Nunca te esqueci
Nunca te esqueci
Por: Paula Albertão
1 - Ele

            A porta se abre devagar, silenciosa, e a cabeça dela surge primeiro como se quisesse ter certeza de que sou eu que estou aqui.

            Os cabelos caem sobre os ombros e ela os joga para trás enquanto coloca o resto do corpo para fora também, que parece estranhamente rígido dentro do jovial vestido com estampa de florezinhas vermelhas.

            Troco o peso do corpo para um lado só, as mãos dentro dos bolsos do jeans. Ela está perfeitamente linda, como sempre, o rosto com um leve toque de sardas que poderia aumentar se tomasse sol – mas ela ainda não gosta de sol, posso perceber pela pele completamente branca – e eu estou simples como sempre.

            - Oi. – o som da minha voz sai completamente estranho, seco, porque ainda não sei o que estou fazendo aqui nesse lugar e com essa pessoa.

            - Você veio. – seu tom é doce, completamente diferente do meu, e sinto um misto de culpa e revolta pela diferença.

            - Estou aqui. – digo, constatando o óbvio, e os olhos castanhos dela se desviam dos meus, olhando ao redor.

            Por um instante gostaria de saber o que ela está pensando, ou o que está lembrando, mas quero muito que isso acabe logo para perguntar.

            – Então? – instigo, me negando a olhar ao redor.

            - Quer entrar? –  ela empurra a porta, me dando passagem.

            Apenas balanço a cabeça para concordar. Eu não estaria aqui se não tivesse a intensão de entrar e não teria uma pequena mala no carro – embora ela não possa adivinhar isso – se não achasse que precisaria ficar algumas horas.

            Sinto-me completamente na defensiva, mas apenas porque já estive em outra posição completamente diferente antes e, estar aqui agora, é quase torturante.

            O interior da cabana continua praticamente como eu me lembrava, mas com um toque mais envelhecido pelos anos que se passaram. Sala e cozinha juntas num estilo rústico e prático, do jeito que sempre me agradou.

            De alguma forma eu me sinto oprimido pelo lugar e por ela, como se as paredes fossem se fechar ao nosso redor.

            - Cozinhei o jantar para a gente. – ela diz indo para longe de onde estou para mexer em algumas panelas que soltam um aroma bom.

            - Eu não como mais carne. – anuncio observando involuntariamente suas costas expostas pelo vestido.

            Agora há um desenho na pele entre as escápulas que não consigo decifrar de onde estou, mas imediatamente me lembro de sua pele arrepiada e preciso desviar os olhos porque me sinto perturbado.

            Preciso controlar o rumo dos meus pensamentos.

            - Você vai gostar disso. – afirma nada espantada pela minha dieta como as pessoas costumam ficar – Mas não tem soja. – acrescenta.

            - Detesto soja. – me viro para que ela não me veja sorrir e me irrito um pouco por ela ainda ter certo poder sobre mim.

            Olho pelas janelas atrás do imenso sofá, a paisagem é basicamente a mesma: arvores e árvores e árvores. E mais árvores até onde se consegue ver.

            Nós dois sabemos que há uma trilha que leva até um lago, mas não quero pensar nisso.

            - Vou até o banheiro. – digo já seguindo pelo corredor.

            Fecho a porta e respiro fundo algumas vezes me perguntando o que eu estou fazendo aqui afinal de contas. Isso parece um grande erro.

            Lavo o rosto duas vezes e permaneço quase dois minutos de cabeça baixa com as mãos apoiadas na pia, repetindo para mim mesmo que ela é apenas uma pessoa.

            Nada disso faz sentido, esse lugar e essa pessoa de novo. Estou começando a me arrepender de ter vindo, as coisas estavam tranquilas como estavam.

            Com mais uma respiração profunda, seco o rosto e saio do banheiro com passos firmes, determinado a não demostrar como tudo ali me afeta tanto.

            A mesa já está posta, com cuidado e delicadeza, e meu coração endurece um pouco. Precisa endurecer.

