7 - Sob a lua

Não fazia muito tempo que havia me deitado, eu não estava dormindo, mas também não estava acordada o suficiente para saber o que acontecia ao meu redor. Talvez o cansaço estivesse me impossibilitando de ser um pouco mais cautelosa. Entretanto, meu corpo, minha mente e meu espírito estavam desesperados por uma pausa.

Me peguei pensando em minhas decisões, no meu plano idiota de tomar o lugar de Kiara.

Notei, por fim, que eu estava jogando um jogo muito perigoso comigo mesma. Meu plano para salvar Kiara não me dava nenhuma certeza de que eu sairia viva, mas mesmo assim eu segui em frente. Apostei minha própria vida apenas para provar que eu estava certa. E, no fim, eu nem ao menos me preocupei em saber se ela realmente havia saido bem dessa loucura toda, mas não me senti culpada. Não haviam realmente motivos para que eu me sentisse assim. Era algum pecado estar lutando pela sua própria vida com tanta perseverança a ponto de não pensar em outra pessoa?

Eu, em toda minha vida, nunca havia feito de fato algo por mim mesma. Por isso, quando pude tomar a decisão de salvar Kiara e tentar mudar meu destino agi de maneira inconsequente e piorei as coisas.

Mas já não havia nada para me lamentar. Eu estar viva já era bom o bastante.

Escutei barulhos altos e o som de uma porta batendo com extrema força. Abri os olhos assustadas e agradeci por não ser nada no meu quarto, mas os barulhos continuaram. Eu estava tão cansada, minha cabeça doía de uma maneira intensa, mas, mais uma vez, me forcei a levantar.

Sai do quarto em silêncio, tomei cuidado para não fazer nenhum barulho enquanto andava pelo corredor. Desci as escadas e fiquei surpresa ao ver que todos, exceto Raymond, estavam lá.

- O que acha que ele foi fazer lá fora? - Ouvi Selene perguntar um pouco aflita, mas parecendo bastante curiosa.

- Acha que sou algum tipo de vidente? - Lesley perguntou rindo.

Eles pareciam tranquilos, embora meio apreensivos. Eu ainda não confiava o suficiente neles, assim como não confiava na minha segurança ao retornar para Dandelion, mas eram coisas que eu, eventualmente, deveria aceitar.

- Que bom que acordou! - Nesta me recebeu sorridente e batendo palminhas de animação.

- Eu estava mesmo pensando em ir acorda-la - Selene sorriu para mim. - Não é algo que vemos sempre.

- Por quê? - Do que eles estavam falando? - Aconteceu alguma coisa?

- A lua hoje está exepcionalmente bonita. - Aspen me perguntou sentando numa das poltronas enquanto bebia algo em uma xícara. - Ela está ainda maior do que normalmente fica, é um evento raro que deve ser admirado.

Olhei para as janelas envidraçadas e finalmente pude ver o horizonte escuro completamente iluminado por uma lua cheia e brilhante. Em Dandelion sempre foi comum terríveis tempestades destruirem os campos de plantação e sempre haviam nuvens no céu à noite, talvez a posição em que a aldeia ficava não favorecesse tanto. Por esse motivo nos raramente víamos a lua e sempre tínhamos que lidar com terríveis chuvas e, de vez em quando, toda a força e destruição causada pela tempestade era atribuída a mim por todos os moradores de Dandelion. Talvez, agora que eu finalmente sai de lá, eles entendam que nunca foi minha culpa.

- Eu nunca vi a lua tão de perto. - Respondi indo na direção da enorme janela, observar com um pouco mais de proximidade. Ainda estava no início da noite e graças a isso era possível ver a lua com ainda mais nitidez.

- Me pergunto se você é distraída ou apenas não dá importância ao que acontece a sua volta. - Selene disse pousando uma bandeja com alguns biscoitos e um bule de chá em cima de uma pequena mesa no centro da sala. - Sirvam-se do que quiserem.

- Ao que me parece ela não dá importância a própria vida. - Lesley brincou indo até a mesa e pegando alguns biscoitos - Não viu como ela se pôs a disposição daquela menina para assumir o lugar dela na mansão do Frederick? Sinal de loucura.

- Você tem um ponto. - Respondi. Eu queria rir, achar aquilo tão cômico quanto eles pareciam achar, mas eu apenas consegui notar a falta de amor que eu tinha por mim mesma às vezes.

- Felizmente tudo deu certo no fim. - Aspen encorajou enquanto segurava sua xícara de uma forma extremamente requintada.

- Aspen tem razão. - Selene concordou. - Não vamos ficar relembrando o passado quando estamos vivendo o presente. Além de que é quase impossível ver a lua em Dandelion.

