Herdeira Da Noite
Herdeira Da Noite
Por: GirleneLSales
1 - Jovens sacrifícios

Dandelion é uma aldeia ao norte de Gorgonea, o Reino mais poderoso de todas às oito regiões. Todos os rapazes, ao completarem dezesseis anos, são obrigados a servirem ao Palácio. Os jovens são escoltados por soldados mais experientes e levados até seu destino, do qual poucos retornam.

Esse é o único jeito de alguém sair de Dandelion, caso contrário, qualquer um que tente fugir, homem ou mulher, será morto pelas criaturas que vivem escondidas na floresta que cerca a aldeia.

Os poucos jovens que retornam nunca contam boas experiências, falam sobre monstros horrendos, magia negra e feiticeiros maléficos que servem ao Rei.

Nada é falado sobre as outras sete regiões, tampouco se sabe sobre elas. Não existem mapas com suas localizações e não sabemos que categoria de pessoas vivem por lá. Os Remanescentes, como são chamados aqueles que conseguem sair e retornam, contam que há um enorme muro separando Gorgonea do resto do mundo. Todos sabem da existência das outras sete regiões, mas ninguém jamais havia sequer tentado chegar a qualquer uma delas. Nem mesmo os melhores mercenários querem correr esse risco. Ao menos é o que todos que retornaram dizem. 

Os mais velhos não costumam contar muito sobre a história de Gorgonea, mas sempre dizem que antes haviam apenas quatro regiões e que estas foram divididas e transformadas, mas que o império de Gorgonea continua o mesmo. Sendo o maior e mais poderoso de todos. 

O destino dos garotos de Dandelion é realmente incerto, mas não se comparava ao destino das pobres moças, que assim que nascem já tem seu destino selado. 

Assim que nascem, cada garota é prometida a um homem diferente. É pura sorte. Você poderia ser prometida a algum nobre, assim como poderia ser prometida ao mais pobre dos homens. Em Dandelion, às mulheres não tem nenhuma outra serventia, que não seja dar à luz aos novos herdeiros do Clã de Uric, como são chamados todos os que nascem em Gorgonea. Eu, assim como todas elas, tenho o meu destino definido desde o meu nascimento.

- Não consigo imaginar o quão sortuda uma garota tem que ser para estar destinada a um dos candidatos ao trono, ainda mais sendo um rapaz de sua idade. - Kamina, uma velha amiga da minha família dizia enquanto costurava o vestido branco horroroso que eu usaria na minha primeira apresentação ao meu noivo.

Eu não dava a mínima importância as tradições, por mim, eu já estaria longe de Dandelion. Ou, até mesmo de Gorgonea, caso eu tivesse a oportunidade. Não sabia o que existia fora dos muros, mas qualquer coisa parecia melhor do que entregar minha vida nas mãos do Rei. Ângela, minha irmã, ao contrário de mim, daria tudo para estar se casando com qualquer um que vivesse a pelo menos dez passos do Palácio. Mas, para sua infelicidade, ela estava destinada a alguém totalmente desconhecido por todos. Ninguém o conhecia, e para minha mãe, esse era o pior pesadelo. 

- Bom, como ainda faltam três dias para sua primeira visita ao seu noivo, eu vou deixar o resto dos detalhes para amanhã. - Kamina disse enquanto pousava delicadamente o vestido em cima da minha cama. 

- Obrigada. - A abracei e de coração agradeci pelo precioso desperdício do seu tempo. 

Ela foi embora feliz, com a certeza de que estava ajudando mais alguma pobre moça a realizar seu sonho. Observei o vestido branco cheio de babados e borboletas e senti uma enorme ânsia de vômito quando percebi serem borboletas de verdade, mergulhadas em algum líquido transparente e costuradas ao tecido fino. Por que ainda me surpreendo?

- Alyssa! - Escutei minha mãe chamar. Ignorei o vestido em cima da cama e fui em direção a voz.

- Me chamou? - Perguntei entrando na cozinha. 

- Obviamente! Faça-me o favor de parar de ser tão estúpida e vá procurar Odila, diga-lhe que quero um bom vestido para a apresentação de Ângela. - Ela disse enquanto limpava com uma espécie de cera um dos maravilhosos sapatos de Ângela. 

Eu não me sentia mal ao ver o claro favoritismo de minha mãe com a minha irmã, era clara a preferência de minha mãe entre mim e Ângela. Não fui capaz de responde-la, então simplesmente segui em direção à porta e fui atrás de Odila, a melhor costureira da região. Enquanto eu caminhava pela estrada de barro e passava em frente às diversas casas que beiravam a estrada eu podia sentir claramente os olhares fixados em mim. 