            - Posso servir você, se quiser. – seu tom gentil quase chega a ser mais do que estou disposto a aguentar.

            - Posso fazer isso. – meu tom é seco, quase brusco, mas ela não nota. Ou finge não notar.

            Começo a colocar as coisas no prato, um pouco de tudo porque estou faminto. Há arroz, brócolis, cenouras, batatas assadas com vários temperos, saladas e feijão.

            Penso brevemente que isso deve ter dado um grande trabalho, mas não quero me importar, então afasto a ideia.

            - Então, Diogo – é a primeira vez que ela diz o meu nome –, desde quando?

            Eu olho para ela confuso, o garfo a meio caminho da boca. Ela aponta comida sugestivamente.

            - Faz treze anos. – respondo e volto a comer em silêncio.

            - Por quê? – ela questiona, e percebo que está comendo pouco e bem lentamente. Sinto vontade de perguntar o motivo, mas é mais fácil deixar de lado.

            - Porque... – solto a respiração de uma vez só, bruscamente – acho que resolvi deixar de ser egoísta. Nós – faço um gesto amplo – não somos o centro do mundo.

            - Você nunca foi egoísta – ela murmura –, mas compreendo o que quer dizer. – acrescenta, espetando uma batata com o garfo.

            - De qualquer forma, o pessoal lá de casa adora. – digo, colocando um pouco mais de cada coisa no prato.

            - Pessoal? – ela pergunta tentando disfarçar o choque, mas consigo perceber.

            Está se perguntando quem está em casa esperando a minha volta. É a primeira vez desde que cheguei que ela não parece extremamente calma, controlada e confortável nesse lugar comigo.

            - Sim, os gatos, cachorros... Enfim, esse pessoal. Mas - olho para as panelas e formas quase vazias na mesa – como você soube disso?

            - Não soube. – ela empurra o prato um pouco para frente e repousa os braços cruzados na mesa, visivelmente aliviada.

            Compreendo com um estalo:

            - Desde quando?

            - Faz dez anos. – subitamente me encara nos olhos.

            Por um instante um grande pesar toma conta de todo o meu ser, e é como se eu estivesse de fora observando essa cena patética que estamos encenando.

            O que é isso? Estamos brincando de casinha nesse lugar, fingindo que nada aconteceu anos antes e somos apenas velhos amigos se reencontrando?

            – Fala sério, Sofia. – seu nome aquece meu corpo, mas ignoro a sensação, jogando-a para o mais dentro de mim que consigo – O que estamos fazendo aqui? – gesticulo ao redor. – Certamente que não é para jantar comida vegetariana e falar sobre o que fazemos hoje em dia.

            - O que você faz? – seus olhos estão baixos agora e não consigo saber o que ela está escondendo de mim, mas agora estou com raiva. Bastante.

            - Você quer saber se sou “alguém”? – faço aspas com o dedo, me controlando para não alterar a voz, sem total sucesso.

            - Não... – ela protesta, mas faço um gesto com a mão para que ela cale a boca.

            - Não sou um escritor famoso com contratos com o cinema. – digo sarcástico, porque é justamente o que ela é - Mas consigo me sustentar da minha forma. – não digo qual forma é de propósito, não quero dar informações sobre mim para ela.

            Sofia se levanta bruscamente e anda até as janelas. Ela fica de costas e se abraça como se tentasse se confortar ou se acolher de alguma forma.

            Eu não me movo por longos minutos, enquanto sinto a raiva desaparecer deixando um formigamento pelo meu corpo.

            - Sofia. – me levanto, a cadeira fazendo um barulho no chão – Me diga o que eu estou fazendo aqui.

            Preciso de uma explicação que justifique essa insanidade. Algo direto, sem rodeios e que me faça perder essa sensação ruim que me domina.

            - Você lembra daqui? – ela pergunta, virando para mim e soltando os braços com uma expressão desolada no rosto.

            - Se lembro daqui? – solto uma risada brusca porque isso está muito longe de tirar a sensação ruim de dentro de mim – Isso é sério?

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