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De volta à floresta.

Não é real. Nem estou aqui de fato. Nada é real.

Mas posso sentir. O vento, o silêncio. Estou aqui sim.

Acho.

De novo uma trilha. De pedras, douradas.

Trilha do ouro... eu sigo... sem saber... sem lembrar... mas sigo.

Batuques.

A lua ilumina a mata escura e ouço.

Batuques.

O vento sobre mim, ainda sem roupas... sem frio... sem dor.

E eu sigo. Devagar e atento.

Lá na frente, um templo de proporções magníficas. Admiro-o em sua opulência.

A belíssima pirâmide cortada no topo é formada por blocos de pedra muito bem unidos. Tal visão me parece familiar. Creio já ter estado aqui um dia, assim como na casa do barão.

Continuo pela trilha dourada. Devagar e atento. Ao som dos frenéticos batuques.

Árvores passam, chego perto. Lá na frente, parados. Homens guardando a entrada do templo com lanças. Escondo-me.

Observo-os por um longo período enquanto permanecem imóveis como estátuas.

O tempo se desenrola e nada muda, nem os batuques. Ando por entre as folhagens rente à trilha, passando diante da entrada e perto dos guardas, sem deixar de vigiá-los constantemente.

Nenhum movimento. Pego uma pedra; atiro na direção. Nenhum movimento.

Outra pedra, agora na cabeça de um. Estátuas continuam estátuas.

Deixo a proteção da floresta e apareço. Não há reação. Aproximo-me enfim da entrada.

Examino os dois guardas e suas lanças enfeitadas com penas azuis. Humanos. Congelados no tempo enquanto seus olhares se perdem no horizonte da mata fechada. Rostos pintados envoltos em tiaras metálicas com penachos na altura da testa. Colar de folhas no pescoço do primeiro, bracelete feito de pele animal no braço do segundo. Ambos usam enormes vestes brancas de tecido fino, contrastando com os demais elementos da roupagem. Cintas prendem as vestes e sustentam longas adagas.

Removo uma delas e utilizo-a para arrebentar a cinta. Depois dispo o guarda com certa dificuldade. A veste deve servir; experimento-a. O homem também usava uma espécie de colete de folhas e tiras de couro. Removo sua tiara a fim de incrementar meu disfarce. Levo também a adaga. Pretendo adentrar o templo e descobrir o que lá acontece. Talvez um ritual...

Atravesso o frontão sob o som lancinante dos batuques... deve haver muita gente lá dentro, estou no corredor. Blocos de pedra e tochas metálicas acesas nas paredes... pego uma e sigo.

Passos lentos, o túnel se divide, viro à esquerda, ando. Algo lá na frente... buraco enorme!

Deixo a tocha cair e vejo. Espinhos que sustentam o corpo dilacerado. Sua roupagem difere da dos guardas... um intruso... assim como eu. Viro-me e sigo na direção oposta com um novo brandão.

Túnel opressivo... recordo... masmorra... murgons. Continuo em frente.

Curvas, corredores, pequenas passagens e saletas. Ignoro-as, permanecendo atrás dos batuques. Se me perco, eles me encontram, sempre, até que avisto uma escada.

Lá em cima... no corrimão... há cobras retorcidas! O mesmo símbolo da casa do barão, agora em estatuetas!

Elas... estão se virando... para mim... estão vivas e olhando para mim!

O que devo fazer? Fitam-me em posição de ataque! Estão se mexendo e vindo para cá pelo corrimão!

Ameaço fugir mas desisto. Devo enfrentá-las se quiser seguir em frente. A primeira desce rastejando pela minha direita e pára. Faz círculos com o corpo e ergue sua porção superior para dar o bote. Espero pelo momento oportuno até que ela finalmente ataca; minha adaga corta o ar, decepando-lhe o pescoço. Neste momento recebo a picada da outra serpente na perna esquerda, fazendo-me perder o controle.

Cambaleio nos degraus em débil tentativa de escapar. O réptil é mais rápido e me alcança. Outro bote na mesma perna. A dor é insuportável.

Viro-me para a criatura que já ameaça atingir meu braço, tiro-o a tempo e o ataque se perde no vazio. Tento então lhe passar a adaga, mas sou surpreendido pela agilidade de meu adversário que também escapa.

Estamos quase no topo da escadaria e a luta é feroz. Seria-me bem mais fácil se porventura possuísse uma espada. Minha mão quase é atingida. Em seguida, ela ataca o pé direito que tiro por instinto.

Começo a sentir tontura, vertigem, a cobra dá o bote junto a esses batuques intermináveis. O ouvido não aguenta enquanto a perna quer explodir. Desorientado... perdido... novo ataque! Escapo por milagre, porém mal consigo andar. Apoio então o cotovelo na balaustrada quase indefeso. O bicho me encara, mirando-me a face; seu bote é mortal. Por um instante posso contemplar dentes afiados nesse monstrinho de olhar ferino. Minha mão salta sem que eu perceba e intercepta o “pescoço” do inimigo no ar, fazendo-me encarar o réptil novamente, mas com o semblante de um predador.