Ao que Kamina me conta - e ela é a única que me conta algo - eu nasci numa noite de lua cheia que, por si só, já é considerado muito azar. Mas, ao que parece, corvos e gatos pretos cercaram nossa casa e trovões foram ouvidos por todas as partes. Então, até hoje, eu sou vista como algum tipo de entidade satânica. 

Suspirei aliviada ao chegar em frente à casa de Odila, uma mulher de meia-idade com cabelos pretos e olhos profundos. Entrei assim que percebi que a porta estava destrancada. 

Ela estava sentada em uma cadeira de madeira costurando algo de cor vermelha. Vermelho era uma boa cor. Vermelho era uma das cores malditas, ao que todos falavam. Diziam que a cor manchava a pureza das mulheres e a honra dos homens. Ninguém, absolutamente ninguém, ousava usar vermelho. Então foi uma grande surpresa ver aquela cor nas mãos de uma das pessoas mais supersticiosas da aldeia. 

Odila não era uma má pessoa, sempre tentava ajudar a todos e fazia os vestidos de todas as garotas cobrando apenas o preço dos tecidos, mas quando se tratava de falar do passado ou até mesmo de mim ela agia como se tudo fosse absurdo. 

- É vermelho. - Constatei, esperando que ela notasse minha presença e um pouco curiosa para saber o destino da peça.

- Sim, ganhei este tecido do meu falecido marido. Ele quase morreu tentando consegui-lo na entrada de alguma das outras sete regiões. - Me olhou com um sorriso triste em seu rosto. 

- Ele já esteve lá? - Perguntei verdadeiramente surpresa, nunca soube de ninguém que houvesse realmente estado lá e muito menos havia visto algo que viesse de lá. 

- Não muito além do muro, apenas o suficiente para me trazer a linha e o tecido. - Respondeu séria. 

- Vai vende-lo? - Nós não tínhamos intimidade o suficiente. Era estranho que estivéssemos tendo uma conversa que não envolvesse eu ser amaldiçoada ou rituais de purificação. 

- Guardei por muito tempo, nunca tive coragem de usá-lo. Você sabe o que dizem. - Deu uma pausa melancólica e continuou. - Entretanto, me parece um desperdício que ele tenha ido tão longe para consegui-lo e o tecido não tenha nenhuma utilidade. Mas ninguém compraria. 

- Eu compraria se tivesse alguma moeda. - Falei pensativa. - É o esforço de alguém, afinal. 

Odila me olhou intensamente, como se tentasse enxergar além da minha alma, coisa que ela não costumava fazer. Mas, que eu acreditava que ela conseguisse. Seus olhos eram intensos demais para não verem através de alguém. 

- Pode ficar com ela, então. - Ela disse terminando o último ponto da costura.

- Eu... não tenho como lhe pagar por isso, me desculpe. Eu realmente queria aquilo, era vermelho. Vermelho era a cor odiada e iria contra tudo naquela aldeia. A ideia de ir contra eles era apetitosa demais para ser jogada fora e, além de tudo, era uma peça vinda de fora do Reino. 

- Não estou lhe vendendo, estou lhe dando. - Arregalei meus olhos. - Não se surpreenda, não significa que gosto de você, mas é a única com coragem o suficiente para usá-lo.

Fiquei um momento sem palavras e fui em sua direção agarrando o que parecia ser uma capa. Era realmente uma capa vermelha com um gorro e alguns pontilhados pretos. O tecido era macio e suave ao mesmo tempo em que era pesado e passava uma certa imponência. Eu nunca havia ganhado nada parecido.

- Eu te abraçaria se você não tivesse medo de ser amaldiçoada. - brinquei e apertei o tecido contra meu corpo. 

- Não conte a ninguém que lhe dei isso. - Disse séria, mas logo voltou a carregar uma expressão neutra. - Diga logo o que veio fazer aqui.

- Ah! Certo. - Quase havia me esquecido devido a toda emoção. - Minha mãe quer um vestido para Ângela. O melhor tecido. 

- Diga que não estou fazendo mais vestidos. - Ela se levantou. - Está foi a última peça que costurei. 

Fiquei internamente feliz por saber que estava segurando em minhas mãos a última peça feita pela maior costureira de Dandelion. Mas, ao mesmo tempo, estava pensando no que diria para minha mãe.

