Capítulo 03

                                                            •Isabela•

Na mão, Agatha Mary Clarissa Christie, em seu romance policial, que a consagra "Dama do crime". Poucos nessa cidade tem como prazer uma boa leitura, por esse motivo, "O Assassinato de Roger Ackroy" em uma tarde agradável de domingo permanece sendo minha única companhia, as garotas que conheço não apreciam uma conversa intelectual, então grande parte do meu tempo livre encontro-me aqui, nesta pequena praça que na maioria das vezes está vazia.

Todavia, hoje está sendo um dia muito agitado devido a chegada do sobrinho neto do conde, o único herdeiro da fortuna Russell, príncipe de algum lugar na Inglaterra, o que o torna, o solteiro mais cobiçado entres as damas desimpedidas e até mesmo compromissadas do vale. Senhora Jennet que o diga, prima de terceiro grau do conde George Russel, provavelmente pretende se incluir no testamento, longe de mim julgar uma solteirona que em plena tarde ensolarada usa seu melhor vestido de gala e joias falsas, espontaneamente!

Desisto de tentar concentrar-me, é literalmente impossível com tanta euforia. Fecho meu livro e levanto-me deixando a praça.

—Vai se esconder esquisita? —Eu conhecia bem aquela voz, epa estava constantemente nos meus pesadelos. Ashley! 

Ignoro seu tom provocativo e continuo a andar, porém, ela honra sua personalidade insuportável —É um favor que faz a cidade poupando-nos dessa vergonha perante o sobrinho do conde em sua chegada. —Respiro fundo e forço meus pés a virarem para sustentar seu olhar. 

—Para sua alegria, não farei parte do circo, creio que já tem palhaças demais! —Seu nariz torce em reprovação. —Passar bem. —Ela só não retrucou, pois, uma correria começou seguida de gritos histéricos e reações exageradas. Quase que como padronizado, muitas das garotas começaram a bofetear a própria face na busca de um rubor. 

—Por Deus! —Grunhi aterrorizada. Ashley era uma delas, até sua postura mudou. Uma fileira de carros aproximava-se pela saída principal da cidade. Agradeci tanta atenção oposta e continuei meu caminho, indo em direção contraria ao alvoroço.

Passei em frente a mansão do conde que acabara de sair pela porta, para aguardar os carros que se aproximavam, mas mesmo de longe me avistou, e acenou discretamente. Retribui, balançando o livro na minha mão direita, um exemplar que o próprio me presenteou após uma visita a mansão Russel, nunca pensei desejar entrar naquela casa novamente, mas a biblioteca dos sonhos estava lá, e apesar das inúmeras mudanças desnecessárias que Russel trouxe para a cidade, eu gostava dele!

Era um bom líder. E me emprestava livros, ou seja, era um bom amigo! 

Pouco tempo depois de uma caminhada aos arredores da mansão, chego ao bosque escondido por árvores, que contém um pequeno coreto, meu lugar preferido para ler.

Abri o livro na página que parei ainda andando, e sento-me confortavelmente (largada) no único banco dentro do coreto.

Ouço então um pigarrear chamando minha atenção, havia outra pessoa ali, o encarei assustada.

—Desculpe, eu não sabia que estava ocupado! —Levanto-me depressa envergonhada pela postura, o rapaz sorriu com meu constrangimento.

—Não se preocupe, eu já estava de saída. —Sorriu novamente fazendo-me encara-lo encantada com tamanha beleza jamais vista, pelo menos por mim. Digno de uma protagonização literária, ou não, pois nem nos meus melhores romances vislumbrei que alguém pudesse ser tão agradável aos olhos.

—Mentira! —Falei ainda hipnotizada por seus olhos azuis.

—Como? —Volto para a realidade sentindo minhas bochechas esquentarem. 

—Perdão, digo, você não estava de saída é cavalheirismo da sua parte, pode ficar eu volto outra hora. —Apresso-me para sair ainda quente de vergonha.

