Capítulo 2

Valéria estava de braços cruzados, sentada de frente para o diretor do Colégio, embravecida. O canivete estava dentro de um plástico transparente e lacrado em cima da mesa. Os seguranças estavam na sala para garantirem que ela não atacasse mais ninguém, por isso o diretor a ignorou, concentrado em seu computador a digitar alguma coisa importante, senão ele estaria tão nervoso quanto o professor Magnavitta que também estava lá a roer as unhas.

De repente, ouviram-se murmúrios do outro lado da porta, alguém a bateu e o diretor pediu para que abrissem-na. Um homem alto de quarenta e sete anos, porém, bem-conservado e bem-vestido, entrou de mala e óculos escuros. Ele cumprimentou a todos, retirou os óculos e deu uma olhada bem severa para a garota que não disse uma palavra desde que entrou na sala. Ela estava sentindo-se como se estivesse na prisão, na ala feminina, no ano passado.

— Então, Dr. Palawitz, a sua filha aprontou mais uma vez...

— Eu não fiz nada — Valéria interrompeu o diretor.

— Cale a boca, o diretor está falando — repreendeu o pai de Valéria, o Doutor Gade Palawitz.

— Eu tenho que me justificar. Não é justo que eu não tenha uma defesa — insistiu Valéria.

O Dr. Palawitz fechou os olhos, pôs os dedos no rosto em sinal de insatisfação e suspirou.

— Por favor, diretor, prossiga.

— A sua filha foi flagrada ameaçando os alunos da própria turma com este canivete-suíço, fora antes tê-lo apontado para um professor — o diretor mostrou o objeto como se fosse a prova de um crime.

Gade o pegou e deu uma boa olhada.

— Meu Deus, e já está todo ensanguentado. Por favor, me diga que ela não esfaqueou ninguém com isto.

— Pelo menos, ninguém da turma. Ao que sabemos.

— Onde você conseguiu isto Valéria? — questionou o Dr. Palawitz a exalar exasperação para a sua filha psicopata. — Por que está todo sujo de sangue? Não minta para mim.

— Eu ganhei de um amigo e o sangue é falso.

— Por que sinto que você está mentindo?

Porque ela estava.

— Eu não estou mentindo e também não fiz nada contra ninguém deste lugar idiota.

— Eu não sei mais o que fazer com você, menina.

— Se me permite, doutor — disse o diretor —, por que não a leva para se consultar com um psicólogo?

— Eu a levei em dez. Metade psiquiatra. Ela se recusou a conversar ou interagir com cada um deles. Cada um usou um método diferente, mas todos sem diagnóstico exato.

— O senhor pode matriculá-la num internato militar?

— Eu já fiz isso. Ela foi expulsa. Conseguiu tocar fogo no prédio principal. Deu um prejuízo imensurável. Semana passada tocou fogo no gato da casa.

— Meu Deus! Então a coloca numa prisão feminina.

— Já aconteceu. Foi presa por associação ao tráfico. Ficou presa por horas até provarem que ela era menor de idade. Ela já estava formando uma gangue lá dentro.

— E realmente ela se associou ao tráfico? — perguntou o diretor surpreso.

— Claro que não — ela própria respondeu. — Eu só estava no lugar errado e na hora errada.

— Leve-a para um exorcista — sugeriu o professor Magnavitta.

— Controle-se professor — repreendeu o diretor.

— Na verdade, diretor — disse Gade —, pensei mesmo em levá-la, mas tenho medo do que o padre pode revelar, ou do que ela pode revelar ao padre.

O diretor suspirou.

— Infelizmente, Doutor, nós não podemos mais continuar — o diretor entregou dois papeis-ofício para o Dr. Palawitz.

— O que significa isto?

— É uma carta de expulsão. O senhor precisa assinar, já que ela ainda tem dezessete anos.

— E se resolvermos isto de outro jeito, diretor? Posso pagar qualquer coisa...

