Trancados
Trancados
Por: Lu Mendes
Solidariedade pretensiosa

Trancados

Prefácio

Esta é uma obra de ficção romântica que se passa no meio da quarentena da pandemia na Suiça. O foco da história não é o vírus, a pandemia ou a quarentena, mas como as pessoas se comportam no meio do aparente caos. Eu não sei como se comportou o povo suíço, ninguém sabe, salvo pessoas que estiveram lá naquela data portanto eles podem ter fechado hotéis ou não. A minha preocupação nessa obra não é como o povo se comportou literalmente, mas como essa história pode ser contada a partir de uma ótica um pouco mais individualista.

Wengen é uma pequena vila turística nos alpes suíços. Théo Souza fica preso de surpresa pelo “lockdown” suíço e o único meio de sair e entrar de Wengen é de trem, que não vai mais passar por um mês. A cidadezinha é livre de carros, as pessoas andam a pé ou de bicicleta. Veiculos motorizados não são permitidos. Théo, o mochileiro brasileiro que planejava rodar o mundo antes de se dedicar integralmente a Medicina no Brasil, se vê no meio de um conflito familiar, da pobreza de uma família de apenas mulheres e na disputa do seu amor por duas irmãs.

A história é recheada de sensualidade e histórias bizarras contadas pela avó Lya que já não anda mais. Théo começa a achar que há mais coisas a descobrir em Wengen do que somente como sobreviver ao rigoroso inverno ou como esquiar nas montanhas geladas.

Capítulo 1

Solidariedade pretensiosa

                Théo havia acabado de chegar a Wengen, na Suiça. A cidadezinha pitoresca dos Alpes Suiços possuía florestas ao redor e era situada em um vale verdejante no Verão e totalmente branco no Inverno. Wengen era encravada nas montanhas Jungfrau. A bela cidade era o cenário perfeito para os turistas, atraídos o ano todo pelas lindas imagens do verão quanto pelas da neve no inverno. O inverno é rigoroso em Wengen e Théo havia acabado de chegar de trem para praticar o esqui nas montanhas nevadas, mesmo sem ter um aparelho de esqui. Ele acreditava que se podia alugar um aparelho para subir de teleférico até o ponto mais alto e depois descer, sentindo toda a emoção de iniciante. Théo não era totalmente um iniciante; como mochileiro havia praticado um pouco do esporte em Bariloche na Argentina, país vizinho ao seu Brasil. Era óbvio que não podia carregar todo o aparelho na sua mochila que já pesava muito com todas as suas coisas pois quando saiu de São Paulo para ver o mundo como mochileiro não pensava só em ver neve.

                  Théo tinha alguma reserva em dinheiro que carregava consigo em lugares estratégicos do corpo como todo viajante devia fazer. Ele tinha dinheiro para pelo menos rodar um pedaço do mundo por seis meses, ficando em sua barraca de camping. Após rodar o mundo ele planejava retornar a casa dos pais e continuar sua faculdade de Medicina. Théo era uma alma livre por dentro, mas a pressão dos pais por seguir a carreira de toda a família havia sido demais para ele. Ele achava que precisava de um tempo para si e depois então retornar para sua carreira familiar e ser tudo o que o pai queria fazer dele, um médico renomado. A princípio, Théo ficou em um hotel dentro da vila de Wengen, onde é proibido carros, ele hospedou-se no Hotel Shutzen e ia a noite ao Rocks bar tomar uma cerveja. O hotel naquela estação era o mais barato que ele havia conseguido pagar após planejar ficar ali por somente quatro dias. Os dias estavam ensolarados mesmo com a neve tão branca e gelada, o que fazia a luz solar quase cegar as pessoas com o reflexo na neve. Théo achava tudo muito brilhante, bonito e emocionante.