Todos nós concordamos silenciosamente com o que Selene havia dito. Lesley por sua vez parecia disposto a continuar o assunto apenas para irrita-lá um pouco mais. Dava para ver em seu rosto e na forma como ele estava prestes a abrir a boca que jarros voariam por todo a casa. Mas o som do vento se chocando contra as janelas quebraram o silêncio entre nós. Pude ver, por uma das janelas, as lufadas de vento sacudindo as árvores com violência e movimentando toda a paisagem.

Eu adorava noites assim, com ventos fortes. Embora no outro dia eu tivesse que tomar a culpa por qualquer coisa que acontecesse. Os aldeões de Dandelion passavam tanto tempo de suas vidas temendo Uric, nosso rei, que esqueciam completamente de temer coisas reais, como as forças da natureza ou a raiva dos deuses. Por minha vez, eu apenas admirava o máximo que podia de toda aquela escuridão. Ver os dandelianos perceberem que havia muito mais no mundo do que apenas Gorgonea era uma visão de encher os olhos. Eu me sentia privilegiada quando subia alguma pequena colina e via lá de cima como nós éramos pequenos comparados a vastidão do mundo.

- Toda essa ventania deve estar atingindo Dandelion, certo? - Perguntei eufórica.

- Creio que sim. - Aspen respondeu um pouco confuso.

Fiquei extremamente animada. Sim, agora eles saberiam que nada do que acontecia naquele inferno era minha culpa. Teriam que engolir cada palavra que disseram sobre mim.

- Existe algum lugar alto por aqui? - Eu estava ansiosa, queria ver o mais rápido possível como era a vista em um lugar diferente. E, se possível, ver os fortes ventos irem na direção de Dandelion sem eu estar lá para levar a culpa. Será que ele finalmente entenderiam do que a natureza era capaz?

- Há uma pequena estrada assim que saímos da mansão que leva até uma pequena colina ao sul. - Lesley respondeu distraído enquanto comia um dos biscoitos que haviam numa bandeja.

Talvez ele não devesse ter me contado aquilo, estava óbvio no rosto de todos que ele havia dito mais do que o necessário.

- Posso ir até lá? - Eles com certeza podiam ver a súplica em meus olhos. - Prometo que não vou tentar fugir.

Eles se encararam e Lesley, finalmente, pareceu perceber o que havia feito. Sua cara de preocupação era hilária.

- Meu bem... - Nesta começou. - Não acha perigoso sair durante a noite? Há muito mais do que apenas animais por aqui.

- Eu estou acostumada. - Expliquei. - E não é como se eu fosse alguma prisioneira, afinal, sou irmã da noiva do mestre de vocês.

Todos pareceram levar em consideração minhas palavras e eu não estava errada sobre elas. Eu realmente não era uma prisioneira, havia até mesmo sido resgatada pelo mestre deles.

- Bem...- Selene parecia pensativa. - Acho que não há mal nenhum nisso, apesar do perigo óbvio.

- Faça o que quiser, mas irá assumir a responsabilidade sozinha caso o mestre Asciam se irrite. - Aspen anunciou enquanto levantava-se. - Estou indo para meus aposentos.

Ele atravessou a sala e subiu as escadas parecendo cansado e até mesmo um pouco entediado.

- Quem é Asciam? - Perguntei assim que vi Aspen sumir em um dos corredores.

- É o sobrenome de Raymond. - Selene sussurrou.

- Eu também irei me deitar. - Nesta bocejou.- Espero que vocês tenham as mesmas intenções.

Em seguida Selene também foi dormir, seu olhar parecia suplicar para que eu não desse nenhum passo fora da casa e não arrumasse problemas para mim mesma.

No fim, só restou Lesley comigo. Ele continuava deitado no sofá cochilando preguiçosamente.

Constatei mentalmente que a porta dupla que havia no centro da sala era a saída principal da mansão. Eu queria sair por um momento, observar a chuva e me sentir insignificante de novo, mas eu estava em dúvida sobre como eu deveria agir então apenas encarei Lesley em busca de qualquer resposta.

- Faça o que quiser. - Escutei sua voz.

- Mas vocês... - Tentei dizer, mas fui interrompida.

- Escuta só! - Lesley se sentou rapidamente no sofá de uma forma adorável. - Eu acho legal que você pense nos outros antes de tomar alguma decisão, mas não faça isso com muita frequência. É importante ser uma pessoa boa, mas ser bom demais é idiotice.

Fiquei sem palavras por alguns momentos, agradeci mentalmente por suas palavras e, finalmente, resolvi ser dona das minhas próprias ações. Sem por a minha vida em risco desta vez.

- Vou sair só por um momento. - Sorri para ele. - Prometo que volto logo.

Ele me encarou por alguns instantes e depois simplesmente concordou com a cabeça e se jogou novamente no sofá.

