|7| LUZES DISTORCIDAS

  ESTAVA EM CIMA DA MESINHA DE CENTRO.

A Biografia de Evangeline finalmente estava ali, em cima da mesinha de centro a minha frente, o objeto de meu desejo me observando inanimado de cima do vidro transparente da mesinha, exatamente abaixo de meu nariz, e tudo que eu conseguia fazer era olhar para ela com todo o corpo paralisado. Eu sentia como se estivesse tentando respirar em baixo da água, a tortura de imaginar o que eu poderia encontrar entre aquelas páginas era tão palpável que em me sentia escorregando por um enorme desfiladeiro, sem ter nada ao meu redor em que me firmar.

Quando eu abrisse aquela biografia, as coisas iriam desandar, para mal ou para bem, e não havia muito que eu achasse que pudesse fazer sobre isso. Crescer tem essa coisa estranha de encarar o problema de frente, sejam quais forem as consequências. E eu descobrira tarde demais que preferia não ter crescido. Queria ter alguém para enfrentar tudo aquilo por mim.

Mas até minha mãe havia sumido, e a culpa era indiscutivelmente minha.

Tudo bem... hora de crescer, pequena Eve...

― Você pode me dizer novamente como a encontrou?

Edra e Dublemore estavam sentadas do outro lado, empoleiradas no outro sofá da grande sala, e tudo que eu havia conseguido fazer até agora, era pedir lhes vezes e vezes seguidas como elas haviam conseguido achar algo que Zórem obviamente havia tentado manter longe de mim mesmo morta.

Depois de narrar prestativamente como haviam conseguido encontrar a biografia pela milionésima vez desde que chegaram, voltei a encarar o encadernado velho de folhas amareladas em cima da mesa. Aquilo era meio como se deparar com os destroços do Titanic. Era algo belo, mesmo que estivesse claramente em ruínas.

― Então, vocês ainda não abriram? ― eu engoli, secando as palmas das mãos no tecido da camiseta.

Por um momento, pude jurar que Dublemore corou, mas sua expressão gelada e vazia rapidamente voltou a delinear suas expressões.

― Eu não achei que qualquer um fosse ter o direito de fazer isso primeiro a não ser você, Eveline.

Eu voltei a puxar o ar, concentrando minhas forças novamente no livro.

Mas então, a porta se abriu com um ruído, e uma cabeleira ruiva surgiu antes do corpo longo e esguio. Arbo entrou sem hesitar, fechando a porta atrás de si com a ponta do calcanhar. Um amontoado de sacos coloridos de plástico reluzente estava amontoado entre seus braços, e demorei um pouco a perceber que se tratava de salgadinhos de diversos sabores.

― Ei! Suas traidoras! Vocês içam o Titanic do fundo do Atlântico, o trazem para a casa de Eve e nem mesmo me convidam para o show!? Vocês têm algum problema?

Era esquisito como seu modo de pensar se fundia tanto com o meu.

Ela parou na entrada, subitamente distraída por algo enquanto seu nariz se elevava, como um lobo vermelho farejando o ar.

― E... Deus, Eve! Você andou tentando botar fogo na casa? Que maldito cheiro de coisa queimada é esse!?

― Foi o namorado de Eve. Ao que parece ele esteve aqui... ― uma voz veio de cima das escadarias, e escondi o rosto nas mãos ao me dar conta que Hanna estava a ativa novamente.

Os pacotes de salgadinhos caíram dos braços de Arbo, se espalhando no chão ao seu redor com um ruído irritante de plástico seco e massa assada sendo triturada, ao tempo que os cabelos de Arbo levitavam ao redor da cabeça e seus olhos se estreitavam.

― Que. Diabos. VOCÊ. Está. Fazendo. Aqui???

Hanna parou no topo das escadas, cruzando os braços e com uma toalha cor de rosa envolta na cabeça. Seu pequeno vestido tomara-que-caia cor de banana podre impactando contra a cor champanhe da decoração.

― Oh, não, Eve’s! Você ainda não anunciou às suas amigas a minha estadia aqui?

Eu levantei minhas mãos, num gesto de rendição.

― Nem pensar nisso! Eu não vou salvar a sua bunda, Hanna Winchester.

Ela me enviou um olhar acusador.

― Eu sei que você tem problemas com a minha bunda, mas vamos lá... que espécie de irmã você é?