Dentro do Rocks bar, em determinada noite, ele conferia na internet o que os amigos achavam de seu instagram de mochileiro e as aventuras que vivia nos lugares onde passava. Théo registrava tudo em suas redes sociais e ficava antenado em tudo que acontecia no mundo. Ele tinha ouvido falar de um vírus que havia começado a matar pessoas na China, mas aquilo era muito longe e suas preocupações eram muito urgentes como tomar aquela cerveja gelada ouvindo os suíços e turistas conversando animadamente. Wengen era uma cidadezinha estritamente turística pela sua proximidade com a estação de esqui e os principais eventos de inverno. Devia ser por volta das vinte horas da noite quando um carro elétrico da polícia passou pela cidade anunciando o fechamento da estação de trem. A Suiça e Wengen estavam de quarentena por causa do vírus. Todos ouviram e foram para fora ver o carro elétrico passar. As medidas eram claras: estocar comida, água, permanecer em casa e o total isolamento social para impedir a propagação do Vírus. Théo mal podia acreditar, a Suiça era tão bem organizada politicamente e tinha um sistema de saúde excelente, aquilo não demoraria muito tempo, pensava ele. Era Março de dois mil e vinte.

                     As discussões começaram entre os habitantes. Alguns defendendo que não podiam fechar as portas pois viviam do turismo e outros achando que era a melhor medida a ser tomada. As coisas foram ficando acaloradas e os turistas foram se retirando para seus chalés e hotéis. Théo observava virado de costas para o balcão enquanto olhava a televisão anunciar o “lockdown” em toda a Suiça.

- Ah que ótimo, to preso. - Disse a si mesmo em português

- O que disse, senhor? - Perguntou a garçonete que limpava o balcão

Théo a olhou incomodado. Só teve tempo de reparar na bela garçonete com um decote generoso a sua frente, enquanto molhava um pouco da blusa esfregando o pano na bancada de madeira de lei. Ela era ruiva e tinha um belo par de olhos verdes. Théo tinha fraco por ruivas, mas não estava com cabeça para pensar naquilo.

- Quero saber como vou sair daqui. - Respondeu

A bela moça também reparava nele. Théo era um homem de vinte e seis anos alto, um metro e setenta e oito, branco de cabelos castanho-escuros e olhos de quase igual cor. Ele estava vestindo uma jaqueta azul de frio e por baixo dela uma de manga com botões preta. Théo trazia um cordão de prata com um crucifixo que chamou a atenção da garçonete.

- É religioso, deve acreditar que vamos sair logo disso não? - Ela sorriu

- Claro, é o que eu espero.

Então Théo buscou no bolso algumas notas de euro e pagou pela cerveja.

- Obrigada senhor.

Ele ainda sorriu para ela enquanto se levantava. Ao seu redor já não restava mais ninguém no Rocks bar. Eles começaram a apagar as luzes para fechar o estabelecimento.

- Senhor, meu nome é Emma...Weber.

Ele se voltou novamente para ela e sorriu com um ar preocupado.

- Meu nome é Théo Souza. Sou brasileiro, vim esquiar, mas parece que dei azar.

Ela riu.

- Não estava acompanhando as notícias?

- N-não, eu sou meio desligado para essas coisas, vejo só as mensagens da família e achei que a coisa não era tão feia.

- É moço, está bem feia. Mas vai melhorar. O Brasil deve ser quente e lindo não?

Os olhos dela brilharam ao falar do país tropical tão conhecido no mundo.

- Sim é bonito, mas aqui é mais... - Théo sorriu

- Vamos embora Emma! - Gritou o dono do bar com as chaves na mão.

Emma apenas pegou uma bolsa sob o balcão e saiu por uma porta de dobradiças na lateral do balcão. Ambos saíram do bar juntos. Emma parou na porta e ficou olhando para o Brasileiro.

- Bem, espero que tudo dê certo e isso termine logo - Disse ela o encarando

- Sim, com certeza - Théo enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta sentindo frio e a olhou - Vai para casa sozinha? - Perguntou observando que não havia mais ninguém nas ruas e estava tudo bem escuro

- Sim, vou, eu moro mais lá para cima. Não é nada luxuoso como aqui. Boa noite senhor Théo.

Ele sorriu e podia ver o vapor do frio que saía por sua boca.

- Não precisa chamar de senhor... Obrigado pela conversa. Boa noite.