- Obrigada, passarei o recado. - Assim que fui em direção da porta ela me chamou novamente. 

- Espere. - Ela foi até a porta e, colocando a cabeça para fora, olhou de um lado para o outro e a fechou rapidamente. 

- Aconteceu algo? - Perguntei assustada com seu comportamento. 

- Eu não deveria estar fazendo isso, então me escute com atenção. - Ela disse me puxando para um dos quartos de sua casa. 

- Passei minha vida inteira acreditando em tudo que os remanescentes nos contavam, mas hoje, achei alguns papéis do meu marido. Algumas cartas e recados que ele mandou e recebeu da capital. É tudo mentira, tudo que eles contam e o que dizem ser. As garotas com sorte de se casarem com homens de Dandelion estão salvas, mas se passarem dos portões ninguém será capaz de protege-las. - Disse com os olhos cheios de lágrimas.

- Aonde quer chegar com tudo isso? - Perguntei sentindo um calafrio passar pelo meu corpo. 

- Eu fiz vestidos e mandei milhares de garotas para fora de Dandelion. Nunca me preocupei em saber se estavam vivas, apenas as enfeitei da melhor forma que pude e fingi não ver o óbvio. Daqui a três dias, mais garotas serão mandadas para fora dos portões com promessas falsas de uma vida boa e farta. Todas contando com vestidos e joias que adornem seus corpos e as façam mais desejáveis. Todas estão cegas, não sabem o que está por vir. Mas, você não. Você é diferente delas.

- Sou? - Não sabia se podia tomar aquilo como um elogio ou uma ofensa. - Todos aqui te odeiam, inclusive sua própria família. Acreditam que você é amaldiçoada, mas eles sabem a verdade. Mesmo assim querem que você se case com algum nobre rico e garanta dinheiro e uma boa posição social para sua família. Tudo não passa de uma grande mentira. - Ela parecia extremamente perturbada.

- Mentira? Do que está falando? - Perguntei confusa. 

- Acabei me exaltando e fiquei um pouco confusa, me perdoe. - Me olhou assustada e começou a andar de um lado para o outro no quarto e colocar vários objetos numa bolsa de pano. - Você deve fugir. Eu devo salvar ao menos uma de vocês e você é a única com coragem para tentar. Fuja e veja como é o mundo lá fora e depois volte para contar o que viu e nos salvar das mentiras do Rei. - Odila me entregou a bolsa e segurou meus ombros com às duas mãos. 

- O que tem na bolsa? - Um mapa, algumas roupas do meu falecido marido, as moedas que consegui juntar e algumas maçãs. Sei que Cassandra tentará te impedir se descobrir. 000000 também não permitirá que vá, então é o mínimo que posso fazer. - Ela então começou a me empurrar até a porta. - Agora vá e não conte nada a ninguém sobre a conversa que tivemos. Diriam que estou contra o rei e com certeza tentariam me matar. 

É quase cômica a situação, pois, por algum motivo ela acredita que alguém falaria comigo sobre a minha possível fuga da Aldeia.

Eu nunca poderia entrar em casa com uma bolsa e uma capa vermelha, mas também não queria me separar dos únicos bens que eu já havia ganho. Peguei o mapa e desdobrei cuidadosamente para que não rasgasse, parecia antigo. No papel amarelado e antigo estava mapeado toda a área de Gorgonea, desde Dandelion até qualquer outra aldeia. Decidi então que levaria a bolsa comigo, que tentaria entrar em casa sem ser vista com qualquer coisa que complicasse ainda mais a minha vida. 

Que confiança eu podia ter em toda aquela loucura? Nenhuma, obviamente. Tudo era estranhamente suspeito. De repente, a mulher mais religiosa e supersticiosa da aldeia estava me aconselhando a fugir da aldeia e de todas as mentiras. Eu não quero ser tão ingênua a ponto de acreditar que ela estava realmente querendo se redimir de seus pecados, mas também não quero ter que passar o resto da minha vida com um homem ao qual eu não amo e correndo o risco de nem ao menos chegar viva ao meu destino como prometida.

A casa estava silenciosa, mas eu tinha a leve impressão de que minha mãe e Ângela estavam lá. Tentei olhar pela janela envidraçada da sala, mas nenhuma delas estava por ali. Entrar e ser pega por qualquer uma delas seria o fim de qualquer oportunidade de fugir desse lugar. Pior que isso, seria o mesmo que me auto condenar a morte. No meu quarto, havia uma pequena janela emperrada, mas me parecia uma ideia mais segura do que tentar confrontar o inimigo de frente. 