—Senhorita! —Viro-me no mesmo instante. —Eu não quero atrapalhar sua leitura, apesar de propor que este coreto é grande suficientemente para um casal... duas pessoas eu quero dizer! —Não o respondo, notando seu recente desconforto, nós dois estamos constrangidos? Por qual motivo? —Agatha Christie? —Demoro para associar sua pergunta ao livro que eu carrego na mão direita.

—Sim! Você conhece? —Agora sim estava intrigada.

—Um pouco, comecei acompanha-la após um encontro rápido em minha passagem pela Inglaterra! —Ignoro sua modéstia forçada e permito-me ficar surpresa a ponto de força-lo a contar detalhes por detalhe da minha autora favorita.

—Você a conhece? —Perguntei boquiaberta, seu semblante ficou divertido.

—Não! Foi apenas um coquetel de apresentação quando ela lançou A Morte do Almirante.

—Eu nunca ouvi falar. 

—Certamente não chegou até aqui ainda, eu tenho um exemplar posso empresta-la se quiser.

—Eu adoraria, é um passo importante para acreditar em você. —Ironizei, para não parecer ameaçadora e arrogante.

—Então agora tornou-se uma questão de honra. —Nos encaramos por poucos segundos até seu sorriso insistir novamente em me tirar o fôlego. —Prazer, Stephan.

Admiro seu nome pronunciado por ele mesmo, e percebo que nenhum outro combinaria mais.

—Amélia! 

—Amélia... —Repete meu nome como se quisesse grava-lo. —Então o que faz sozinha aqui? —Encostou-se na viga com uma postura autoritária. 

—É meu lugar preferido para ler.

—Ora, acaba de se tornar o meu preferido para admirar a paisagem.

—Bom, não entendo de paisagem, mas, sei que não é a mais bela. —Afinal em volta, apenas árvores e um caminho de pedras é visível. 

—É uma questão de ângulo acredito. —Diz ainda olhando-me com um brilho curioso no olhar.

—Nesse caso, teremos de revezar, já que para ser o meu lugar favorito, levo em conta o sossego, silêncio e claro, longe de todos. 

—Nesse caso, torna-se um simples coreto sem graça. —Não o respondo a altura. Ele zomba de mim ou é um louco perambulante e corro perigo. —O que você tem contra as pessoas? —Ignoro os pensamentos entendendo sua tentativa de recuperar a conversa.

—Nada, eu até gosto de uma conversa agradável e companhia, mas digamos que as pessoas dessa cidade só sabem falar sobre bens e aparência. —Observo pela primeira vez alguém prestando atenção no que eu falo. —Não consigo conversar mais do que cinco minutos com alguém sem que me olhem como se eu fosse uma fugitiva de manicômio. 

—Entendo perfeitamente. —Sorriu de canto, olhando ao redor. —Então é por isso que se esconde aqui?  

—Não me escondo, eu fujo mesmo, é a definição correta. Se bem que, essa semana em especial não se fala em outra coisa senão a chegada do sobrinho do conde. A costureira não deu conta de tantas encomendas de última hora, damas de todos os cantos se emperiquitando para o tal. Madame Blanchet é uma ótima pessoa, mas tem a língua afiada, logo toda a cidade ficou sabendo, sua melhor estratégia de vendas diga-se de passagem. Ele chega hoje, não sei se você sabe, por isso que eu vim pra cá, o centro da cidade está parecendo um baile a fantasia. 

Stephan gargalhou dessa vez, uma risada contagiante e sincera, antes de voltar a me olhar divertido. 

É por isso que eu não falo o que penso, foi-se a chance de fazer um amigo.

—Interessante, e você não quis esperar pela chegada dele arrumada? —Seu olhar ficou penetrante.

—Se eu realmente me importasse estaria ofendida. —Forcei um sorriso e falhei miseravelmente. Passei de estranha e lunática para motivo de piada. 

—Espera, eu não disse nada disso! Estou me referindo a chegada dele, não te interessa? —Ri alto debochando de sua pergunta, ou de mim mesma.

—Olha pra mim! —Sugeri como se fosse obvio. 

—Estou olhando! —E ele realmente estava. 

—Agora olhe para elas, não, eu não me prestaria a isso, além do mais, ninguém aqui é receptivo, o conde anunciou semana passada que seu sobrinho está solteiro e procuraria em Constant uma companheira para levar para a Inglaterra de vez, por isso estão todas parecendo um pavão para impressiona-lo.

—O conde disse isso? —Dei ombros. 

—Nada contra, mas eu adoraria que ele fosse um tanto quanto, incomum, me entende? —Sento-me novamente no banco e ele sentou-se a meu lado.

—Na verdade não!

—Feio sabe?! Ou qualquer característica que desiluda todas elas. Embora seja muito provável que sua personalidade por si só, já seja suficientemente deplorável.  —Ri sarcástica imaginando a cena. —Como se isso fosse pretexto. 

—Acho impossível, ouvi falar muito sobre ele, inclusive sobre seu sucesso com a mulherada. 

—Deve ser um metido!

—Só porque ele é cobiçado?

—Pela sua posição social também. Mas, não estou julgando, estou te dizendo como eu vislumbro as dezenas de árvores natalinas ambulantes se desencantando quando o vissem, seria hilário. Mas, e você Stephan, está de passagem? Que você é novo aqui eu já sei, mas qual o motivo da sua vinda?

—Visitar alguns parentes! E sim, é só a passeio.

—Sorte sua. 

—Então Amélia, faz mais de cinco minutos que estamos conversando, já posso te chamar de amiga? —Ri alto mais uma vez, eu provavelmente ri mais em uma simples conversa do que ao longo do ano.

—Não é tão fácil assim, antes você precisa me emprestar aquele livro que prometeu.

—Eu pensei que você não era interesseira. —Finge estar decepcionado.

—Sinto lhe decepcionar, eu sou sim. —Aproximo-me para falar baixo, lançando uma piscadela no final.

—Por sorte, eu sou um homem de palavra.

—ISABELA? —Olívia gritou tão alto que o livro saltou da minha mão, e meu coração quase que saí pela boca. 

—QUER ME MATAR DO CORAÇÃO? —Gritei ainda muito acelerada.

—Porra, te chamei várias vezes! —Parecia realmente nervosa.  —Perdeu a hora e ainda nem tocou no café, corre, não vou me atrasar por sua causa! 

Respiro fundo olhando a hora no relógio da cozinha, realmente perdi a noção do tempo.

Levanto-me depressa pescando minha mochila, enfiei o livro dentro e virei uma quantidade de café em um copo térmico para ir tomando no caminho. 

Não pudemos recusar a carona da Ellie dessa vez, estávamos atrasadas e eu queria aproveitar todo meu tempo livre para continuar lendo o melhor romance que já li em toda minha vida. 

—Pelo jeito foi uma boa ideia ter pedido as caixas. —Ellie diz observando o livro.

—Eu te digo isso quando terminar, espero que o final não me decepcione, afinal é um romance de época.  —Falei sem desviar meu olhar das páginas.

—Eu não teria tanta expectativa, romance de época é um universo perigoso. —Deixou-me ainda mais curiosa para terminar. —Qual o nome?

—Eu não sei, acredita que é escrito a mão? —Ellie não ficou tão surpresa quanto eu esperava.

—Não tem título, as páginas estão todas soltas e não tem nenhuma assinatura ou dedicatória do autor.

—Sério? Será que não é um diário com uma escrita diferente?

—Não, eu já pensei nisso, mas a tinta da caneta não é tão antiga assim, a história se passa em mil novecentos e trinta e quatro, as folhas também estão muito bem conservadas.

—Interessante.

—Tenho quase certeza que os outros livros da caixa são do mesmo autor.

—Com uma letra dessas, está mais para autora. —Olhou brevemente enquanto o sinal ainda estava vermelho. 

—Bem observado, tem mesmo jeito de ser uma escrita feminina.

—Sim! Bom, se os outros livros forem mesmo da mesma autora deve ter algum nome, mas como você vai saber?

—A narrativa dele ou dela é inconfundível, eu saberia só em ler.

—Bom, já que vocês não me perguntaram eu vou contar. —Olívia começa de repente. —Me inscrevi nas aulas complementares de sociologia.

—Sociologia? —Ellie e eu rebatemos juntas.

—Sim, decidi estudar direito e isso vai me ajudar!

—Direito? Sempre achei que você fosse fazer direito acredita? —Ellie comentou orgulhosa.

—Ela não faz nada direito! —Retruco provocando.

—Eu vou te falar quem não fez direito pra nascer essa cara de carranca!

—A mesma que fez a sua cara de cavalo! —Devolvo e recebo um puxão de cabelo do banco de trás. Minha convivência com Olívia se resumia em momentos raros de muito amor e parceria, mas na maior parte do tempo parecemos cão e gato. Por pura diversão. 

—Amor de irmãos é uma coisa linda. —Ellie suspirou ao comentar. —Eu não vou jantar em casa hoje, deixei dinheiro para pedirem algo se quiserem. —Diz parando o carro em frente ao colégio.

—Huuum, por acaso seria um encontro? —Olívia indaga em tom malicioso. 

—Com o trabalho, só se for. —Bufou desanimada. —Boa aula, não deixa de prestar atenção para ficar lendo, amo vocês!

—Pode deixar, obrigado pela carona. —Respondi trocando olhares com Olívia. Antes de descermos. Fecho a porta e a vejo se afastando. 

—Soube que a escola também tem complementares de dança. Você podia fazer uma aula experimental. —Olívia sugeriu de repente enquanto caminhávamos lado a lado. 

—Aqui não. —Respondi apenas. 

—Só porque estamos na mesma escola que a mamãe estudou? —Parei de andar, surpresa com sua pergunta. Ela pareceu se arrepender no mesmo momento. 

—Porque aqui não! —Dito isso, deixei Olívia para trás e fui direto para a sala. Contrariando o pedido da Ellie, passei a maior parte do tempo lendo discretamente. Nas trocas de aula, andei com a cara no livro, chegava primeiro nas salas e sequer olhava para quem estava ao meu redor. 

Amélia passou a se encontrar com Stephan todos os dias no coreto, enquanto na cidade, todos estavam alvoroçados com a notícia de que o sobrinho do conde já havia chegado na madrugada sem ninguém perceber. 

Aguardava o momento em que ela descobrisse, ele é claro manteve sua identidade oculta, com medo de que Amélia mudasse sua postura com ele. Conde Russel, soube pelo próprio sobrinho que conheceu a única jovem que ele julgava extraordinária. 

Me encontrei com as meninas no intervalo e soube pela Vienna que a tarde do cinema que ela havia comentado, foi remarcada para amanhã, segundo ela, por insistência da Anne. Guardei para mim o comentário de que nem me lembrava mais.

Estávamos no refeitório quando seus namorados chegam, Theo e Noah, a conversa era sobre o teste de futebol que seus amigos estavam participando, então concentrei-me na minha leitura.

—Eu sabia! —Ri sozinha atraindo a atenção de todos. Não percebi que tinha pensado alto.

—Que o Ethan iria passar pra capitão do time outra vez? —Theo perguntou desconfiado.  

—Quem é Ethan? —Eles ficaram ainda mais confusos. Só então percebi que as conversas haviam se misturado. —Estou falando do Stephan, Amélia finalmente descobriu que ele é o conde.

Eles riram balançando a cabeça negativamente. 

***

Cheguei em casa sozinha já que a Olívia ficou na escola em sua primeira aula complementar, e por motivos maiores (cafeína), decido dar uma volta na cidade e conhecer o tão falado "Le Coffe".

Pesquisei o endereço e decidi ir caminhando. Fica a quinze minutos de casa, peguei o livro em minha bolsa e aproveitei para conhecer a cidade, ou parte dela.

O café fica em um bairro bem famoso de Ottawa, o ByWard Market. Um dos pontos de turismo, por conta da catedral de Notre-Dame, que fica a uns dois quarteirões do café.

Viemos morar aqui tem quase dois meses, a sede de onde a Ellie trabalha sempre foi em Ottawa, com a maior filial em Miami, onde trabalhava. Ofereceram um cargo ótimo com excelente remuneração para que ela viesse administrar seu setor de eventos daqui, o grande forte da empresa. 

Ela recentemente coordenou a inauguração de um cruzeiro, acompanhei tudo de perto, mas veio mesmo para ficar na linha de frente no coquetel presidencial que acontecerá em algumas semanas, onde pelo que me contou, irão receber nomes importantíssimos do mundo inteiro aqui mesmo em Ottawa. Um dos eventos mais importantes da cidade pelo que pesquisei, pois ele reúne, as maiores corporações e donos de empresas multimilionárias do mundo, além de governantes, embaixadores e representantes de diversos países, presença confirmada devido ao leilão beneficente que o evento oferece, viabilizado inclusive pela ONU. Ou seja, não é pouca coisa mesmo! 

Um ambiente muito propicio para se fazer negócios e fechar grandes parcerias. Eu fiquei sim muitíssimo feliz por ela, a única questão é que aqui, era o último lugar da terra que cogitaria morar, por diversos motivos. 

Já no "Le Coffé", entro com expectativa vendo o espaço lindíssimo, romântico e contemporâneo, é como estar em uma cafeteria na França, até muito mais clássica. Como esperado,  não encontro nenhuma mesa vazia, então peço um café para a viagem e saio da loja a fim de continuar andando. Caminhei por exatos dois quarteirões até estar de frente para a Basílica. 

Um magnifico exemplo de arquitetura neogótica. Em seu exterior, na fachada principal há duas elevadas torres revestidas de pedra, que dão um ar esplendoroso à construção. 

 A praça é enorme, repleta de turistas, e moradores locais que adentravam a catedral, que muito provavelmente teria uma celebração ao cair da noite. Sentei em um banco úmido qualquer, onde pude observar brevemente o vai e vem de pessoas.

Procurei pelo capítulo que parei, com dificuldade por conta do vento, então decido retira-lo para ler separadamente, o que me dava ainda mais a sensação de estar lendo um projeto inicial, já que as páginas eram presas capítulo por capítulo, sem estarem de fato presas a capa.

Não tenho ideia de quanto tempo fiquei ali sentada, viajando no romance de época, imaginando se é uma história real, para um autor escrever à mão com tanta delicadeza e paciência. 

***

O café esfriou, meu bumbum tá amassado e o livro está quase no final. As luzes da praça foram todas acesas, e foi nesse momento que percebi que já era noite. Passei o resto da tarde aqui sem nem sentir o tempo passar. Minha barriga ronca anunciando a fome então decido voltar para o café, e dessa vez pegar alguma coisa para comer.

Levanto-me do banco anestesiada, uma sensação de estar vindo de outro universo, me sinto como se tivesse passado a tarde inteira em 1934, completamente perdida no tempo. Olhar brevemente a catedral em todo seu esplendor ao tocar os sinos, foi ainda mais nostálgico. Eu acabo de eleger este o melhor lugar para viajar no tempo através de uma leitura, pois não houve um choque de realidade. Tudo ornou, perfeitamente, cenário e história.

Talvez por isso o livro tenha ficado ainda mais intenso, como se me carregasse para dentro dele!

Atravessei os quarteirões e entrei no café, agora um pouco mais vazio, mas ainda muito agitado, não conseguiria me concentrar no penúltimo capítulo como gostaria. 

Pedi um café tradicional para viagem e alguns donuts, sai do café sendo surpreendida com a noite gélida, mais do que eu estava preparada para suportar com uma única jaqueta preta, ainda por cima de couro, daquelas que não esquentam nem em um dia de meia estação. 