Eles se separaram tomando rumos diferentes e começaram a caminhar. Emma ainda olhou para trás mais uma vez. A Suiça tinha considerado o Brasileiro muito bonito e sexy. Afinal era tudo o que o resto do mundo achava dos Brasileiros e com ela não seria diferente. Emma caminhou ainda um bocado de chão até chegar a sua casa. Ao entrar, retirou o pesado casaco que vestia, o deixando em um cabide próximo a porta e as botas bem embaixo do casaco que pendia até o chão. A casa parecia silenciosa e Emma subiu ao segundo andar pelas escadas de madeira até onde ficavam os quartos de sua mãe, avó e o seu com a irmã mais nova Hanna. Hanna estava acordada com um celular na mão e tomou susto assim que viu a irmã.

- Meu Deus! - Gritou Hanna - Você precisa andar na ponta dos pés?! Quase me matou de susto!

- Desculpe minha irmã, mas eu não queria te acordar nem a vovó. Você soube do que aconteceu? - Perguntou enquanto se sentava na cama para retirar a saia pesada que usava e a calça por baixo dela. - Eu detesto toda essa roupa, esse inverno está demorando mais do que o normal, que inferno.

- Emma! Não fale essas palavras em casa! - Hanna repreendeu a irmã por serem religiosas.

- Ah eu esqueço Hanna, não me aborrece. A cidade foi fechada por causa do vírus. Viu na internet?

- Eu estava olhando aqui agora, não sei como mamãe não acordou com a polícia passando para mandar todos ficarem dentro de casa, temos tão poucos casos, isso não é exagero?

- Claro que não, imagina se isso se espalha aqui em Wengen, a vovó não ia sobreviver.

Hanna ficou pensativa e deitou-se.

- Isso é verdade, nem consigo imaginar. Assim que ela souber, vai falar sobre as coisas que sempre fala, você sabe...

- Sim, eu sei. Ela já está demente Hanna, não devia prestar atenção. Escute o que tenho para te contar, eu conheci um Brasileiro.

Hanna se sentou de novo a olhando com surpresa e alegria.

- Um Brasileiro? Mas aparecem tantos por aqui.

- Casados e feios não é Hanna? Esse é solteirinho e bonito - Emma se jogou na cama abraçando o travesseiro - Ele é bonito Hanna!!

Hanna sorria, porém, olhava para a irmã com uma ponta de inveja.

- Ele vai embora logo, não se anime.

Emma olhou para a irmã com uma expressão de tristeza e desaprovação. Ela sabia que Hanna gostava de as vezes tentar desfazer de seus sonhos, por ciúme ou inveja e lamentou ter contado para ela sobre o tal Brasileiro. Emma, magoada, virou-se de lado e cobriu a cabeça para dormir.

- Vá dormir Hanna, amanhã precisamos limpar a neve da frente de casa e tratar da vovó.

Hanna se virou com enfado, bufando e começou a sonhar em conhecer o tal homem.

A casa da família já estava velha. Todos na cidade ajudavam a família por vezes depois da morte precoce do pai, Tim em um acidente de trabalho em um hotel. Tim havia caído de uma altura de mais de cinco metros enquanto consertava o telhado do hotel. A família tinha tudo antes disso. Os Weber eram tradicionais na cidade e a perda de Tim foi um evento muito triste. Em uma cidadezinha tão pequena, quase todos se conhecem e aquela semana tinha sido muito triste e traumática. Tim era dono de uma pequena empresa de construção e reparos em Wengen e ia muito bem na vida. Em sua morte, as mulheres da família perderam tudo para sócios do pai e não mais consertavam a casa, dependendo da ajuda de vizinhos para gerenciar as coisas que não sabiam fazer. A escada rangia, o assoalho rangia, esquilos faziam barulho a noite no sótão. A Suiça tem um vasto folclore e tradições por vezes bizarras para os estrangeiros, mas perfeitamente normal para os nativos. Hanna amava as histórias, parecia ainda uma adolescente, porém muito responsável. Emma não prestava mais atenção nas histórias da avó Lya e se concentrava em trabalhar para pagar as contas e ajudar sua mãe. Hanna queria muito trabalhar, mas os esforços da família giravam em torno de que pelo menos Hanna fosse para a faculdade. Emma se contentava em permanecer em Wengen, sonhando sempre em sair dali.

