01 - Doce Monotonia

É noite de quinta-feira.

Uma maldita quinta-feira!

Eu sou um dos 5.000 espectadores ocupando as acolchoadas poltronas vermelhas do Grandioso Teatro Central, em que uma famosa cantora lírica corpulenta de bochechas vermelhas grita no palco com seus pequeninos braços rechonchudos estendidos. Chamam isto de ópera e eu, de ataques de avestruzes famintos.

Pergunto-me se esse realmente é o Brasil em que eu moro, em pleno 2020.

Minha mãe, Berta de Lara Monteiro – dona de uma grife de moda muito conhecida, porém com um nome nada criativo: Grife de Lara –, acredita que eu estar aqui pode me ajudar.

Meu pai, Tibério Monteiro – diretor administrativo de uma indústria automobilística –, sonha em ser sócio majoritário, logo, vive agradando seus superiores e tentando impressioná-los. Assim explica a grande preocupação que tem com a imagem da família – prefere me levar para encontros com seus amigos em clubes de golfe.

Tudo isso começou porque fui diagnosticado, aos 14 anos de idade, com depressão e transtorno de ansiedade generalizada. Portanto, fui submetido a, uma vez por semana, fazer psicoterapia e a diariamente tomar medicamentos como antidepressivos e ansiolíticos.

Graças aos sintomas, como as preocupações e os medos excessivos, a visão irreal de problemas, a inquietação, a sensação de estar sempre “nervoso” e a irritabilidade, minhas relações interpessoais nunca foram boas... talvez isso explique o fato de eu não ter amigos para me levarem em ambientes melhores.

Será que estou tendo uma adolescência normal?

Mais tarde, a psicóloga que me atende disse que eu “precisava” fazer contato com meu “meio”, ou seja, com o ambiente - o mundo. Assim sendo, eu sou obrigado a frequentar festas, encontros, palestras, reuniões e qualquer tipo de evento dos meus pais. Isso se deu porque a falta de diálogo está aos poucos me levando para um cantinho sombrio dentro de mim mesmo. Pode até ser verdade, mas eu tenho certeza de que não é a esse tipo de ambiente que ela estava se referindo.

Minha maldição!

Por essa questão, eu preciso exteriorizar meus sentimentos e como fazer isto com a terapeuta está fora de cogitação, decidi escrever. Portanto, acabei criando um blog, chamando-o de Dulce Soledad. Claro, tenho uma assinatura fictícia, chamada Human Sevdaliza, para não me identificarem.

Nem sempre escrever me ajuda e como eu não vivo sendo monitorado por meus pais viciados em seus trabalhos, em alguns momentos, burlo minhas obrigações com medicamentos, o que complica meu tratamento.

O engraçado é que as pessoas olham para mim com certeza me analisando, me julgando e acreditando que minha vida é perfeita e que eu não tenho nenhum problema.

Minha vida se resume em uma simples palavra: monotonia.

Isso se comprova começando pelo meu nome: Nicholas Pietro Bartolomeu Tibério de Lara Monteiro. Talvez seja um nome engraçado ou demasiado chique, mas eu simplesmente carrego desde o ventre a alienação dos meus ricos pais controladores.

É com esse pensamento que eu rezo a todas as forças superiores existentes que me congelem aos 17 anos, eternamente. Não penso em crescer, muito menos construir uma família e ser tão chato como meus pais.

Eu posso aproveitar toda a riqueza da Berta e do Tibério, mas o dinheiro que recebem e acumulam não me faz mais e nem menos feliz. Porém, existe um lado bom… eu posso ter tudo o que quiser. Talvez exista uma contradição em meus pensamentos.

Às vezes eu consigo pensar como um verdadeiro burguês… ou talvez eu realmente seja um, mas que não tem coragem para assumir que, de uma forma ou de outra, é totalmente dependente.

Pensar nessas questões me deixa irritado, ainda por cima, minha ansiedade está quase dominando, então tenho períodos eufóricos ou um pouco exaltado. Para resolver, eu preciso pôr para fora toda esta energia, mas ficar parado pode me causar uma crise e sinal disto é minha irritabilidade, meu nervosismo e minha sensibilidade.

Sim, eu sou uma verdadeira bomba atômica, que se controla para não explodir nesta Ópera.

Meu refúgio é meu headphone rosa, conectado em meu celular via bluetooth e grudado em minhas orelhas, ao som da música “Scary Mask”, da Poppy com a banda The Fever 333.

Enquanto ouço, navego na internet.

As últimas atualizações são referentes a celebridades traindo seus companheiros, o que não me agrada muito, então alterno entre o Instagram e o Facebook. Não deixo de visitar meu blog para responder alguns comentários.