— Tenho certeza de que pode, Dr. Palawitz, mas esta não é a questão. Ela repetiu de ano uma vez e pelas péssimas notas vai repetir novamente. Se este fosse o último ano dela aqui eu aguentaria até acabar. A questão é que todos os funcionários deste Colégio, inclusive eu, já entramos em nossos limites com esta garota. Não dá mais, mesmo. Sinto muito, mas o senhor precisa assinar.

O Dr. Palawitz leu a carta com atenção.

— Não tem outro jeito?

— O senhor pode tentar matriculá-la em outro Colégio.

— Ela está com fama de terrorista pela cidade. E eu não confiaria nela em um lugar longe de casa.

— Que tal aulas particulares?

— Ela nunca para quieta dentro de casa.

— Não sei mais o que dizer, senhor. Só um milagre.

— Hei! Eu ainda estou aqui — protestou Valéria.

O Doutor Gade Palawitz assinou a carta. Depois de alguns minutos, Valéria despediu-se do Colégio com sarcasmo. Nunca mais ela ousaria pôr os pés lá dentro outra vez para estudar. Nem mesmo a deixaram voltar à sala para buscar os seus pertences, devolveram a sua mochila no portão.

Ela agora estava dentro do carro com o seu pai extremamente irritado, prestes a descarregar toda a sua raiva nela. Uma coisa ela herdou dele.


***


Gade Palawitz não disse uma palavra à sua filha dentro do carro, estava de cara amarrada desde que entrou na sala do diretor, tinha muitas coisas para dizer a ela, mas cansou-se de ser repetitivo. Sabia ele que se explodisse com Valéria naquele instante, depois não diria mais nada, chegava tão cansado do trabalho que tudo o que desejava era "esfriar a cabeça" e dormir muito, contudo, ele continuava a trabalhar até não poder mais. 

— Você não vai dizer nada? — arriscou Valéria, muito acostumada com as brigas e discussões com o pai.

— Neste momento, eu só quero voltar para a empresa e continuar o meu trabalho — disse o homem tranquilamente. — Não vou esquentar a minha cabeça com você agora, menina. Quando estivermos todos reunidos em casa, teremos uma conversa muito séria. Está na hora de tomarmos medidas drásticas com você.

"Vamos ver quais medidas ele vai tomar desta vez", pensou Valéria com sarcasmo.

O Dr. Palawitz parou o carro na entrada da mansão.

— Desce! — ordenou de maneira rude.

Valéria o olhou com desprezo, pegou a sua mochila e desceu do carro. Bateu a porta tão forte que pareceu que algo no carro foi danificado. O Dr. Palawitz comprimiu os lábios de raiva, sentia muito desgosto, para um pai ter uma única filha e ela ser a "pior pessoa do mundo" era lamentável. Arrastou o carro como se estivesse em fuga.

Valéria abriu o portão da mansão e entrou, de longe vieram a correr dois cachorros Pit Bulls na sua direção a abanar a pequena cauda de saudades da dona. Ela não deu a mínima importância, apesar de não os ver há algum tempo e continuou a andar arrastando os pés até a porta. Os animais ficavam soltos pela noite, e Valéria os alimentava quando eram filhotes. 

Para a garota, a sua casa era entediante, não havia nada para ela fazer, nada de interessante passava na televisão, não dava para interagir com os empregados. Já estava saturada de navegar pela Internet sem rumo — numa época onde o acesso à internet era extremamente raro. Ela própria não acreditou que sentiu falta do Colégio no mesmo dia em que fora expulsa. Apesar de ela ver os seus pouquíssimos amigos com mais frequência fora da sala de aula, lá dentro sentia outra emoção. Ela não saberia o que fazer pela manhã inteira sem os seus amigos. Precisava de novos? Quem sabe!

Ao entrar no quarto escuro e cheio de objetos de ossos, a primeira coisa que passou pela sua mente foi a loja de artefatos mágicos, ela retirou da mochila o que havia comprado na loja e colocou os objetos numa estante quase cheia de coisas. Em seguida foi tomar um banho.