Théo chegava ao hotel onde estava hospedado e todos na recepção falavam sobre ir embora. O gerente do local explicava que o trem não iria passar mais durante a quarentena e que os médicos iam testar todos para o novo vírus. Aqueles que apresentassem suspeita de estarem doentes seriam isolados e os demais não poderiam sair do hotel e de suas casas sem máscara de proteção para a boca e o nariz, deviam higienizar as mãos com álcool e sair apenas para fazer compras necessárias. Théo foi para seu quarto sem poder se comunicar com a família pois já passava da uma da manhã na Suiça, o que certamente significava ser cinco horas da manhã no Brasil. Théo tirou sua roupa pesada e se deitou na cama apenas de camiseta, deixando pender o corpo no colchão olhando o teto. O rapaz decidiu ligar a televisão e o noticiário local bem como o internacional só falava do vírus. Como ele não prestou atenção antes? Agora estava preso em Wengen por um ou dois meses, estipulado pelo governo. Pôs-se então a fazer o cálculo mental de suas economias e descobriu que não teria o suficiente para o resto da viagem e teria que voltar ao Brasil. As economias de Théo não seriam suficientes para ficar preso um mês ali naquele hotel caro. Ele estava preparado para ficar uma semana no máximo. O rapaz começou a se preocupar em como comeria dali para frente e onde se hospedaria se por acaso o hotel fechasse. Era daquelas situações críticas que pareciam o fim do mundo e ele não conseguiu dormir aquela noite.

Os dias se passaram e o dinheiro de Théo não podia mais pagar o almoço e jantar caro do hotel. Os rumores eram de que a comida iria acabar e a cidade iria falir se continuassem trancados em Wengen sem turistas. Os médicos só começariam as testagens para o vírus na semana que entraria e ainda assim ninguém poderia entrar ou sair da pequena vila no meio do nada até a quarentena acabar. As viagens internacionais também estavam suspensas. A Suiça e todos os países estavam se isolando para conter o vírus. Théo foi informado de que o hotel fecharia e que ele poderia alugar um chalé independente na vila e dessa forma teria fogão a gás ou a lenha e poderia fazer sua própria refeição.

Quando conseguiu se comunicar com a família, Théo tratou de pedir ao pai para depositar mais dinheiro em sua conta pois o que havia reservado unicamente para a viagem estava acabando. Um mochileiro nunca deveria ficar sem comunicação com a família e também levar os cartões de sua conta com muito dinheiro. Théo usava apenas um cartão internacional limitado e outro da sua conta no banco com a quantia programada para gastar. A família estava preocupada.

- Meu filho, quando você poderá voltar se não tem aviões? - Perguntou Graça, mãe de Théo preocupada ao telefone.

- Mãe, não se preocupe, assim que deixarem eu vou voltar, não fica nervosa está bem? - Ele via o rosto da mãe pela ligação de vídeo e ela chorava preocupada, mas aliviada de ver o filho.

Théo sorria, mas por dentro era só preocupação. O jovem desligou a chamada e começou a fazer sua mala para procurar um chalé que pudesse lhe hospedar. O brasileiro saiu andando pela neve, com dificuldade. Em especial naquele dia nevava e isso fazia aquela travessia até um chalé bem mais desgastante. Os pés afundavam na neve fofa recém caída até que ele chegou ofegante ao chalé.

- Não temos mais lugares senhor, por que demorou tanto? Os outros hóspedes dos hotéis já alugaram.

Théo se desesperou.

- Mas como uma cidade rica dessas não tem mais espaço? Onde vou dormir?

O gerente o olhava com dó, mas sem conseguir responder.

- Talvez possa tentar dividir um chalé com algum turista se ele aceitar ou pedir abrigo a um morador local.

- Não é possível! - O rapaz colocou as mãos na cintura olhando para o teto tentando se acalmar. - Está bem, eu posso falar com alguém?

Depois de tentar convencer outros turistas igualmente presos ali, recebeu não de todos eles. As pessoas não costumam ser hospitaleiras e empáticas em situações de emergência ou durante o caos. Não sabiam quanto duraria a estadia deles e não podiam confiar num completo desconhecido dormindo com seu dinheiro e cartões no mesmo chalé.

Théo saiu dali indignado, nervoso e se lembrando de sua barraca de camping. Ate pensou em pedir ajuda ao governo suíço, mas já tinha muita gente fazendo isso. O brasileiro então, desconsolado, foi até o mercado comprar duas panelas, água mineral e comida que fosse suficiente para alguns dias vivendo sozinho no meio da neve. Ao entrar no mercado viu que tudo havia subido de preço, mas estava ainda no seu orçamento tudo que precisava comprar para acampar na neve. Théo sabia que teria que se afastar se quisesse fazer uma fogueira com a madeira das árvores embora não fosse permitido em Wengen porém sabia que não acamparia perto da floresta, isso já era certo.