Vez ou outra, eu ergo o olhar na esperança de a Ópera ter terminado, mas cada vez que faço isso, me frustro.

Para mim, Poppy ganha de lavada desta avestruz prenha em trabalho de parto infindável.

Rio baixinho dos meus pensamentos, mas acabo chamando atenção da minha mãe, que me dá uma leve cotovelada. Evito olhá-la, mas recebo outra.

Não tenho para onde escapar.

Lentamente, viro a cabeça, um tanto robótico, e a encaro sorrindo, lembrando-me mais uma vez do meu pensamento criativo e infantil.

Berta está falando algo comigo, mas não consigo entender… ou não quero. Eu não a ouço, a música no headphone está muito alta, justamente na parte mais gritante da The Fever 333.

Eu gosto disso. Não preciso ouvir e sim fingir, por isso, balanço a cabeça em concordância sem saber o que Berta fala, até que ela para e torna a se concentrar na Ópera.

A ação de minha mãe desperta em mim uma curiosidade.

Começo a observar todos ao meu redor, o máximo que eu consigo. Vagarosamente passo meu olhar por suas faces sérias e concentradas.

Então me permito imaginar o que estas pessoas pensam agora. Pergunto-me se elas realmente prestam atenção na cantora ou controlam-se e sofrem por estarem aqui passando uma forçada – falsa – imagem formal para seus colegas ricos, que chamam de amigos.

Eles não gostam de Ópera, mas precisam dela, ou das pessoas que a frequentam.

Algumas mulheres choram e enxugam suas poucas lágrimas secas com lencinhos perfumados, cheias de pompa. Elas de fato se emocionam ou são atrizes medíocres?

Volto a me encostar na poltrona e observo a performance da cantora, imaginando-a cantando um bom rock pesado ou um jazz bem animado, tornando o espetáculo mais divertido.

Após um suspiro de lamento, baixo meu olhar vislumbrando a tela do celular, em que surge uma notificação de e-mail, o que me faz abrir um grande sorriso.

Não é spam, e sim uma pessoa.

Billie não revela sua real identidade, assim como eu, logo, uso também um nome fictício. A diferença é que eu acabo me expondo mais do que devo nestas trocas de e-mails, simplesmente por sentir a necessidade de desabafar com alguém na mesma situação que eu.

Conheci Billie através de comentários que ele fazia em meus textos sobre suicídio.

É… eu tentei me matar uma vez e fracassei, mas, como consequência, parei no hospital e nos jornais, gerando muitas opiniões, como a especulação de que foi uma intervenção para me dar uma outra oportunidade de viver e olhar para os caminhos em minha frente.

Rasgar a minha pele e sangrar até não ter mais vida, para mim, parecia uma escapatória muito dolorida e suja, então minha única alternativa foram comprimidos, me causando uma overdose.

Devido ao período político, minha família estava financiando um deputado e, como forma de desestabilizar o concorrente, o partido inimigo encontrou brechas nas campanhas e eu acabei sendo uma.

Usaram minha situação, divulgando nas mídias a negligência dos meus pais, que permitiram isso acontecer com o próprio filho. Berta e Tibério enlouqueceram e imediatamente cortaram todo o vínculo com o deputado, afinal, preferiam zelar pela imagem perfeita da família. Logo, para não serem tão afetados e perderem influência, se vitimizaram.

Mas os piores comentários eram os que alegavam ser frescura minha, uma fase, uma bobagem de adolescente e que tudo iria passar, mas nunca passou. Sempre é fácil para o outro dar pitacos em nossas vidas, mas nunca param para compreendê-las. Eu, quando canso de esperar os outros me acolherem, entrego-me mesmo a essa maldita depressão.

Não digo isso desejando que outras pessoas façam o mesmo, mas na esperança de que elas encontrem o caminho que nunca encontrei, o ouvido que nunca parou para me ouvir sem nenhum juízo de valor.

Eu precisei, precisei muito de atenção quando eu tinha apenas 14 anos, quando… quando… talvez eu não queira pensar nisto no momento, então meus olhos, que já estão desfocados olhando para o corpo do e-mail aberto, voltam a ganhar foco.

Billie Sem Eilish

Qui, 27 de fevereiro, 20:34

PARA: Human Sevdaliza

ASSUNTO: Cinzeiro da morte

Sevdaliza,

Tive uma briga muito feia com minha mãe neste instante. A vontade que eu tive, sinceramente, foi de pegar a porra do cinzeiro e estourar sua cabeça. Estou naquele momento super obscuro, sim, acredite, soltando fumaças por todos os buracos que existem em meu corpo.

