Uma perfumaria em Kiev - 2016

O que faz uma pessoa normal, levando em conta os padrões da sociedade que definem a palavra "normal", sair do conforto de seu lar e entrar com um contador Geiger no pescoço em um local contaminado e que provavelmente vai te matar ou deixar gravemente doente se você demorar muito tempo?

O que leva uma pessoa normal a fazer isso, eu não sei. Falo dessa forma porque não sou uma pessoa normal.

Mas eu era, até o dia 25 de Abril de 1986.

Existem muitos fatores que destroem o psicológico de alguém: perder alguém da família, se mudar, perder a casa, o trabalho, ver as pessoas que ama sofrendo, lidar com doenças... Eu passei por tudo isso, então posso justificar quando vos digo que não sou normal, mesmo tentando manter a aparência na frente dos outros.

Certa vez entrei em uma perfumaria em Kiev, e rapidamente me enturmei com mulheres e mocinhas que faziam suas compras. Me senti normal, naquele momento fazia parte daquele espaço, me comunicava com as pessoas. Era como se fosse a velha, ou melhor, a jovem Tamara antes do acidente. Mas uma simples pergunta me fez perder o chão e lembrar de tudo, de quem eu era e de onde vinha.

— Este perfume também é um dos meus preferidos. Não encontramos produtos como esse por preços tão baratos na Ucrânia.

— Parece ser Inglês.

A senhora que segurava o frasco a minha frente sorriu. Era gentil, e era quase estranho que alguém estivesse mantendo um diálogo saudável comigo, sem falar que sente muito ou perguntar se estou bem.

— Você é de Kiev?

Aquela simples pergunta era capaz de destruir meu dia. Algumas perguntas tem mesmo esse poder, como também quando perguntavam quantos filhos eu tinha.

— Não, sou de Slavutych.

Esfreguei minhas mãos nervosamente e encarei a senhora com um sorriso tímido, esperando o "sinto muito" ou alguma pergunta sobre Chernobyl. Mas ela apenas franziu o cenho e recolocou o perfume na prateleira, procurando outro que pudesse despertar seu interesse.

— Eu reconheço esse nome de algum lugar, mas não lembro bem. Onde fica Slavutych?

Slavutych era o único lugar que eu talvez pudesse chamar de lar, foi onde nos jogaram depois das evacuações e onde se pode encontrar os sobreviventes de Chernobyl. Escolheram essa cidade para nós, mas se eu pudesse ter escolhido na época iria para o mais longe possível de Chernobyl e da Ucrânia. Mas estávamos todos desnorteados, não tínhamos muita opção. Aquele lugar horrível construído as pressas para nos abrigar foi o que nos deram, e era tudo que tínhamos para tentar nos reconstruir. Uma população sem nada além de danos psicológicos, perdas e genética propensa ao câncer, todos unidos a 45 quilômetros da usina e sua antiga cidade, ajudando uns aos outros na tentativa de continuar sobrevivendo.

Felizmente a senhora não reconheceu que cidade era. Se tivesse reconhecido talvez saísse correndo com medo de alguma partícula radioativa que ainda existisse no meu cabelo passar para o dela. Digo esse absurdo porque fizeram antes, muitas vezes.

Para as pessoas eu ainda era radioativa, e para mim também.

Antes que ela perguntasse algo a mais, paguei o que tinha pego e saí da loja. Não pretendia chorar ou me deixar abater. Era só uma pergunta. E eu era só uma mulher passando um tempo na cidade da filha e comprando um perfume.

Antes de chegar na casa de Olga, que havia se mudado para Kiev há alguns anos, recebi uma ligação de Boris, meu marido. Ele não saia de Slavutych com muita frequência, sempre foi resguardado e havia ficado mais ainda depois da última cirurgia de tireoide. As vezes dizia que Slavutych era sua segunda Chernobyl, só que sem a usina. Qualquer pessoa de fora que ouvia isso ficava levemente pensativo e talvez com pena.

Sentei em um banco de madeira em uma pequena praça. Algumas crianças corriam para lá e para cá, o que sempre me arrancava um sorriso. Nós tínhamos uma praça como essa em Pripyat.

— Oi! Como está?

— Bem, assistindo ao jogo. Como Olga está?

— Muito bem.

Conversamos um pouco, pelo menos até começar a escurecer. Quando cheguei na casa de Olga a encontrei fritando ovos na cozinha enquanto seu marido, Ivan, assistia ao jogo de futebol. Provavelmente o mesmo que Boris.

— Eu trouxe o perfume que você pediu.

— Deixa na mesa!

Sorri para ela e fui ao banheiro, não sem antes observar como parecia feliz com a simples e corriqueira tarefa de cozinhar. Na maioria das vezes, Olga parecia ter esquecido o que aconteceu, mas eu sabia que não. Ela era só uma criança na época da explosão da usina, mas sei que nada havia saído de sua memória, pois as perdas dela foram até maiores que as minhas.

E pensar que naquela madrugada ela só tinha 10 anos de idade. 10 anos quando o inferno começou.

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