Quando finalmente consegui abrir a janela e pular para dentro de casa, escondi a bolsa com a capa e coloquei o mapa na camisa branca que eu estava usando, na região dos seios. Se eu perdesse a capa, ainda teria o mapa. Que, a meu ver, era o mais importante. Sai do quarto da mesma maneira que entrei e dei a volta na casa. Abri a porta e entrei normalmente pela sala, encontrando Ângela e minha mãe, sentadas analisando algumas joias espalhadas pela mesa de centro. 

- Qual será a cor do vestido? - Minha mãe perguntou assim que me viu. Consequentemente, Ângela também manteve seus olhos em mim. Aqueles malditos olhos azuis. 

- Odila pediu desculpas e disse que não irá mais costurar vestidos. - Eu disse com meu melhor tom de voz, mas não pareceu o suficiente, já que, instantes depois às duas estavam gritando como porcas indo para o abatedouro.

- Eu tenho certeza que você nem ao menos foi lá. - Ângela gritou vindo em minha direção. 

- Você está tentando prejudicar Ângela? Não se envergonha de uma atitude tão baixa? - Ela puxou Ângela cuidadosamente para si e a abraçou como se ela fosse o ser mais precioso de todo o mundo.

- Se não acreditam podem pergunta-la pessoalmente, mas terão a mesma resposta. - Respondi indo em direção ao meu quarto. 

Entrei no meu quarto mais uma vez e pensei que agora que havia conseguido desemperrar a janela eu podia, em fim, sair daquela casa. Mas a ideia de fuga foi diminuindo gradualmente quando lembrei que não tinha nenhuma habilidade física para lutar contra os monstros que, segundo os remanescentes, cercavam Dandelion. 

- Alyssa! - Minha mãe entrou no quarto e pude jurar que vi um pedaço da madeira se soltar assim que a porta se chocou contra a parede descascada. - Ângela e eu vamos sair, quero tudo limpo quando chegarmos. 

Apenas assenti com a cabeça e esperei às duas saírem para eu poder, enfim, comer algo decente. Meu pai, como sempre, passa metade do tempo livre em uma casa de jogos no centro da aldeia. Minha mãe tenta convencer tudo e todos que ele está fazendo pesquisas sobre ervas e botânica, mas todos sabem que ele é apenas mais um dos viciados em jogos que apostam até mesmo a família, quando é possível. O fato é que meu pai nunca realmente trabalhou em algo, mas por algum motivo ele sempre teve dinheiro para gastar em jogos, Ângela sempre estava com um vestido novo e minha mãe sempre tinha joias caras adornando seu corpo. 

Caminhei até a cozinha e após procurar em quase todos os armários, achei, em um pote de cerâmica amarelado, um tipo de pão de frutas mofado. Escutei a porta abrir bruscamente enquanto ainda estava na cozinha e escutei vozes excitadas, a da minha mãe era a mais audível. Pareciam extremamente felizes e isso não era um bom sinal. Não para mim.

Elas entraram em casa conversando alegremente, mas não alto o suficiente para que eu pudesse ouvir. Perdi boa parte da minha tranquilidade enquanto ouvia a risada das duas ecoarem pela casa. Tentei ignorar o estranho comportamento das duas e me concentrei apenas em terminar a limpeza da casa. 

Quase no fim da tarde, quando o céu já estava praticamente escuro, meu pai chegou. Minha mãe e Ângela estavam na sala olhando as várias possibilidades de tecidos para o vestido que Ângela usaria em sua primeira apresentação ao seu noivo. Ela era um ano mais nova que eu, mas por ansiedade das duas, ela seria enviada na mesma época que as outras meninas. Bom, acredito que não seja possível que todas as pessoas sejam inteligentes. É o caso claro de Ângela, que além de sua enorme beleza e arrogância, não há nada que a diferencie de uma mercadoria. E, para ela, isso é perfeitamente aceitável.

Meu pai nunca falava nada sobre o comportamento de Ângela, sobre a grosseria da minha mãe ou sobre a forma como eu era tratada pelas duas. Na verdade, ele parecia nem estar vivo. Tinha os olhos tão vazios e tristes. Eu não poderia culpa-lo, ter uma familia como a nossa não era algo que traria orgulho nenhum para um homem de Dandelion. Às vezes, eu imaginava que talvez ele não fosse tão feliz porque não tinha nenhum filho homem. Isso era algo que sempre trazia respeito para as casas, homens eram valorizados, fortes, úteis, robustos e serviriam diretamente ao rei. Mulheres, pelo contrário, eram inúteis, fúteis, gastavam muito e corriam o risco de terem que casar com algum homem pobre que não daria nenhum lucro a familia. Mas, tudo piorava para ele porque eu era sua filha. Digo isso porque vejo a forma como ele não consegue me encarar. Nunca me olhou nos olhos e se alguma vez falou comigo, eu já não me lembro. 