Eu me cortei assim que me tranquei no quarto. Foi gostoso, muito gostoso – estou falando isso só para lhe deixar atiçado, afinal, sei que você não tem coragem – e corri aqui para escrever para ti. O que você está fazendo? Espero que me responda rápido, preciso conversar.

Billie.

Começa a tocar a música “Animal”, de Troye Sivan, e acredito não ser o melhor momento para ela. Sendo assim, antes de responder ao e-mail, vou em minha playlist particular para momentos de socorro como este.

A primeira música é da Alessia Cara, “Out Of Love”, que fala sobre se desapaixonar e sobre como ela perdeu as esperanças do coração de a pessoa voltar para ela, o que não lhe deixou descansar e lhe motivou a questionar quando foi que se desapaixonou.

De fato, a música não combina com o momento, mas é uma música muito linda e, para mim, a melodia se encaixa perfeitamente.

Billie está com raiva, eu sei e, geralmente, quando ele pensa em matar alguém ou se cortar, é porque foi incapaz de enfrentar algum conflito.

Eu funciono assim, mas não me corto, porém, explodo e sim, sou capaz de acertar alguém com um cinzeiro e depois me arrepender terrivelmente, mergulhando em angústia... por esse motivo os remédios existem em minha vida, assim como os encontros com a psicóloga.

Human Sevdaliza

Qui, 27 de fevereiro, 20:50

PARA: Billie Sem Eilish

ASSUNTO: Cinzeiro da morte

Billie,

Estou trêmulo imaginando toda essa cena... a de você acertando sua própria mãe com um cinzeiro. De metal, pelo menos? Ou a cabeça dela poderia ser muito dura e acabar matando o cinzeiro.

Agora entendi o assunto do e-mail... modo lerdo ativado.

Estou naquele período um pouco agitado... meus pensamentos estão loucos, frenéticos.

Advinha onde estou? Em uma Ópera com meus pais. A maldita psicóloga disse que preciso socializar com o mundo e eles estão me obrigando a frequentar esses lugares chatos. Sim, ela seria uma ótima pessoa para assassinar.

Estou aqui para conversar, ou pelo menos tentar. O que aconteceu entre você e sua mãe? Já limpou o sangue?

Eu não tenho coragem de me cortar, eu sei e me castigo todos os dias por isso, não precisa passar na minha cara. Estou revirando os olhos para você.

Com raiva, Sevdaliza.

O tempo no lado de fora parece passar, mas dentro do teatro parece ser uma miserável tortura. Após responder Billie, começo a estalar os dedos das mãos. Só não faço o mesmo com os dos pés por causa dos malditos sapatos que eu tanto quero tirar e sentir o alívio gostoso de dedos respirando.

Sem muitas opções para alimentar minha ansiedade, começo a roer as unhas e tenho que parar porque estou quase comendo as cabecinhas dos dedos. É muito melhor que gritar e dar um ataque na frente de todos, envergonhando a minha família mais uma vez.

Berta percebe a minha aflição, então toca em minha mão. Me assusto, não apenas com o toque estranho, mas também por causa de uma notificação que chega em meu celular. Não sei a quem devo atender primeiro, então penso no que posso ouvir da Berta, já que é raro ela ser tão empata como está sendo.

Tiro o headphone e encaro minha mãe sem entender nada. Ela dá um sorriso, eu percebo que é forçado, como se sofresse por dentro com estes gritos agudos da cantora.

Esta cena me fez recordar do desenho animado “Coraline”. Inacreditavelmente, neste instante, Berta parece ser a “outra mãe”, ainda mais quando faz uma carinha de como se tivesse bosta debaixo do nariz.

– Já está acabando, Bart. – Berta sussurra.

– Antes ou depois da minha morte? – Pergunto com um tom debochado e irônico.

Berta me ignora e volta a se concentrar no show. Ela não gosta de lembrar que seu filho único quase morreu. Sente-se uma péssima mãe, o que não deixa de ser verdade, mas ela não tem noção disso. E, se sabe, finge descaradamente.

Paro e pondero que, se ela está fazendo isso comigo agora, do nada, é sinal de que ainda tem mais agonia pela frente. Suspiro profundamente, coloco meu headphone e volto a mexer no celular para ler o e-mail e responder Billie.

Às vezes acredito que sou um total desgraçado derrotado pelas vaidades dos meus pais, que se esforçam para mostrar uma verdadeira e maldita família feliz. Uma felicidade de fachada, uma máscara para a sociedade, um fardo que eu preciso carregar eternamente.

Uma hora depois, a tortura teve fim.

