme e antiga porta de carvalho com a aldabra pesada.

O barulho da aldrava batendo na porta, foi alto no silêncio sepulcral da noite. Mas ao bater duas vezes, eles notaram que a porta se abriu devagar, rangendo.

O corredor estava escuro, apenas uma lamparina, antiga, estava acesa em um móvel antigo no hall, as sombras dançavam.

- Que móvel é esse? - A pergunta de Roger foi baixa, ele falava baixo, mas qualquer mínimo barulho, se ampliava no silêncio, e sua voz ecoou por todo o recinto.

- Nunca o vi antes, deve ser uma doação nova. - Hanna também passava as mãos pelo braço arrepiado. - Olá, Dora, alguém?

O silêncio os saudou.

O hall  de entrada, amplo e arejado, estava empoeirado, como se estivesse abandonado há anos. Sem obterem resposta e pela primeira vez sentindo-se intrusos, sem saber se deviam entrar, permaneceram ali na entrada, incertos.

- O que devemos fazer? - Perguntou Bento e sua voz parecia de criança, novamente, inseguro.

- Não sei, o que acham de entrarmos, subirmos? - Respondeu Hanna.

- Melhor irmos ao escritório, Dora sempre é a última a dormir. - Preferiu Roger, e sem que concordassem ou discordasse, com passos hesitantes, caminharam para o escritório em fila indiana.

Com assombro constataram que ali, como o hall, não parecia ser habitado há muito tempo.

- Mas o que aconteceu? - Hanna cortou o silêncio e sua voz retumbou, assustando os amigos. - Cadê o telefone? Precisamos ligar para alguém, para a polícia, para o padre, o prefeito, sei lá.

Dizendo isso, ela foi até próximo à janela do escritório, onde antes havia um armário com gavetas e um telefone. Não havia armário, não havia telefone, nem a mesa de Dora, não havia nada que lhes eram tão comuns, conheciam cada palmo desse cômodo, cada móvel e os encontrariam de olhos fechados.

- Vou buscar aquela vela do hall. - Bento se afastou em busca da lamparina à vela.

Sozinho no hall, ainda sentindo os arrepios, ele pegou a lamparina, o arrepio se intensificou quando ele viu em meio ao hall, bem em sua frente, um redemoinho se formar. O rapaz estacou, sentindo um gelo na espinha. O redemoinho foi aumentando, folhas e terra formavam um espiral e subia devagar; de repente, por mais incrível que pudesse parecer, a espiral desceu, formando no chão o formato de uma seta, como se a o instigar a ir para o lado da porta. A porta contrária a que ele viera, contrária de onde deixara seus amigos segundos atrás.

Sentindo a boca seca, ele correu ao encontro de seus amigos.

- O que foi?  Parece que viu um fantasma. - Perguntou Roger.

- Talvez eu tenha visto. - Ele respondeu. 

- O que quer dizer? - Hanna estava pálida, agora ele podia ver seu rosto com a luz da lamparina.

- Não sei… eu vi um redemoinho, parecia que…

- Que o quê? - Roger parecia estar tremendo.

- Parecia que era para eu segui-lo.

- Redemoinho, seguir para onde?

- Para o porão. - Ele respondeu, engolindo em seco.

- Para mim chega. Não há telefone aqui, não temos como contactar ninguém, vamos embora. - Roger se encaminhou para a porta, os dois o seguiram rapidamente, sem questionar.

- Da primeira cidade ligamos para a polícia. - Hanna disse e não sufocou um grito quando a porta que entraram se fechou com um estrondo, vibrando as paredes e chacoalhando os vidros das janelas. - Abram a porta! - Ela pediu aos meninos que estavam à sua frente e já tentavam, sem sucesso.

- Meu Deus, não estou gostando disso. - Roger girava a maçaneta e por fim chutava a porta freneticamente. - Vou pôr essa porta abaixo, me ajudem.

Os três tentaram e não conseguiram abri-la, parecia que ela havia sido soldada ao batente, a maçaneta sequer rodava.

Bento pegou a lamparina que havia deixado no chão para tentar abrir a porta e iluminou a maçaneta mais de perto. Viram que a lingueta estava acusando a porta trancada.

- Há outra passagem. - Roger se distanciou da porta. - Vamos subir, ou vamos encontrar uma janela para sairmos daqui.

- Podemos tentar, mas não creio que conseguiremos sair. - Disse Bento, com a voz de agouro.

- Cale a porra da boca, Bento. Não tem graça, vamos dar o fora daqui.

- Só não acho que conseguiremos. - Sentenciou o amigo.

- Cale a maldita boca e vamos tentar.

- E me xingar vai adiantar?

- Ficarmos parados aqui, também não vai adiantar. - Roger pegou a mão de Hanna e puxou-a para acompanhá-lo. Bento correu atrás dos dois.

- Vamos ficar juntos, não podemos nos separar. - Ele disse, se encaminhando com os amigos, que saíram do hall de entrada e subiram as escadas para o primeiro andar, com a lamparina segura na mão.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados