Capítulo 2

DOMINIC

Noventa dias. Noventa dias e o rosto de Kate Smith simplesmente não desaparecia da minha mente. Ela estava impregnada em mim feito uma doença estigmatizada. Não havia remédio que curasse essa doença que se chamava Kate em minha vida. Eu já havia tentado de tudo.

A pior parte é que ela insistia em se fazer presente nos meus sonhos. Ou, melhor, pesadelos.

O que mais me irritava era o fato de que eu deveria odiá-la. Ela havia feito a pior coisa que um ser humano pode fazer contra outro: trair.

E, ainda assim, mesmo a odiando com todas as minhas forças, eu a amava.

Maldita, Kate! Maldita!

Acordei às três da manha e, desde então, não conseguia mais pregar os olhos.

Que tipo de praga aquela mulher havia colocado em mim? Isso era normal?

Estava começando a achar que aquilo que eu sentia não era amor, era enfermidade, literalmente uma doença.

Indisposto a competir com minha falta de sono, me deixei vencer por ele.

Caminhei até a varanda, sentei-me na espreguiçadeira e fiquei ali, admirando as estrelas e a noite que era tão bela.

Perdi a noção do tempo e, quando tornei a realidade, já era dia. O sol já estava clareando tudo a sua volta.

Fiz minha higiene matinal e, antes de descer para tomar café, chequei uma mensagem deixada por tio Aspen em meu celular.

"Tio Aspen: Preciso falar com você. Me ligue assim que possível"

Curioso e um tanto quanto assustado, não hesitei. Disquei seu número e no segundo toque, ele me atendeu.

— Tio... bom dia! Acabei de ler sua mensagem...!

— Ah, bom dia, Domi. Aliás... Caiu da cama, garoto? Acordado a esta hora? — ouço uma leve risada no outro lado da linha e consigo relaxar meus músculos antes tensos pelo medo do que viria a seguir. Talvez eu não tivesse feito nada de errado.

— Não dormi muito bem. É só isso. Mas, o que queria falar comigo, tio? É algo importante?

— Na verdade, sim. Preciso de um grande favor seu, Domi.

Deixo a linha silenciosa propositalmente a fim de que meu tio prossiga e sacie minha curiosidade.

— Ahn... não sei se já cheguei a falar diretamente com você sobre isso, mas, minha sobrinha, Alina, chega hoje às três da tarde. Creio que sabe que ela está vindo para ficar conosco por um tempo, certo?

Pondero por alguns segundos e associo as coisas.

— Oh, sim... devo ter escutado a mamãe comentando sobre ela. É a filha da sua irmã...

— Sim. – meu tio me corta meio amargo. — Prometi ampará-la e é o que farei. Sou tudo que Alina tem agora. Então... tenho uma entrevista muito importante aqui na editora e, apesar de ter tentando adiá-la, não posso, afinal, queria eu mesmo recebê-la no aeroporto, então... — meu tio solta um suspiro frustrado. — Henri também não está disponível e Hector ainda não chegou de viagem, por isso pensei que... bom... talvez pudesse me fazer o favor de recebê-la, sim?

Hoje eu decidira não ir para o escritório. O dia certamente não seria produtivo para alguém que não havia dormido nem mesmo duas horas. Fazer esse favor a tio Aspen era algo que eu poderia realizar. Não tinha mal algum. E, afinal de contas, eu devia muito a ele. Precisava começar a pagar minhas dívidas com meu tio.

— Claro, tio. Sem problemas. Eu vou sim. Isso é o mínimo que posso fazer pelo senhor.

— Bobagem, garoto. Fico muito agradecido. Quero que Alina se sinta em casa. É o mínimo diante das coisas que essa menina tem sofrido nos últimos anos.

— Entendo. — maneio a cabeça levemente.

— Muito obrigado, Domi. Fico te devendo uma.

— Imagine, tio. Fica frio e pode deixar comigo.

— Certo. Mas, e você... está tudo bem?

Todas as vezes que, nesses últimos noventa dias, alguém me perguntava se eu estava bem, sabia exatamente do que se tratava. A que se referia aquela pergunta, específicamente.

E, todas as vezes, eu dizia a mesma coisa. Ainda que nem fosse a verdade, realmente.

— Tudo ótimo, tio. Obrigado.