Quando estava dentro do mercado, o brasileiro esbarrou com o carrinho de compras no carrinho de uma moça e se olharam. Ela sorriu o reconhecendo, mesmo através da máscara de proteção contra o vírus.

- Théo o brasileiro?

Ele sorriu de volta e a reconheceu mesmo com a máscara.

- Emma do Rocks bar não é?

- Sim, sim, mas não estou trabalhando, tudo está fechado. Continua no mesmo hotel, senhor? Digo, Théo.

- Não, não, eu vou ter que acampar perto da cidade. Estou fazendo compras para sobrevivência - Respondeu baixando o olhar para o chão

Emma reparou no rosto bonito, na barba por fazer, no cordão com crucifixo pendurado no peito sobre a camisa azul e no peito atlético do pouco que a camisa conseguia mostrar.

- Não conseguiu outro lugar?

Théo a observava, bonita, nas roupas de frio, jaqueta de couro e uma calça jeans bem apertada e botas pretas. Só então conseguiu reparar que ela era ruiva e tinha olhos verdes. O rosto harmônico ficava entre as madeixas ruivas que desciam pelos ombros até quase o meio das costas.

- Não consegui. Vou acampar na neve, talvez eu sobreviva - Ele riu.

- Não pode acampar na neve. - Emma ficou pensativa - Bem, eu vou indo e depois nos vemos certo? Me diga onde vai ficar.

- Vai me levar uma sopa? - Eles sorriram - Vou ficar perto da floresta, mas não tão perto.

- Sabe que não pode fazer fogueira, não é?

- Sim, sei - Ele a olhou com ar de enfado e desesperança

- Certo. - Ela parou muito para pensar - Então nos vemos, eu preciso...sabe...terminar...

- Claro, claro - Théo respondeu e assentiu com a cabeça para empurrar seu carrinho para longe do dela - Tchau

- Tchau.

Ela virou o rosto visivelmente preocupada e foi embora. Théo continuou fazendo suas compras, fósforo, álcool, massas, latas de comidas prontas e biscoitos, muitos biscoitos. Ao sair dali viu Emma novamente. Ela estava parada esperando um frete para leva-la até em casa com as compras. Théo parou ao seu lado.

- Dia complicado não?

Ela levou um susto com sua voz e o olhou.

- Muito complicado, não há um carro elétrico para me levar até em casa com isso tudo.

Ambos estavam parados no meio do estacionamento e os motoristas saíam apressados para suas casas, com máscaras no rosto. Emma pensou e pensou roendo as unhas da mão direita.

- Théo, você não quer me ajudar a levar isso tudo? Eu te pago o que pagaria ao frete e você pode dormir perto da minha casa, nós podemos te ajudar em tudo. Sabe, um homem é sempre bem vindo nessas horas de inverno por aqui.

- Tá, eu te ajudo - Respondeu sem pestanejar - Melhor fazer amizade enquanto vou estar aqui certo? - Sorriu amigavelmente para Emma.

Théo pegou metade das compras e saiu andando carregando tudo, as compras e sua mochila bastante pesadas. Emma levou a outra metade das compras. Vagarosamente foram subindo a colina de Wengen afundando o pé na neve, ofegantes e cansados.

- Théo, eu preciso parar. - Ela se sentou na neve.

- Mas vai se molhar toda.

- Eu não estou aguentando, nunca fiz esse percurso a pé, sempre tínhamos o frete, o trem. - Ah! - Ela gritou quando viu um vizinho de longe passar de triciclo.

- Querem ajuda? - Perguntou Wagner

- Sim, Wagner por favor, leve nossas coisas e nós subimos a pé?

- Claro, claro

O rapaz colocou a mochila de Théo em um dos assentos do triciclo e as compras no outro.

- Vejo vocês lá!

Eles se entreolharam e sorriram. Aquilo foi uma baita ajuda para ambos, que já estavam cansados de andar.

- Eu ainda vou montar minha barraca - Disse Théo ofegante.