Tal adversário, todavia, não se dá por vencido e tenta debilmente se enrolar em meu braço, perdendo a cabeça num golpe poderoso. Terei de lutar contra o veneno se quiser continuar em frente.

Que templo incrível! Num instante aquelas serpentes eram estatuetas, noutro, animais de verdade. Por que os guardas não se materializaram? Preciso alcançar os batuques logo! Talvez contenham pistas importantes.

Escadas me levam a um novo corredor, mais largo. Suas paredes mostram saliências esculpidas sob formas animais: leões, cavalos, elefantes. Noutro ponto vejo uma pequena sequência histórica sobre um grupo de monges e um minotauro. Examino cada painel minuciosamente. Tais sacerdotes carregam oferendas como se a criatura representasse um deus. Vertigem de novo, veneno da cobra. Devo continuar pelo corredor, sempre em frente.

Cambaleio, recosto-me na parede e levo um susto. Pareceu-me que um dos elefantes criou vida; só impressão. A perna esquerda dança ao som dos batuques que estão sempre mais intensos.

Preciso seguir; estou tonto. Busco forças para lutar contra o veneno.

Devo andar... perna bamba... batuques.

Monges dos painéis... estão vindo... estão saindo da parede e vindo pelo corredor... fugir... devo fugir!

Não consigo! Eu não consigo! Minha perna está pesada demais! Os monges. Me pegaram! Quero lutar mas não consigo! Apanharam a adaga! Longas togas azuis, sandálias e cajados. Maldito! Largue já meu braço! Ahhrgh!!! Estão a carregar-me pelo corredor!!!

Cantam em coro... os monges... em suas longas togas azuis com cobras bordadas.

Lá atrás... parado... de braços cruzados... peito nu... calça de lã... o minotauro!

Atravessamos o corredor e penetramos uma imensa galeria. Lá encontro uma multidão em polvorosa e mais sacerdotes!

Tento gritar e fugir, mas sinto-me quase tão pesado quanto um boi. Ainda assim, sou carregado para o meio do grandioso salão.

Ao redor, a multidão já brada minha entrada. O ribombar interminável de sempre passa a ser levado de forma diferente. Manipulando tambores, homens como os que encontrei na entrada do templo trajando longas vestes brancas de tecido fino, tiaras com penachos, adagas e colares de folhas. Só que estes, diferentemente dos anteriores, estão mais vivos do que nunca.

Com a chegada do último convidado, o ritual segue seu rumo macabro, assumindo um tom de frenesi. A multidão de idólatras entra em comunhão alucinada enquanto sacerdotes de todos os cantos jogam líquidos em mim.

Nas proximidades, enormes estátuas de mulheres com os braços levantados servem de colunas para o santuário. Abaixo de uma imensa laje está o altar feito a partir daquele belíssimo pedestal onde a sumo sacerdotisa – cujas mãos espalmadas exibem uma jarra de barro e um punhal com cabo em forma de serpente – se encontra. De todos os integrantes do ritual, esta mulher é a única que permanece imóvel. Seus olhos me fitam à espera do momento crucial.

Continuo tentando fugir de forma débil e inútil, pois a cada instante sinto-me mais pesado. Pálpebras esgotadas imploram por descanso enquanto a consciência almeja rendição absoluta. Não deixo! Devo resistir! Lutar! Batuques! Líquidos melam meu rosto! Mãos me tocam! Homens gritam, dançam, conclamando as entidades que seguem, aos berros! O frenesi vai ficando pior até uns se cortarem, oferecendo o próprio sangue aos deuses.

Mas a seiva que esses santos desejam não pertence a fiel algum. Em pouco tempo o líquido envenenado que circula em mim dará nova cor à pequena serpente empunhada pela mulher com tanta convicção.

Nesse ínterim, do outro lado da galeria, o minotauro traz uma pequena caixa dourada, entregando-a ao monge mais próximo que retira do próprio manto uma chave para abrir aquele estranho receptáculo que sem sua tampa passa a emitir brilhos ofuscantes. A caixa é levada até o santuário com cuidado.

Viro-me novamente para a sacerdotisa, que agora está envolta em mantos rasgados, amuletos e usa uma estranha máscara que mais parece o crânio de um homem circundado por penugem vermelha na altura da testa.

Seus pés se movem pelos degraus que ligam o altar ao resto da galeria e seguem até onde estou. Os fiéis reverenciam a mulher sem tocá-la, como se uma aura protetora emanasse de seu corpo. No centro do salão, continuo a ser lambuzado pelo amontoado de pessoas que me cerca. Um monge com o rosto coberto se aproxima, vira-se para a sacerdotisa e exclama:

Dehvorak! Venha! Esse aqui está vivo!

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