Mas, acreditei que um café bem quente pudesse ajudar, me recusava ler o último capítulo em casa, e estou ansiosa demais para esperar até o dia de amanhã.

O livro está em um momento decisivo na qual Stephan precisa decidir se volta para Inglaterra ou fica e tenta reconquistar Amélia novamente, é um pouco óbvio, mas como a Ellie disse, os romances de época são imprevisíveis. E eu não perco esse final por nada.

Esperei passar os carros para atravessar a rua, aproveitei para tirar o lacre do café dando um gole no mesmo, admirando as luzes da praça que iluminava a saída da catedral, não poderia haver um cenário melhor. 

Um carro parou me dando passagem, agradeço e aperto o passo, foi quando no meio da rua uma moto passou em alta velocidade sobre a poça que eu estava prestes a desviar, me encharcando por inteira.

—Filho da puta! —Rosnei para mim mesma estagnada, terminei de atravessar com passos tão fortes que não duvidaria se abrisse uma rachadura no asfalto, o que não seria nada mal!

Eu só não sabia que a tragédia mesmo, ainda estava por vir. Chegando na calçada,  encarei os papeis soltos na minha mão começando a borrarem.

—Não... nãonãonãonão não!!!! —Assopro as páginas como se isso fosse realmente adiantar alguma coisa. —Os últimos capítulos não! —Manuseei com cuidado me apressando para ler, antes que a tinta da caneta manchasse. —Sinto-me lisonjeada coronel, mas presumo que seja tarde para uma proposta, mesmo que tentadora... não, não some!

Derrotada, vejo a tinta antiga da caneta manchar o papel até que todas as palavras ficaram ilegíveis. 

Eu nunca vou saber o final do livro!

O pavor me consome. Sinto-me numa final de copa do mundo histórica, onde o melhor jogador do time recebe um pênalti a nosso favor, nada poderia dar errado, e quando o mundo todo vibra com torcidas e zicas, ao se aproximar da bola... a energia acaba, e só quem estava presente no estádio presencia a vitória ou possível derrota. A única diferença, é que quando a energia voltar, todos os programas irão reprisar o momento histórico, já aqui... as páginas vão secar, e eu nunca se quer vou saber como procurar por outro exemplar, que muito provavelmente não exista. 

—Não pode ser! —Eu me recusava acreditar.

Para minha surpresa, do outro lado da praça, não muito longe de onde eu estava, avistei o mesmo motoqueiro estacionar, foi tempo suficiente para marchar até lá dominada pela raiva, sem o mínimo controle sobre meus atos. 

Talvez a pior decisão que eu tenha tomado em toda minha vida. 

Atraindo olhares estranhos do tipo: O que essa retardada está fazendo molhada na rua, nesse frio? Frio esse que eu nem sentia mais devido ao sangue fervendo de raiva.

O garoto estava de costas para mim, retirando seu capacete, quando finalmente desceu da moto. Uma garota se aproximou dele como se já estivesse o esperando. Ele é grande? É! Pode ser um psicopata? Pode! Mas, eu não estava me importando com isso no momento. 

—Ei você! —O chamei perto suficiente para saber que era com ele. 

O garoto me olhou como se nada tivesse acontecido. Se não fosse pela película vermelha que envolvia minha íris, e as labaredas que se ascenderam dentro de mim, eu estaria nesse momento ressaltando a beleza do amaldiçoado par de olhos azuis que fingiam inocência. —Você é cego por acaso? —Ele olhou para trás conferindo se eu realmente falava com ele. 

—Eu? —Já iria perguntar se era surdo também, pois demorou uma eternidade até sorrir cinicamente. 

—Não, não. Eu vim tirar satisfação com a moto. —Inclusive, muito bom gosto, o Caleb e o Andrew iriam amar, mas não vem ao caso. —Tem mais algum idiota aqui? —Aumentei meu tom de voz, sendo dominada pela raiva, a garota ficou sem reação, parecia desconfiada. 