- Claro que não, brasileiro - Respondeu ela - Você hoje será meu convidado para dormir, está muito frio e você está muito cansado, precisa tomar a sopa que eu prometi

Eles riram. Théo sabia que seria sua melhor alternativa mesmo sem conhece-la mas se toda a cidade conhecia, só podia ser boa gente mas pensava sobre o que a família pensaria dele. Um desconhecido total em casa.

- Emma, eu não posso aceitar, seu pai vai me expulsar, eu sei que os moradores são desconfiados, onde eu vou é sempre assim e ...- fez uma pausa - Estão certos. É perigoso.

Ela parou de andar e o olhou.

- Eu não tenho mais pai... Ele morreu em uma obra há alguns anos. Somos só minha mãe, minha irmã Hanna e minha avó Lya.

- Só mulheres?

- Sim - Ela riu - Não vá ficar intimidado.

Ele fez um bico de surpresa e arregalou os olhos.

- Então, sua mãe vai me matar.

Emma soltou uma gargalhada alta.

- A minha mãe não vai te matar. Ela vai brigar comigo, vai ficar desconfiada e com medo, mas não vai te matar.

Ele continuou subindo até que viu a casa. Precisaram de vinte minutos até chegar lá, o que fariam com metade do tempo se estivessem sem as bolsas e mochila e no verão. Théo aguardou do lado de fora, com os braços cruzados enquanto acendia um cigarro. Naquele exato momento descobriu que precisava parar de fumar, mesmo que o hábito fosse raro, um ou dois cigarros por dia mas a subida havia lhe cansado muito.

- Hanna, mãe! - Chamou Emma na sala.

Em poucos minutos elas apareceram. Hanna desceu as escadas rapidamente e olhou pela janela, afastando a cortina cor de âmbar.

- Tem um homem lá fora! - Disse Hanna.

- Um homem? - Eléa, a mãe das moças já ia correndo pegar uma espingarda

- Não! Mãe! Ele é o brasileiro que conheci no bar. - Olhou para Hanna.

- Ahhh...- Fez a irmã e olhou de novo

- O que nós temos com isso, Emma? - Perguntou a mãe

- Mãe, ele não conseguiu alugar um chalé quando tudo fechou e vai ficar em sua barraca de camping aqui perto de nós, não podemos deixar ele dormir essa noite? Ele me ajudou com as compras até aqui.

Emma pedia com os olhos de quem pede uma esmola e a mãe pensou em considerar. A buzina do vizinho tocou na porta de casa. Ele trazia as compras e deixou tudo com Théo na varanda da casa.

- Obrigado amigo

Elas ouviram Théo agradecer do lado de fora e o vizinho ir embora.

- Ele é do Brasil? Turista, Emma? Isso não é certo, não conhecemos sua índole, somos todas mulheres... isso não é certo, Emma.

- Mãe - Hanna se pronunciou depois de reparar na beleza do homem - A senhora sempre nos disse para ajudar os necessitados.

Emma escondeu o riso por trás das mãos e virou o rosto para a mãe não ver.

- Seria crueldade que ele dormisse ao relento na neve, em uma barraca se temos cinco quartos nessa casa... - Hanna olhou Emma e ambas sorriam.

- Mas não é certo, não sabemos quem ele é.

- Eu sou médico! - Ele gritou do lado de fora, demonstrando que estava ouvindo tudo que elas diziam - Eu posso provar!

- Médico? - Eléa, então, foi até a porta e a abriu dando uma boa olhada no rapaz - É mesmo médico?

Ele se virou jogando o cigarro na neve. Ambos ficaram se olhando e Théo estendeu a mão para Eléa.

- Prazer, meu nome é Théo Souza, sou médico em São Paulo mas preciso concluir minha residência, já tenho o diploma.

Eléa apertou a mão dele e sorriu.

- Vamos, entre, está frio demais...

Eléa abriu passagem com o corpo para que Théo entrasse em sua casa. Ele pegou sua mochila na varanda e ia voltar para pegar as compras, mas Hanna saiu na frente e foi buscar as sacolas. Assim que Théo entrou, Eléa pediu as provas.