Ele vinha de vez em quando ao meu quarto, durante a noite, quando provavelmente achava que eu já estava dormindo. Remechia em um baú antigo e colocava coisas como; livros, roupas, botas, frutas e, às vezes, dinheiro. Era como se ele esperasse que eu achasse tudo aquilo. Embora, ele nunca tenha me dito diretamente. Muita gentileza da parte dele, mas ainda não era o sentimento de ter um pai. A sensação que eu tinha era a de ser alguém da qual ele apenas tinha pena. Era notável que ele não se importava o suficiente para fazer algo a respeito, então, mantinha esses pequenos gestos de solidariedade para que sua consciência não estivesse tão pesada no fim do dia. 

Quando terminei o jantar e todos terminaram suas refeições, eu pude voltar para o meu quarto. Não antes de escutar algumas críticas de Ângela, é claro. 

Me sentei na cama e observei a capa vermelha que Odila havia me dado. Ao lado dela, o vestido branco cheio de borboletas que Kamina havia costurado destoava completamente. Era como se as peças não fossem destinadas para a mesma pessoa. Isso me deixou confusa por um tempo. Quem eu estava sendo? Qual daquelas duas peças seria a que representaria melhor o caminho que eu tomaria? Odila disse que via coragem em mim e que eu era a única com coragem o suficiente para tentar mudar algo, mas e se ela estivesse enganada? E se eu fosse apenas um enganação? Talvez eu estivesse mentindo para mim mesma toda vez que queria acreditar que eu era diferente de todas as outras. 

Eu, inúmeras vezes, quis acreditar que era o que eu pensava ser. Entretanto, agora já não tenho mais toda essa certeza. Quando você conta várias vezes uma mesma mentira, em algum momento, até você começa a acreditar nela. 

Me deitei na cama e me agarrei com a capa, sentindo o cheiro do tecido antigo e imaginando como era o lugar de onde ele veio. Ao pensar nisso, o sono foi chegando lentamente e eu logo cai do sono.

- Alyssa, acorde e ponha seu vestido. - Escutei a porta do meu quarto abrir e minha mãe entrar. Abri meus olhos vagarosamente e vi que o sol já iluminava o horizonte.

- O quê? Por qual motivo? - Perguntei confusa e sentindo um enorme aperto em meu peito. Não podia ser algo bom.

- Você será apresentada ao seu noivo hoje, vista-se e espere a carruagem. - Ela soltou um leve riso e, por algum motivo, eu senti que não era uma situação favorável para o meu plano de fuga. 

- Ao meu noivo? Hoje? A apresentação não seria daqui a dois dias? - Perguntei desesperada me sentando na cama.

- Ande logo, quanto mais cedo você começar a se arrumar mais cedo seu noivo a encontrará. - Seu sorriso mal cabia em seu próprio rosto.

- Por qual razão a apresentação foi antecipada? - Questionei. 

- Alguém da aldeia parece ter espalhado boatos e blasfemado contra o rei, assustando nossas pobres moças. - Suspirou parecendo abalada, mas seus olhos tinham o mesmo brilho maléfico de sempre. - Mas a responsável já foi punida. Entretanto, as apresentações foram adiantadas para que nosso glorioso rei evite possíveis tentativas de fugas. 

- Mas isso não faz nenhum sentido! - Me levantei e encarei minha mãe tentando conseguir alguma compaixão. 

- Não questione as ordens do... - Ela deu uma pausa repentina assim que seus olhos pousaram com um pouco mais de atenção em minha cama. - O que é isso? Uma capa vermelha? 

- Mãe... - Tentei agarrar, mas ela foi mais rápida. - Isso é...

- Isso é obviamente uma clara falta de respeito com as regras do nosso reino. - Ela estava enfurecida. - Onde conseguiu isso?

Eu jamais poderia dizer que Odila havia me dado aquela capa. Ela provavelmente seria incriminada e seria acusada de tentar fazer uma das moças desviar do caminho que Uric havia escolhido para todos nós.