Depois do banho, experimentou as suas roupas novas e assim mesma ficou. Valéria pegou o seu celular da Sony Ericsson e ligou para a sua melhor amiga, a Pétala, após várias chamadas frustradas, ela decidiu mandar uma mensagem pedindo para que ela retornasse as ligações, depois mais algumas e outras mais até formar cinquenta e sete mensagens enviadas para um mesmo contato.

Que desespero!

Sem mais nada para fazer, e quase "morrendo" de tédio, Valéria invadiu o quarto da mãe, a senhora Colette Évollut, que tinha o cargo de Administradora na empresa do próprio marido, a mineradora Palawitz S. A.. Ela remexeu nas suas gavetas a procura de remédios e encontrou um, tarja preta, que a mãe tomava para dormir. Valéria nem leu o rótulo. Pegou quatro comprimidos e foi para o quarto se drogar.

***

 

— Eu não acredito, Gade, expulsa, depois de tanto tempo? — indagou Colette no carro com o marido a dirigir para casa, o céu ostentava os últimos momentos do crepúsculo no horizonte. — O que ela fez dessa vez?

— Ameaçou um professor e a turma inteira com um canivete suíço, aterrorizando todo mundo — o Dr. Palawitz estava calmo, mesmo a tocar num assunto tão estressante.

— Por que será que não estou surpresa? Nem foi grande coisa para o que ela já fez — Colette ficou alguns segundos em silêncio. — Alguém saiu ferido?

— Felizmente não, apesar de o canivete estar manchado de sangue e ela disse que o sangue era falso — Gade bufou. — Não engana nem a si mesma.

— Minhas esperanças estão se acabando, Gade. Pela primeira vez ela ficou quase dois anos inteiros em um colégio e ela só tem dezessete anos. O que mais ela pode aprontar?

— Vamos pensar, Colette. Por que ela ficou lá tanto tempo?

Colette arregalou os seus olhos azuis.

— As amizades — ela respondeu como se estivesse matado uma charada.

— Então, será que uma boa amizade não mudaria o seu comportamento? — sugeriu Gade.

— Pode ser. Garotas nessa idade são bem influenciadas. Agora, tem que ser alguém que se entenda com ela e, ao mesmo tempo, tem que ter bom caráter.

— Só não quero mais ela andando com aquela filha de hippies, porque depois dessa menina, Valéria começou a se vestir como uma maconheira. Antes ela só gostava de usar preto. Agora usa piercings, tatuagens, caveiras, roupas rasgadas, não-sei-mais-o-quê — ele referia-se à Pétala. 

— Que tal se pagarmos um garoto bonito e de bom caráter para ficar de companhia com ela lá em casa agora que ela não vai mais para o colégio por um tempo? — sugeriu Colette como se aquilo fosse uma ótima ideia. 

— O que é isso, Colette?

— Isso mesmo, que você ouviu, querido. O que mais pode influenciar uma mulher senão um homem qual ela esteja apaixonada?

— Você quer colocar um rapaz desconhecido dentro da nossa casa, durante às doze horas de relógio que estivermos na empresa, para fazer "companhia" à nossa filha perturbada e transar com ela para ver o que acontece depois? Ainda pagá-lo por isso?

— Eita! Não pense dessa forma, meu amor, e o garoto não será um total desconhecido. Conhecemos os filhos de alguns dos nossos funcionários e poderíamos selecionar um.

— Eu entendi, mas... Como fica a questão da... — Gade limpou a garganta antes de concluir. — Da transa.

— Pelo amor de Deus, Gade. Só pensa nessa parte? Combinamos com o rapaz para não tentar nada sexual com ela e colocamos um dos nossos empregados para espiar, resolvido.

— E se ela tentar alguma coisa sexual com ele?

— Aí será ponto nosso, um começo para nosso plano.

— Seu plano. Eu ainda acho isso uma maluquice.