- Senhora, eu poderia ligar para casa e poderíamos falar com meus pais mas ...- Ele olhou o sinal do celular - Aqui está meio afastado e não está pegando - Então ele buscou a carteira da faculdade no bolso e mostrou a ela.

Eléa pegou a carteira e obviamente não entendia nada de português.

- Só temos um celular na casa com acesso a internet e vamos usar para traduzir. Hanna? - A mãe chamou - Traduza o que tem aqui.

- Certo, mãe.

Hanna pegou a carteira da mão da mãe e se sentou-se no sofá para traduzir.

Théo, com todo o respeito, cruzou as mãos a frente do corpo esperando calmamente, de cabeça baixa e olhando ao redor. A casa estava velha, o piso de madeira rangia ao pisar. Havia quadros na parede retratando as pessoas da casa e o pai, falecido. A cortina âmbar dava ao ambiente uma luminosidade fraca, de penumbra e as paredes de madeira contribuíam para aumentar a penumbra da casa.

- Mãe, está tudo certo, ele é formado em Medicina.

Théo pensou, como se aquilo o isentasse de ser um maníaco, mas se elas gostaram de saber da profissão dele então certamente ele seria bem aceito. Eléa devolveu a carteira dele e Théo a guardou no bolso. Eléa olhou bem o rosto do rapaz e estendeu a mão.

- Pode ficar essa noite, tem um quarto lá em cima e Hanna vai te mostrar...

Foi interrompida bruscamente por Emma.

- Eu posso mostrar mãe.

A mãe a repreendeu com o olhar e Théo baixou a cabeça envergonhado.

- Hanna, pode mostrar o quarto ao moço.

- Claro, mãe! Vem!

- A propósito, como se diz seu nome? - Perguntou Eléa - Tffféo? - Fez o som com a língua atrás do dente de cima como se falava em inglês “this”

Théo riu.

- Não senhora, Téo, com T, Téo.

- Ah sim, bem eu me chamo Eléa, elas são Emma e Hanna, a Emma você já conhece e minha mãe fica no andar de cima sem sair nunca, seu nome é Lya. Ela tem uma condição médica, minha mãe está ficando demente e quebrou o fêmur, ela não anda mais pois não tínhamos condição de pagar a cirurgia.

- Ah eu sinto muito - Disse Théo - Se precisar de minha ajuda senhora Eléa, eu terei prazer em ajudar, mas fica tranquila. Amanhã eu irei acampar aqui perto, vou estar em minha barraca e podem me chamar para ajudar, é o mínimo que posso fazer por vocês que foram tão gentis comigo.

Ele olhou as três porém detendo o olhar nas irmãs Emma e Hanna que pareciam tão iguais, ruivas de olhos claros. Emma baixou a cabeça em agradecimento. Théo olhou Hanna e essa o levou ao segundo andar para ocupar um quarto naquela noite. O brasileiro observava a tudo, o piso de madeira corrida que ia de ponta a ponta do corredor, em algumas partes um pouco corroído, as paredes igualmente de madeira e mais quadros. No segundo andar os quadros eram de paisagens suíças e não da família, os da família ficavam no primeiro piso. Havia uma passadeira no corredor, de cor azul e marrom que combinava com a decoração primorosa. Havia um jarro de flores em um criado mudo no meio do corredor e os lustres simples que vinham do teto eram de vidro com 3 lâmpadas, cada um. Théo achou estranho o jarro de flores já que estavam no inverno e quando se aproximou percebeu que eram de plástico. Hanna reparou na sua curiosidade.

- Ah não ligue, no verão temos flores de verdade, abundantes em Wengen, tudo fica lindo, mas no inverno mamãe usa essas flores sem vida... como quase tudo no inverno...

A observação dela foi carregada de emoção e aflitiva. Théo parou ao seu lado quando Hanna apontou o quarto.

- Não é o hotel mas é quentinho e limpo - Ela riu.

- Eu agradeço muito Hanna... Muito obrigado. - Vocês todos aqui se comunicam bem em inglês não é?

- Ah claro - Ela segurou os cabelos ruivos para o lado do corpo sorrindo - Somos uma cidade turística e meus pais chegaram aqui para trabalhar para os hotéis. Tivemos que aprender.

- Isso é muito bom para mim, se falassem somente alemão ou francês, eu estaria perdido

Eles riram.