Os mesmos olhos que eu elogiei inconscientemente, fizeram um passeio dos pés a cabeça, me analisando a fio. Eu estava toda molhada, fato que fez minha roupa ficar colada no corpo. Não controlei a vontade de me cobrir naquele momento. 

—Eu acho que você se enganou meu anjo. —Sua expressão era divertida, e isso estava me levando ao limite. 

—Eu me enganei? Ou você é retardado de passar a milhão no sinal vermelho e ainda por cima com pedestre na faixa, que eu saiba Ottawa tem leis de trânsito! 

—Você não é guarda de trânsito anjo, e mesmo que fosse, não tenho com o que me preocupar.  —Debochou presunçoso.

—Não sou guarda idiota, mas também não sou invisível!  —Ele deteve seu olhar fixo sobre mim, eu não sabia se era isso que queimava a superfície da minha pele, ou a fúria, pura e simples. 

—Não, você não é! —Concordou com um sorriso de canto. Sorriso esse que derreteria muitas mocinhas em apuros, mas no meu caso, já disse, sou cobra criada e bem acostumada a lidar com adolescentes na puberdade. Declan odiava quando eu o chamava assim, mas por Deus, bancar o idiota cínico é ridiculamente patético! —Só não estou me recordando, por acaso eu não te liguei no dia seguinte? 

Apertei o copo de café em minha mão contando até dez. É o cumulo dos abusados.

—Tenho cara de quem passaria meu número pra você? Pelo contrário, você acabou de destruir o meu romance, eu nunca mais vou ter outra chance de saber o final e a culpa é sua...

—Acho melhor eu ir embora. —A garota diz tímida a ele. 

—É bom que vá mesmo querida, não preciso de testemunha.

—Não, espera ai! —Segura seu braço. —Olha, eu nunca te vi na vida, você deve estar me confundindo, não me lembro de ter te dado um fora e estou muito ocupado no momento. —Apontou para a garota. Paro de contar e jogo o café contra seu corpo, assustando os dois. —Ficou maluca? —Se exalta ainda estagnado.

 Sim eu fiquei! 

—Olha eu vou embora. —Ela anuncia apenas, visivelmente assustada. 

—Mia espera, eu não conheço essa garota. —Ele faz uma breve pausa no seu "Ataque de Pelanca" para dar atenção a ela.

—Ficou muito claro o que está acontecendo aqui. —Soltou uma risadinha irônica, fitando nós dois. —Tchau e por favor não me procure! —Diz por fim apertando o passo. Ele segura seu olhar nela alguns segundos, respirando pesado. Dei ombros e o encaro ao mesmo tempo que ele também me olha nervoso.

—Você é maluca por acaso? —Pergunta irado, franzindo a testa.

—Maluco é você que quase me atropelou e ainda por cima me deixou encharcada. —Apontei para o meu corpo. —E pra completar você destruiu o final do meu romance, eu nunca vou saber o final da história! Eu preferia ter sido atropelada! —Ok, agora eu é quem estava surtando.

Ele leva sua mão até a nuca impaciente, odeio pessoas transparentes, e odeio o corpinho definido de quem passa no mínimo quatro horas por dia em uma academia. 

Pessoas assim não tem nada em mente mesmo e em qualquer outra situação, eu daria as costas com preguiça, mas hoje a Amélia despertou uma Isabela irreconhecível. Eu nunca, nunca fico para uma discussão, mas esse garoto pediu. 

—Pela última vez eu não sei do que você está falando! —Explica irritado. Ele juntou as mãos quase em desespero, admito seu auto controle, talvez se eu fosse um homem ele já teria me acertado uma.

—DO LIVRO IDIOTA! —Vociferei balançando as folhas molhadas. 