— Que bom, filho. Que bom. Certo. Tenho que desligar, Sabrina está me perturbando aqui do outro lado da linha. Mais uma vez, muito obrigado.

— De nada, tio.

E a ligação é finalizada.

Respiro fundo, penteio-me e, só então, desço em direção a sala de jantar.

Para minha surpresa, Meg já está de pé, organizando a mesa que, toda manhã, é sempre bem recheada, afinal, todos vêm para a casa dos Sant. Até mesmo Lexie que, mesmo casada, não consegue se desvencilhar de suas origens.

Não é à toa que tenha construído sua casa praticamente ao lado da casa de nossos pais.

Mas eu a invejava, porque, apesar de ser do lado da casa de nossos pais, ela ainda assim tinha sua casa. Seu próprio lugar. Sua família.

Sempre fora assim. Lexie sempre esteve um passo à frente de mim.

E eu continuava aqui. A sombra de nossos pais por puro capricho. Por não ter coragem de sair debaixo das asas superprotetoras de minha mãe.

O que há de errado comigo???

Sou Dominic Sant, tenho vinte e quatro anos, já sou um advogado reconhecido - é claro que por ser filho de quem sou - mas também pelos meus méritos. Por que eu simplesmente não tomava vergonha e saía de casa? Começava a minha própria vida sem interferências....?

Mas que droga!

— Bom dia, menino! Que susto! Que faz acordado a esta hora da manhã?

— Estou acordado desde às três. Não consegui dormir, então...

Meg abre a boca, assustada. Sento-me na cadeira da ponta e bisbilhoto meu email no celular.

Enquanto isso, Meg surge com um amontoado de correspondências e me entrega.

— São suas! Chegaram agora pela manhã...

Recebo-as já acostumando com tanta correspondência todo santo mês.

Vou folheando cada uma delas e checando seu nível de importância, até chegar na última e me deparar com algo que está longe de ser uma mera correspondência. Era um convite. E, para ser ainda mais específico, era um convite de casamento. O que mais se destaca aos meus olhos não é a beleza em si do convite, mas sim os nomes escritos numa fonte completamente sofisticada.

"Katerine Marie Smith e Joel Antony Sales"

Incrédulo demais para aceitar os fatos, abro o envelope. Se eu ainda tinha uma coração e se ele ainda estivesse em seu perfeito estado, naquele momento ele se quebraria por completo. E eu até tinha a capacidade de ouvir o som dos cacos se esparramando pelo chão.

Ela não podia ter feito isso. Ela não podia ter feito isso. Ela não podia ter feito isso.

— Garoto? Está tudo bem?

A voz de Meg soa distante demais para me trazer de volta à realidade, estou anestesiado demais para me mover ou para responder-lhe.

Kate iria se casar.

E Kate tinha tido a cara de pau de me mandar o convite de seu casamento.

— Dominic...? Está pálido, filho...! Diga alguma coisa!

"É com muita satisfação e alegria que Katerine Marie Smith e Joels Antony Sales os convida para seu esperado casamento.

30 de Julho de 2018 às..."

Parei de ler por um segundo. Não conseguia continuar. Não tinha forças para continuar.

Noventa dias desde que Kate eu não estávamos mais juntos e ela simplesmente iria se casar com Joe...?

Despertei-me do transe e olhei para Meg. Mostrei-lhe o convite que tinha em mãos. Ela varreu os olhos rapidamente pelo convite e tornou a me encarar. Dessa vez, seus olhos tranpareceram a tristeza. Ela estava com pena de mim.

Dessa vez, eu também estava com pena de mim.

Voltei meus olhos para o convite e para a frase destacada no rodapé.

"A vida une as pessoas certas no momento certo. Que este seja nosso destino: amar, viver e começar cada dia juntos"

— Maldita! — esbravejei, sentindo todo o ódio se fazer presente em meu ser. — Como ela... ela não podia, Meg! Ela não podia ter feito isso comigo!

— Filho, eu... meu Deus! Que mulher ordinária! Ela jamais mereceu seu amor, Dominic, agora... talvez possa entender isso, querido... ela não merecia seu amor...

Não merecia. Não merecia. Não merecia. É o que digo a mim mesmo na intenção de me fazer acreditar ser verdade as coisas que digo.

Ouço um amontoado de vozes. Ergo-me da cadeira e dou de cara com Lexie, Stephan e Sophia. Eles pareciam radiantes, até colocar seus olhos em mim e, de maneira automática, minha tristeza ser transferida para eles.