- Hanna!! - Gritou a mãe la de baixo após ouvir as risadas.

Emma andou até a janela roendo a unha e olhando para fora. A irmã mais velha tinha desenvolvido uma vontade platônica de conhecer melhor o brasileiro, mas a mãe e a irmã seriam um obstáculo em sua vida. Ela odiava aqueles costumes da igreja, a castidade que já não possuía mais e queria muito ser livre daquilo tudo e do jugo enérgico de sua mãe com relação a sexualidade feminina. Emma mantinha todos aqueles sentimentos trancafiados em si, do jeito que estavam. Hanna desceu as escadas e viu a irmã na janela roendo a unha e já tinha deduzido que ela estava com pensamentos na cabeça. Era claro para Hanna que Emma tinha levado o brasileiro para casa com intenções românticas das quais a mãe nem fazia ideia. Hanna se sentou no sofá e ficou pensando sobre ele.

- Nada de se sentarem! Vamos me ajudar a fazer a sopa! Temos um convidado médico.

- Mãe! - Protestou Emma - Eu já fiz as compras, estou cansada de subir essa colina na neve, por favor, Hanna?

- Eu ajudo. - Respondeu Hanna

- Espero que ele tome um banho pois deve estar cheirando mal de ter subido essa colina. - Disse a mãe. - Emma, vá mostrar a ele como funciona a água.

- Certo - Ela deu um pulinho de onde estava e subiu correndo as escadas

Hanna e Emma ainda se olharam brevemente e Emma podia sentir a inveja no olhar da irmã. Hanna tinha somente vinte e dois anos e Emma, tinha vinte e cinco mas disputavam sempre desde crianças por alguma coisa. Emma odiava aquelas disputas da irmã com relação a seus cabelos compridos, quem fazia melhores tranças, quem andava mais rápido e ultimamente quem sabia mais sobre sexo. Emma escondia sua condição da família pois ficaria mal falada e Hanna só sabia o que aprendera na escola com as colegas. Ainda assim Hanna media com a irmã seus conhecimentos de internet e novelas.

Ao chegar a porta do quarto de Théo, esta estava entreaberta e o brasileiro aparentemente soube lidar com a água pois estava de toalha se enxugando. Aquele momento foi mágico para a ruiva mais velha já que ela não sabia se teria outra oportunidade de apreciar o corpo atlético de Théo outra vez. Emma reparou no abdome talhado por exercícios, no peitoral e braços fortes. Quando Théo se virou viu que alguém se afastou rapidamente da porta no corredor.

- Olá?

O rapaz foi até a porta e viu Emma andar rápido pelo corredor para descer.

- Emma?

Ela parou e se virou.

- Mamãe mandou vir te ensinar como lidar com a água mas vejo que conseguiu sozinho ...

Ela passeou os olhos pelo corpo do rapaz e viu que ele olhou para alguém atrás de si. Emma se virou e deu um grito ao ver Hanna atrás de si com toalha na mão. As duas gritaram.

- Emma! Está louca?

- O que você veio fazer?

- Mamãe mandou trazer toalha se não tivesse no banheiro dele.

- Ah sim, ele achou toalhas...

Hanna olhou para ele e se deteve no corpo atlético do brasileiro que aquela altura se sentia uma atração circense.

- Hanna?! Emma?!

Eles ouviram a voz da avó chamar de dentro do quarto.

- Oi, vovó? - Responderam as duas em uníssono.

- Vá ver ela Emma, eu estou ajudando na sopa. Logo venho te chamar ta, Théo?

- Sim, claro - Ele se escondeu atrás da porta por estar de toalha - Eu vou me vestir.

- Ele vai se vestir - Disse Hanna - Melhor que ficasse assim o resto da noite - Pensou alto

Emma arregalou os olhos para a irmã.

- Você não tem vergonha? Nem conhecemos ele direito e você pensando essas coisas.

Hanna riu da irmã e a olhou de cima a baixo.

- Como se você não tivesse seus pensamentos pecaminosos com os homens não é Emma? - Hanna falou com deboche na voz e começou a descer as escadas.

- Emma! Hanna! - Continuava a gritar a avó Lya.

- Já vou vovó! Essa vai ser uma longa noite, Jesus... - Disse Emma a si mesma entrando no quarto da avó.

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