Eu abri a porta de entrada e senti o vento extremamente frio atingir meu corpo em cheio. A brisa fria e a cor do céu me pareceram muito familiares. Caminhei para fora e segui a estrada que Lesley havia falado. Não era bem uma estrada, era apenas uma trilha estreita e íngreme que levava até o topo de uma pequena, porém alta, colina.

Estava ventando muito, mas a noite estava incrivelmente clara. O vestido fino que eu estava usando não me protegia do frio, mas eu continuei subindo com uma ansiedade indescritível em meu corpo.

O caminho estava cheio de folhas secas e eu não estava calçando nada e isso dificultava muito à medida que o caminho ficava ainda mais escorregadio. Em Dandelion as colinas não eram tão íngremes, eram baixas e serviam para construir pequenas casas.

De repente parei para pensar sobre Dandelion e tudo que vivíamos lá, tão acuados e tão cegos para vermos a real face do nosso precioso rei. Mas, de vez em quando eu tinha a impressão de que tudo não passava de uma enorme maldição. Fosse as tempestades ou os fortes ventos que destruíam as plantações, tudo parecia ser um terrível castigo.

Logo lembrei que, mais cedo ou mais tarde, eu teria que voltar para lá e senti um enorme frio na barriga.

Kamina me disse que tudo que o rei dizia não passavam de mentiras para manter a fé do povo em um reino em declínio e eu conseguia enxergar isso claramente na forma como nossa aldeia trabalhava.

Lembrar de Dandelion sempre me trás péssimas lembranças, voltar para lá seria como jogar fora todo o esforço de Kamina para expor a verdade.

Eu continuei subindo por aquele caminho, pensando em alguma forma de permanecer em Amaranthine ou viajar para qualquer outra aldeia ou cidade nas redondezas. Eu não poderia jamais voltar para Dandelion, muito menos me reencontrar com Ângela.

Raymond devia imaginar que minha convivência com ela era perfeita e amigável, mas a verdade se tornaria óbvia assim que ela me visse. Nossa relação não me favorece em nada, mas tentar fugir não vai melhorar minha situação atual.

Finalmente cheguei no topo da colina, sentindo todos os membros do meu corpo tremerem de frio. Porém, quando eu pude ver lá de cima, uma paisagem tão diferente da que eu era acostumada fiquei encantada. Um momento quase mágico. Havia um enorme penhasco e lá embaixo dava para ver as águas do rio trêmulas refletindo a imagem da lua que iluminava de maneira quase sobrenatural o horizonte.

Me sentei sobre a grama em um lugar onde a vista fosse mais ampla e me peguei pensando, mais uma vez, no que eu deveria fazer daquele momento em diante.

Por uma parte, era disso que eu gostava na escuridão da noite. O poder de me fazer pensar além, mais do que o de costume. Na escuridão tudo se tornava claro para mim. Por mais irônico que parecesse.

- Você ficará resfriada se continuar aqui. - Escutei a voz de Raymond atrás de mim.

Me virei um pouco assustada e me deparei com a figura deslumbrante do homem mais bonito que eu havia visto com apenas dois diferenciais; uma camisa de botões branca que estava aberta e completamente encharcada e seu cabelo molhado caindo delicadamente sobre seu rosto.

Então, aquela paisagem que tanto havia me impressionado e até mesmo a lua que eu nunca havia conseguido admirar em Dandelion pareciam sem graça perto dele. Tudo nele era interessante. Ele era realmente bonito, mas havia algo a mais. Algo que me fazia prestar atenção nele, algo que transcendia e brilhava, mesmo que de uma forma confusa.

- Acho que você deveria ser o mais preocupado. - Virei meu rosto envergonhada por olhar para o seu corpo. - Você está ensopado. O que aconteceu?

- Eu estava com calor, então resolvi nadar um pouco. E eu não sou alguém que fica doente apenas com isso. - Ele se sentou ao meu lado e eu senti todos os pelos do meu corpo se arrepiarem e não foi pelo frio.

Eu fiquei em silêncio, sem saber ao certo o que eu deveria dizer. Era a minha primeira vez a sós com um homem em um lugar com toda aquela calmaria. Mas então me veio uma enorme dúvida, uma dúvida que até pouco tempo estava martelando.minha mente.

- Por que quer se casar com Ângela? - Perguntei um pouco baixo, temendo sua reação.

- Por que eu a amo. - Ele respondeu sem tirar os olhos da lua nem por um instante. Foi uma resposta rápida e convicta e, de repente, sem nenhum motivo, o meu coração doeu. - Eu a amo faz muito tempo.

- Mas você nunca a viu antes. - Contestei sua resposta sem realmente acreditar em suas palavras. - Digo, você achou que eu era ela, afinal.