— Que cara é essa? O que aconteceu? — minha irmã questiona visivelmente preocupada.

Não digo nada. Apenas entrego-lhe a merda do convite.

— Veja você mesma.

Ela crispa a testa e recebe o convite sem entender direito o que se passa.

Saio caminhando ainda anestesiado.

— Oh, meu Deus! Domi! — ouço o lamentar alto de minha irmã.

Viro-me para encará-la. Enquanto ela parece triste, eu apenas lhe concedo o sorriso mais forçado que consigo adotar nos lábios.

— Tenho que ir agora. Preciso ficar só.

— Kate é uma cachorra desprezível! O que viu nela, Sant? Me diz! Fico tentando entender...

— Inferno! — esbravejei. — Aquela desgraçada!

— O que me deixa puta, Domi, é que da pra ver que ainda gosta dela. Só não entendo como ainda a ama, mesmo depois de tudo que essa mulher fez.

Rolo meus olhos.

Trago meu copo de whisky e, de uma só vez, o viro na boca. O gosto ácido da bebida desce rasgando minha garganta.

A que ponto cheguei?  Me afogar na bebida para não ter de me afogar nas lágrimas?

— Não sei do que está falando. É claro que eu não gosto mais dela. Está maluca?

— Não eu, mas você. Tentando enganar a mim, Domi? Nos conhecemos há anos!

— Isso não significa que saiba tudo sobre mim, Bea. Nem eu mesmo sei tudo sobre mim. Sobre... sobre as coisas que sou... capaz. — reviro meus olhos. — Traga mais um!

— Acha que se embebedar vai adiantar alguma coisa? — a loira me sorriu. — além disso,  são apenas... — ela olha para o relógio enorme na parede. — Quatro e cinquenta da tarde!

Quatro e cinquenta...

Quatro e...

Quatro e cinquenta????

Por que tenho a leve impressão de que estou deixando algo passar despercebido?

O que está errado, afinal?

Forço-me a raciocinar. De repente, meu cérebro volta a trabalhar num simples piscar de olhos. A sobriedade torna deixando-me completamente nervoso.

A sobrinha de tio Aspen havia chegado às três. Eu deveria buscá-la. Eu prometi!

Merda! Merda! Merda! Merda mil vezes!

Salto da cadeira, apanho a chave do carro antes depositada no balcão do bar. Bea me olha de cenho franzido.

— Oh, merda! — ela ri. — Não me diga que está indo atrás dela, por favor...?!!

— Enlouqueceu? — berro, sentindo-me praticamente ofendido. — é óbvio que não!

— E para onde vai? Não esqueça que bebeu, não pode sair e dirigir desse jeito...

— Eu estou sóbrio agora, Bea. Preciso ir. Tinha um compromisso. Perdi a hora. Tenho que ir!

— Domi, é perigoso...

— Estou sóbrio! Sério!

Abri meu melhor sorriso, na tentativa de fazê-la crer na minha sobriedade. Ela fez uma careta engraçada.

Eu não estava cem por centro sóbrio, mas também não estava completamente bebado. Havia bebido, sim. Mas eu ainda sabia que dois e dois eram quatro, então, estava tudo bem. Eu ainda poderia cumprir com minha palavra.

Ao menos isso eu ainda tinha. Minha palavra.

Bea saiu de trás do balcão que estava, veio na minha direção, segurou firme meu pescoço e me puxou para perto de si.

— Tem certeza? Sabe, acho que isso pode te deixar um pouco mais sóbrio...

E, dito isso, ela me beijou com força.

Sua lingua invadiu minha boca sem pedir licença, embora nem precisasse. Bea e eu... bom, tivemos nosso momento. Ela era a melhor amiga que alguém poderia ter.

Segurei firme sua cintura e retribui seu beijo com a mesma intensidade.

Por falta de ar nos pulmões, nos afastamos. Um sorriso safado estampava em seus lábios.

— Melhor?

Eu ri, pela primeira vez desde que li aquele maldito convite.

— Bem melhor. — admiti, limpando as prováveis marcas deixadas pelo seu batom vermelho vibrante ao redor de meus lábios. — A gente se vê.

Solto-lhe uma piscadela antes de sair correndo até meu carro.

Tio Aspen provavelmente me mataria.

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