Ele continua me encarando boquiaberto, parecendo não acreditar no que eu falei. Bem, hoje apenas narrando, até eu não acredito que fiz isso. Não tudo bem... realmente ainda é o melhor romance que eu já li em toda minha vida, mas não era motivo deu ter discutido com um desconhecido, e eu juro que não me lembro de ter uma plateia. 

—Tudo isso por causa de um livro? É algum tipo de piada? Não seja por isso, tem uma biblioteca bem ali, eu compro seu maldito romance novamente, agora por que você não falou antes? Sabe o quanto foi difícil conseguir aquele encontro? —Fiquei ainda mais nervosa, se é que isso é possível. 

—Que se dane! Você não tem o direito de ficar irritadinho. E quer saber? Tão difícil quanto vai ser para achar aquele livro, impossível, então bem feito. 

—Defina impossível pra você, porque pra mim essa palavra não existe. Vamos, quanto foi essa porcaria? —Ele sacou sua carteira. 

—Guarde suas migalhas para impressionar seu próximo encontro. Imbecil! —Cuspi as palavras, caindo em si do quanto aquela situação era ridícula. Joguei o copo vazio na lixeira e olhei em direção a biblioteca. —Sem título, sem capa, rascunho de um autor que sequer deixou sua assinatura, e para melhorar, manuscrito. Por acaso ali tem algum livro manuscrito? Eu duvido muito! 

Grulhei sozinha balançando a cabeça negativamente, pronta para deixa-lo para trás. 

—Isso complica as coisas! Mas, quer saber? Bem feito, eu destruí seu romance e você destruiu o meu! Estamos quites. 

—Quites? Eu estou encharcada no frio! —Soei mais decepcionada do que qualquer coisa. E mais uma vez ele me olhou de cima a baixo, mais devagar e explicito, por um momento desejei cavar um buraco... Para enterra-lo!  

Está achando que eu sou o que?

—Eu também estou! E de café. —Aponta para o seu corpo. Olhar dado, olhar devolvido!

 Aproveitei seu convite para dar uma breve analisada na camiseta branca manchada de café, mas que mesmo assim a fazia ficar levemente transparente, agarrando seus gominhos que certamente, serviriam para lavar um edredom. Não se preocupem, falando em transparência, ao contrário desse bobão metido a galã de malhação, eu não sou nem um pouco, e consegui reverter minha quase admiração por uma incrível expressão de escárnio. 

—Bem lembrado, desperdicei o meu café! E meus dunots nem vi onde caíram. 

—Vai dizer que agora estou te devendo um café também? —Quase passa despercebido seu sarcasmo.  

—Você já terminou algum livro de quinhentas páginas e ficou sem saber como vai viver sem ele?

—Não! —Deu ombros, sem se importar. 

—Nem eu, porque eu nunca nem vou terminar ele! —Falo pronta para ir embora o mais rápido que conseguir, já que o frio começa a me atingir.

—Era para me deixar com dó? —Perguntou casualmente. Respiro fundo, junto o resto de dignidade que me sobrou e dou meia volta, indo para a parada do ônibus. —Deixa eu te recompensar? 

Eu parei, mas não para ouvir o que quer que ele ainda tinha para dizer. Encontrei a caixinha cheia de dunots caída no chão, me abaixei e peguei a mesma, voltando a andar em sua direção. O idiota sorriu, como se esperasse mesmo minha atenção. 

—Te deixo em casa e se quiser, posso até inventar um final para o seu livro. —Revirei os olhos arrependida de ter bancado a moralista do meio ambiente. Joguei a caixa também no lixo e o ignorei completamente. —Está frio pra caramba... 

—Vai se foder! —Minha paciência tinha chegado no limite. 

Por todo o caminho recebi olhares curiosos, só não me importei pois estava preocupada demais em não morrer de frio.

Cheguei em casa espirrando, com a garganta completamente dolorida e sem sentir as pontas dos meus dedos. Fui direto para um banho quente, seguido de um chá da depressão.

Eu nunca vou saber se o Stephan deixou a cidade.

—Por que eu fui sair de casa hoje?

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