— Espero que você ainda não esteja a considerando virgem, apesar de ela nunca ter demonstrado que já namorou alguma vez na sua vida.

— Estamos falando de uma garota de dezessete anos. Também não vou considerá-la como uma prostituta e minha casa não vai ser um cabaré.

— Gade, vai por mim. Sou mulher e sei o que pode estar faltando na vida da nossa filha, um homem. Se isso não der certo, então a levaremos para um exorcista. Que foi a sua ideia de anos atrás e que eu acho uma maluquice!

— E nunca mudou. O professor qual ela tinha ameaçado hoje também falou a mesma coisa. Ele parecia estar assustado. Enfim, a minha ideia com esse assunto foi colocá-la num convento.

Eles pensaram por cinco segundos depois olharam um para o outro a dizer um uníssono:

— Não!

Fez-se outro silêncio e Gade suspirou pelo cansaço.

— Onde foi que erramos? Por que essa garota é deste jeito?

— Poderia sugerir que é a falta de um irmão também, mas ela é tão egoísta.

— E você nem pode mais ter filhos, esqueceu?

— Dessa parte eu não queria lembrar, obrigada por me deixar deprimida, de novo.

— Ó, querida, não foi a minha intenção.

— Hum!

E a conversa encerrou-se por aí. 

 

***

 

O Sr. e Sra. Palawitz entraram na casa a rir da ideia de colocarem a Valéria num convento, mesmo sendo um assunto muito sério, o humor era bem-vindo para aliviar um pouco a tensão. Não demorou muito para uma empregada da casa avisar que receberam uma ligação que foi pedido para retornarem com urgência. 

— Que estranho! — comentou Colette quando a empregada disse quem era, uma pessoa inesperada. 

— O que foi? Quem era? — quis saber o marido a retirar o palitó. 

— A filha dos hippies, a amiga de Valéria.

Pétala sabia que o pai da sua melhor amiga não gostava muito dela, por isso nunca ligou para lá. Após ser mal-tratada às três vezes que fora à residência dos Palawitz, ela parou de, até mesmo, visitá-la, porém, Valéria quem passou a frequentar a sua casa. Depois disso, Valéria nunca ia para casa ao término das aulas. Só aparecia perto do anoitecer.

Por isso, Colette estranhou a ligação da garota e Valéria nunca saía de casa sem o celular, ela retornou a ligação, e quando alguém atendeu, ela disse: 

— Alô! Aqui quem fala é Collete Pallawitz, posso falar com Pétala? 

"Oi, dona Colette", disse Pétala do outro lado da linha. 

— Sim. 

"Tem muito tempo que a senhora está em casa?"

— Acabei de chegar. Algum problema? Aconteceu alguma coisa?

"Quero saber se a Valéria está em casa também. Ela me ligou e mandou várias mensagens, só que eu não pude atender no momento. Estava super-ocupada. Agora que retornei as ligações ela não atendeu."

— Eu vou procurá-la. Se ela saiu, deve ter dito a algum dos meus empregados para me dar o recado, como ela sempre faz. Qualquer coisa eu retorno para você. Tudo bem?

"Certo! Tchau, dona Colette", ela encerrou a chamada. 

Colette perguntou às empregadas se Valéria havia saído e disseram que não a viram naquele dia. 

— Ela não está na casa da amiga? — perguntou Gade, a enforçar-se para demonstrar que importava-se com aquilo. 

— Parece que não — respondeu Colette. — Vou ver se ela está dormindo no quarto.

— E vou tomar um banho. Tomara que ela tenha fugido de casa. — Ele disse esta última frase para si próprio.

Colette bateu na porta do quarto de Valéria a chamá-la e Valéria não respondeu. Ela bateu mais forte, ainda assim não houve respostas. Sabia que Valéria detestava que entrassem no quarto dela enquanto ela estivesse lá dentro, mas a esse ponto, era óbvio que o lugar estava vazio, contudo, Colette decidiu entrar para certificar-se, girou a maçaneta e empurrou a porta que não se abriu. Ela tentou mais outra vez e sem sucesso, desesperou-se.