- Eu poderia te entregar ao guardas do Palácio, sabe disso? - Olhei para ela aterrorizada, mas ela continuou. - Mas não vou. Ângela terá sua apresentação em breve e tudo que eu menos quero é que minha filha seja relacionada a você. Vista-se e haja como uma garota normal.

Não consegui pedir que me devolvesse a capa, ela saiu do quarto com o tecido vermelho e parecia prestes a ter mais um de seus surtos. Olhei para o vestido branco em cima da cama e lembrei das coisas que eu havia pensado na noite passada.

- Então, você é o meu destino? - Encarei o vestido branco e senti uma enorme vontade de chorar, mas não me permiti isso. Chorar não mudaria a direção do caminho que eu estava prestes a tomar.

Tomei um banho e aceitei que não conseguiria fugir. Depois de encontrar a capa vermelha no meu quarto, minha mãe parecia ainda mais desconfiada de mim do que o normal. Se eu tentasse dar um passo para fora daquela casa, ela provavelmente me entragaria aos guardas sem qualquer remorso.

Embora ela tivesse ordenado que eu ficasse pronta antes dos guardas chegarem, eu simplesmente não conseguia me imaginar naquele vestido. Então, fiquei no meu quarto usando uma das roupas que eu normalmente usava enquanto todo o meu corpo entrava em colapso.

Ouvi batidas na porta e logo ouvi a voz da minha mãe gritando por mim. Fui até lá sem muito ânimo e assim que ela me olhou, eu pude ver que deveria ter colocado o vestido. Ela estava conversando com um guarda alto e forte na nossa sala. 

Olhei para além da porta e vi mais dois guardas, fardados e armados com espadas. Estavam esperando por mim. Todo o meu plano havia ido para o inferno. Pior ainda, se o que o minha mãe havia dito sobre estarem influenciando as garotas a fugirem estivesse certo, a essas horas, Odila deveria estar morta. Pois, ela foi a única que me falou sobre o rei e as cartas recém-descobertas do marido. Mais do que isso. O que fariam se soubessem que eu havia escutado tudo e planejava seguir a risca o que ela havia me dito? Talvez já soubessem e estivessem me levando para o mesmo lugar que ela. Para a morte. Se fosse o caso, explicaria a felicidade de Ângela e minha mãe. Um desespero muito maior do que o de encontrar o meu noivo tomou conta de mim.

- Posso levar algumas roupas íntimas? - O meu plano era ao menos ter a possibilidade de levar algumas das coisas que Odila me deu. O mapa eu colocaria no vestido que eu usaria, mas eu não tinha onde colocar o resto. E a capa, não era uma opção deixá-la, mas eu não tinha outra escolha. Minha mãe agora estava com ela. Mesmo que a capa representasse o recente sacrifício de Odila pela liberdade das garotas de Gorgonea e fosse o maior símbolo de que nem todos eram alienados a ponto de obedecerem tão cegamente as regras que eram impostas pelo Reino, eu não poderia levá-la. Mas, guardaria seu significado em meu coração. Me lembraria dela e sempre agradeceria internamente a Odila por ter acreditado em mim. Mesmo, que no fim, eu ainda estivesse tendo que seguir os planos do Reino.

Uric podia ser dono de Gorgonea, mas nunca seria dono da minha liberdade. Ele não é o meu rei. Mesmo que demore, um dia ainda poderei escolher o meu caminho.

- Apenas uma bolsa, com o básico. - O guarda respondeu distraidamente enquanto conversava com minha mãe.

Vesti o vestido branco e olhei o meu próprio reflexo no espelho enferrujado do corredor. Não estranhei quando vi que um vestido não mudava em nada minha aparência. Eu continuava parecendo uma louca. Comumente eu usava roupas masculinas, vestidos nunca foram práticos. 

Apanhei as laterais do vestido e levantei levemente para que eu pudesse caminhar sem nenhum risco de tropeçar em meus próprios pés, agarrei a bolsa de pano preto com algumas peças íntimas e todas as coisas que julguei necessárias e sai do quarto. Quando passei pela sala minha mãe não estava lá, apenas Ângela estava parada ao lado da porta.

- Como se sente assumindo um destino que não é seu? - Seu sorriso era ameaçador, tão tenebroso quanto o de nossa mãe. Meu pai não sorria muito, então eu não tinha como saber se os três eram parecidos nesse quesito.

Não entendi o que ela quis dizer, mas também não teria tempo para tal. Os guardas me chamaram e eu caminhei em direção a carruagem com a certeza de que algo estava errado e que a minha única chance de escapar estava morta, assim como Odila. 

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