Aplausos em perfeita sincronia e, educadamente, nos levantamos. Berta e Tibério, como sempre, precisam cumprimentar seus conhecidos, então aproveito as brechas, apresso meus passos e vou direto para o estacionamento esperar encostado no carro.

Pego meu celular e começo a mexer em busca de uma próxima música. Já ouvi a maioria só na Ópera, então desisto de procurar e deixo tocar “Allie X – Sunflower”.

O estacionamento é grande e escuro, já que fica no subsolo do grande teatro. Há muitos carros e raramente alguém aparece pare retirar o seu. Todos ainda estão conversando e discutindo sobre a ópera, tenho certeza.

– Ah, que ópera maravilhosa! – Assim afirmam eles.

Entediado, bufo, guardo meu celular e começo a caminhar pelo local, mexendo a cabeça no ritmo da música. Ocasionalmente bato as pontas dos meus dedos em minhas pernas, segurando minha vontade de dançar… a música é muito boa, parece que meu corpo não quer me obedecer, e então começo a mexê-lo, sempre buscando um ritmo.

Eu estou parecendo um boneco desengonçado, mas, em minha mente, eu arraso. É, estou mais para um louco em um show de rock, como assisti na internet, já que nunca tive coragem de frequentar um e tenho certeza também que meus pais não deixariam.

Meu sangue esquenta à medida em que eu salto entre os carros, dançando e cantarolando. Minha respiração já não é mais contínua e sim, fragmentada. Existe uma brisa bailando ao meu redor, balançando meu cabelo. Ela é gélida e gostosa e eu exagero apenas para a sentir mais, porém, ela parece mudar. O clima fica estranho, parece esfriar mais, e uma sensação esquisita se apossa de mim, como se dois olhos estivessem me observando.

Meus movimentos ficam mais lentos, o tempo fica mais lento e, à medida que eu tento parar de dançar de uma vez por todas, a música que eu ouço começa a travar como um CD arranhado.

Mordo meu lábio inferior, consigo parar, ofegante, tiro o headphone e, ao me virar, me deparo com uma pessoa encapuzada, toda de preto.

Estagno!

A pessoa misteriosa continua parada.

Viajando em pensamentos lúdicos, estou em um filme de faroeste, em que os dois elementos (e quando digo “elementos”, quero dizer aqueles carinhas que usam aquelas roupas engraçadas de couro, com botas e armas presas em suas cinturas, cuspindo em balde e mordendo um matinho, andando todo arreganhado) se encaram com suas mãos tocando o cabo de uma arma e, no final, apenas um sai vivo. O que for mais rápido.

Eu não tenho arma alguma para puxar. Ele?! Eu não sei. Então pego-me pensando: e se for um assalto? O que devo fazer? Correr ou continuar aqui esperando algum movimento seu?

Meu medo é ser alvo de um sequestro, em que o sequestrador pedirá resgate aos meus pais. Eu não tenho estrutura psicológica alguma, ou até mesmo física, para ser levado.

Então, em estalares de ideias e pensamentos, ainda mantendo meu olhar fixo no corpo alto coberto por vestes pretas um pouco afastado de mim, me vem na cabeça o Billie. Minha nossa, e se for ele? Então é um homem? Se for ele, está conseguindo me assustar.

De alguma forma, entreguei minha localização nas trocas de e-mails. Sinto meu coração acelerar e minhas mãos e pernas tremerem.

A sensação é como se eu estivesse dentro de um quarto totalmente escuro, fechado, selado, sem saída alguma e sem ar. É como se eu estivesse tentando respirar, mas não consigo encontrar oxigênio.

Meus olhos ardem, eu quero chorar…

Meu estômago dói, assim como minha cabeça.

Ouço risos atrás de mim e conversas animadas. As pessoas já estão descendo. Dou uma rápida olhada na direção das vozes e quando torno a prestar atenção no assaltante, sequestrador ou Billie, não o vejo mais. Percebo que eu estou prendendo a respiração, então volto a buscar ar, como se tivesse acabado de correr ou sair de um afogamento.

Continuo olhando para o lugar em que a figura estava. Não sei se me sinto aliviado ou mais preocupado.

O ambiente, que antes estava muito pesado, sufocante e mais frio, volta ao normal, se tornando confortável.

– Bart, querido, aconteceu algo? – Berta pergunta se aproximando. Me abraça de lado e me conduz a caminhar com ela.

Tento falar o que havia acontecido, mas não consigo… não para eles. Engulo em seco as minhas palavras travadas e os acompanho até o carro, me desvencilhando dos braços da minha mãe.

Antes de entrar no veículo, olho mais uma vez para todos os lados em busca daquele estranho, com receio de ele nos perseguir.

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