Sabia que todas as portas dos quartos e banheiros da mansão só podiam ser fechadas por dentro. Nesse caso ela deduziu que a sua única filha havia se tracado e feito alguma besteira. A primeira reação que surgiu à mente de Colette naquela hora foi de gritar por socorro e esmurrar a porta. Foi o que ela fez, mesmo se no fim não fosse nada demais. Cada funcionário da mansão aproximou-se a murmurar e a querer saber o que ocorria. Ela explicou que a porta estava trancada e Valéria não respondia, ou quem quer que estivesse lá dentro.

Depois de tanta coisa que Valéria fez, tudo podia acontecer.

Foram buscar a chave-mestra com o Dr. Palawitz. Em alguns instantes ele próprio, meio molhado, apareceu vestido com roupão de banho a abrir caminho por entre os empregados.

— O que aconteceu? — perguntou ao usar a chave-mestra na porta.

— Valéria trancou a porta e não abre de jeito nenhum. Ela nunca fez isso — Colette não conseguia disfarçar a aflição que carregava na sua voz.

Assim que o doutor conseguiu destrancar a porta, todos os que assistiam expressaram espanto com que o viram.

Valéria estava deitada, desacordada, com os braços e a cabeça para fora dos limites da cama. Parecia um cadáver. Mais pálida que céu nublado. A boca vermelha estava aberta. Paralisada. Para quem presenciou, sentiu que algo muito estranho havia acontecido. Não sabiam explicar. Mesmo o quarto sendo tão sombrio, o ambiente estava mais pesado que o habitual.

Gade conferiu os seus batimentos cardíacos, que estavam acelerados, enquanto o resto do pessoal aguardava respostas. A respiração de Valéria estava fraca, mas pelo menos ainda estava viva. Contudo, a sua pele estava tão fria quanto uma noite de inverno. Ele carregou-a no colo e a levou imediatamente para o carro. 

— Vá com ela para o hospital, Colette — Gade a pôs no banco do carona. — O motorista irá levá-las.

— Você vem? — questionou Colette.

— Não sei se poderei ir. A qualquer momento, receberei uma ligação muito importante e terei que estar no meu escritório. Lá estão todos os documentos que preciso organizar para...

— Gade, a sua filha está morrendo — ela o interrompeu. — Você não pode adiar esta ligação? — Colette não percebeu que tinha alterado o tom de voz.

— Colette, não dá para discutir isso agora com você. Então vá logo antes que o pior aconteça.

— O pior já aconteceu, e você nem percebeu.

— Do que é que você está falando? — Colette olhou para Gade como se ele fosse um grande imbecil e nada respondeu, então ele continuou: — Quando eu terminar com o meu compromisso, ou se vocês demorarem muito, prometo que vou lá ver como ela está.

— Você é inacreditável — a mulher entrou no carro e foi embora.

Ele observou o carro sumir ao dobrar a esquina. Sabia que a sua mulher ficaria muito decepcionada depois, mas Colette estava acostumada com a assiduidade do marido na empresa que gerenciava, porém, foi a primeira vez que aconteceu uma coisa dessas com a sua filha. Ela acidentou-se muitas vezes, mas ir para o hospital naquele estado fúnebre foi preocupante. 

 

***

 

O médico abriu a porta e saiu do quarto da paciente e Dona Colette levantou-se da cadeira para saber sobre o diagnóstico.

— Como ela está, doutor? Ela está bem? Está acordada?

— Não se preocupe, mãe, ela passa muito bem. Melhor impossível. O que aconteceu com ela foi efeito dos comprimidos que ela ingeriu de barriga vazia. Na verdade, ela disse que comeu sorvete de manhã, depois não ingeriu mais nada. Ela poderia ter dado uma overdose, mas ainda bem que não aconteceu, é uma menina forte. 