- O amor é algo que talvez você não entenda... - Começou ele. - Mas um dia vai saber o quão poderoso é. Ver como ele atravessa o tempo e não desaparece com a morte e também vai perceber que seria capaz de arriscar tudo para salvar quem você ama.

Eu realmente não entendia aquilo já que nunca amei ninguém. Nunca tive amigos ou recebi qualquer demonstração de carinho por parte da minha família, mas isso me tornava alguém mais realista. Me deixava mais forte e fazia com que eu não me iludisse com falsos sentimentos.

- Eu prefiro continuar sem entender. - Respondi um pouco mais alto. Ficando um pouco irritada com toda aquela conversa.

- Por que iria querer isso? - Perguntou finalmente desviando os olhos do céu e me encarando, como se estivesse interessado.

- Eu entendi que só vale à pena tentar salvar alguém se sua vida não estiver em risco. - Suspirei e olhei para o horizonte. - Arriscar sua vida pelos outros é pura idiotice.

- É uma visão um pouco pessimista do mundo. - Ele sorriu.

- Essa é a única visão que eu tive do mundo. - Eu vi quando seu olhar veio carregado de pena para mim.

Era evidente em seus olhos que ele apenas me via como uma pobre garotinha indefesa que não conhecia nada do mundo. Ele queria que eu entendesse o amor, queria que eu encontrasse o amor. Talvez ele achasse que essa era a resposta e que amar seria minha salvação.

- Não olhe para mim assim e não sinta pena de mim - Pedi olhando em seus olhos.

- Eu só estou preocupado que minha noiva fique triste em encontrar você dessa forma. - Ele disse sério, mas eu não pude evitar a intensa crise de riso que me atingiu. - Por que está rindo?

- É hilário ver você achar que eu e Ângela somos uma família. - Limpei uma lágrima que escorria pelo meu rosto ainda rindo. - Assim que chegarmos em Dandelion ela vai se questionar sobre o porquê de eu ainda estar viva. Isso sim vai deixar ela triste.

- Acho que você está sendo precipitada. - Ele disse parecendo incomodado com meu comentário.

- Eu sou a precipitada? - Questionei encarando ele. - Que tal falarmos de alguém que ama gratuitamente uma mulher que nunca viu, apenas por que lhe convém.

- Você não sabe nada sobre amor. - Ele disse irritado e me encarando também.

- Você não sabe nada sobre Ângela!

Me levantei da grama e fui em direção à estrada que levava de volta para a mansão sem escutar sua resposta, mas logo ouvi passos atrás de mim.

- Ângela não é a pessoa horrível que você pensa. - Ele disse furioso.

- Como alguém que conviveu a vida inteira com ela, eu posso dizer que sim, ela é. Talvez até bem pior do que eu imagino que ela seja.- Me virei para encara-lo. - Mas você tem uma bela mansão e parece ter bastante dinheiro. Então, não se preocupe. Ela com certeza irá te amar.

- Retire o que disse, Alyssa! - Ele gritou agarrando o meu braço e me forçando a encara-lo mais uma vez e eu estremeci assim que o ouvi falar meu nome. - Retire tudo o que disse sobre Ângela.

- Por que eu faria isso? - Perguntei tentando livrar o meu braço que já estava começando a doer. - Você é o único errado entre nós dois.

- Ao que me parece você é a pior da sua familia. - Ele disse ríspido. - Você deve ser muito pior do que tudo que falou sobre Ângela. Deve ter inveja de tudo que ela vai ter.

- Palavras fortes demais para quem não sabe sobre o que está falando. - Respondi realmente irritada.

Eu não consegui acreditar no que eu estava ouvindo. Suas palavras ecoavam pela minha cabeça, mas não tinham sentido.

- Olhe nos meus olhos e repita isso. - Deixei que ele me puxasse e fiquei frente a frente com ele. - Eu sou a pior da minha família? Sou pior que Ângela?

Eu sempre escutei todos os tipos de xingamento, sempre soube que todos acreditavam que eu era amaldiçoada, mas essas pessoas conviviam comigo. Querendo ou não elas tinham o direito de formar uma opinião sobre mim, mas eu jamais aceitaria escutar tal coisa de alguém que não conhecia o meu passado.

- Eu até tentaria me defender, mas eu não vou te contar sobre eles. - Olhei no fundo de seus olhos admirando a cor. - Você, eventualmente, descobrirá sozinho.

Me desvencilhei de sua mão e voltei a caminhar de volta para a mansão me sentindo extremamente ofendida.

- Não haja como se você fosse a vítima. - Ouvi ele gritar atrás de mim.

- Acredite, você será a única vítima entre nós dois. - Sorri e voltei a caminhar, mas dessa vez ele não veio atrás de mim.

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