— Que remédio foi esse que ela tomou?

— Ela não sabe. Disse que a senhora toma quando tem insônia. Existem tantos então não podíamos adivinhar.

— Foi o Buspirona.

O médico a olhou como se ela tivesse cometido um pecado grave.

— Esse remédio foi recomendação médica, senhora?

— Sim, senhor — ela respondeu como se nunca tivesse feito nada ilegal na vida.

— Tudo bem! Se não fosse, iria sugerir que não o tomasse mais. O uso frequente pode causar sérios efeitos colaterais. Enfim, a sua filha está bem e acordada, pode entrar se quiser.

— Muito obrigada, doutor. Com licença.

Colette entrou no quarto e encontrou Valéria retirando a agulha do braço. O soro havia se esgotado.

— Oi, minha filha.

— Oi, Colette — Valéria considerava sua mãe, mas não se referia a ela como tal por pensar ser muito infantil.

— Como está se sentindo? — perguntou Colette a sentar-se numa cadeira próxima à maca.

— Estranha, por ter dormido de tarde na minha cama e acordado de noite num hospital.

— Realmente, deve ser muito estranho, mas me diga uma coisa, minha filha, por que você tomou os comprimidos? O que estava pensando em fazer?

— Sinceramente... Nada. Estava com tédio e decidi tomar os seus remédios para dormir enquanto as horas se passavam.

— Tem certeza?

— É claro, Colette. Por que todo esse suspense? Não me diga que você pensou que eu queria me matar me entupindo de remérios?

— Oh! Foi exatamente o que pensei.

— Sério, Colette? Credo! Eu me amo demais para querer me matar. Seria mais fácil eu querer matar alguém.

— O importante é que você está bem — Colette queria abraçá-la, mas não fez, Valéria odiava demonstração de afeto maternal. — Vamos para casa? — ela pegou na mão da filha.

— Agora mesmo. Será que eu posso ir com este roupão?

— Para quê, minha filha? Ninguém usa roupa de hospital. Vá se trocar.

— Como a senhora é estraga-prazeres.

Colette não imaginou que Valéria fosse obedecer. Chegou até a acreditar que o remédio poderia ter mudado a personalidade da garota, até ela jogar uma lata de refrigerante pela janela do carro, quando elas estavam a voltar para casa, e atingir um casal de namorados na rua. Valéria riu muito do próprio comportamento hiperativo.

— Por que você fez isto, Valéria? Coitados.

— Eu conheço aquele casal. Estudam na mesma sala que eu... — ela interrompeu-se ao lembrar que foi expulsa do colégio. 

— Você está sentindo falta, não é?

— Na verdade, eu sinto falta da minha laia e de ter que não ficar em casa o dia todo. O Colégio? Eu quero que exploda. Posso me acostumar sem o "blábláblá" dos professores, e do "anote isso", ou "pesquise aquilo", ou "vai cair na prova". Que saco!

— Mas, você tem que estudar, Valéria, para ser alguém na vida.

— Para quê ser alguém na vida, se todo mundo vai morrer mesmo.

Colette ficou sem resposta.

— É isso que justifica o seu comportamento, esta frase pessimista?

— Não, mas eu gosto da ideia de saber que vamos morrer um dia.

— Deus é mais forte! — este comentário de Colette fez Valéria rir até chegarem em casa. Um riso bem controlado.

Valéria não era muito de rir. Devia ser o efeito do remédio no seu corpo. Assim que chegaram, uma das empregadas da casa foi levar uma boa notícia para a garota.

— Boa noite, Dona Colette, Valéria. Está se sentindo melhor?

— Estou sim. Qual o motivo deste sorriso bobo?

— O seu pai mandou dizer que deixou uma surpresa para você no seu quarto.

Colette e Valéria entreolharam-se desconfiadas. Que surpresa Gade poderia ter deixado? Não era de costume ele fazer essas coisas. Sinceramente, era mesmo de se estranhar.

 

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