― Da espécie que odeia que você fique me lembrando desse fato angustiante o tempo todo. E eu realmente vou liberar sua bunda para Arbo se você não parar...

Hanna ajeitou a toalha na cabeça, continuando a descer das escadas sob os olhares pasmos de todos os presentes, e sem mais, arrancou um enorme pirulito de maçã do amor do decote do vestido e o enfiou na boca.

― Que foi?

Arbo direcionou seus selvagens olhos azuis em minha direção.

― Você tem alguma boa explicação para isso?

Foi minha vez de lhe enviar um olhar espantado.

― Você precisa de uma? A coisa toda é meio óbvia. Hanna Winchester está na minha casa, e minha vida tem sérias pretensões de se tornar um verdadeiro inferno! Capiche?

Hanna rolou o pirulito na boca.

― Isso é mesmo sério? Céus! Todas vocês estão tendo um caso coletivo de estresse. Sei lá, mas quem sabe vocês precisassem dar uns amassos por aí e apaziguar os nervos...

Arbo chiou.

― Eu realmente vou amassar alguma coisa. E adivinhe? Sua bunda é a primeira coisa da lista.

Hanna girou seu traseiro para longe de Arbo.

― Fique longe da minha bunda! Você não vai dar uns amassos com ela nem nos seus sonhos!

Eu me encolhi no assento, tentada a jogar Hanna Winchester pela janela.

― Céus! Você poderia, por favor, parar de falar essa palavra horrível?

Ela tirou o pirulito vermelho da boca.

― Que palavra, maninha? “ Bunda”? ― ela sorriu, se jogando no assento ao meu lado ― Bunda, bunda, bunda!!!

Eu lhe mostrei um punho fechado.

― Okay, Arbo: eu mudei de opinião. Ela é toda sua!

Hanna anuiu um resmungo enquanto voltava a enfiar seu pirulito na boca, se ajeitando no estofado macio enquanto cruzava os três metros de pernas em cima da mesa de centro.

― Mudei de ideia. Talvez amassos não resolvam problemas de irritação feminina e TPM. Seu namorado esteve aqui, quase botou fogo na casa enquanto vocês faziam alguma coisa, e você ainda está irritada...

Arbo jogou um pacote de salgadinho na cabeça de Hanna, se sentando ao lado de Dublemore quase ao mesmo tempo.

― Em primeiro lugar: que nojo. ― Arbo tiritou em direção a Hanna, afastando seus pés do precioso encadernado da mesa de centro e ganhando um olhar furioso da cabeça de Fuinha em troca. ― Em segundo lugar: não fale de sexo quando eu estiver no mesmo ambiente que você. E em terceiro lugar: comece a falar, tipo, que droga você está fazendo aqui, e concentre em utilizar um bom emprego de palavras nos seus argumentos antes que eu te chute até a sexta avenida... sou o que você pode considerar uma pessoa decididamente seletiva no uso adequado do português. Ou do Funhês, que seja.

Não consegui segurar o riso enquanto Hanna lhe enviava um olhar interrogativo.

Funhês?

Arbo dispensou a pergunta com um gesto de mãos.

― Longa história. Desembuche.

Hanna me enviou um olhar consternado.

― Você devia me dar pelo menos um voto de confiança.

― O que eu devia, era tornar relativamente mais íntima a proximidade de sua cabeça com o seu ra...-

― Tudo bem! ― Arbo me cortou, erguendo uma mão ― Nada de comentários depreciativos enquanto estivermos tentando nos entender aqui.

Rolei os olhos.

― Não consigo evitá-los quando Hanna Winchester está por perto. Está na ordem sísmica do universo. Quem sou eu para quebrar a ordem natural das coisas?

Edra me enviou um olhar engraçado.

― Na teoria, você é uma Natural Elementar...

Eu voltei a rolar os olhos.

― Eu quis dizer não literalmente. E eu ainda estou bloqueada, então, na teoria,  é como se eu não fosse.

― Você ainda está bloqueada!? ― Hanna se intrometeu, abrindo o pacote de salgadinho que tinha alçado voo em sua cabeça de fuinha ― Então como diabos conseguiu assassinar a espinhenta?

― Não é da sua conta! ― eu tomei o pacote de salgadinho de sua mão ― E pare de ser nojenta! Quem é que consegue chupar pirulito e comer salgadinho ao mesmo tempo?

Ela voltou a me tomar os salgadinhos.

― Não me subestime, maninha. Eu sou incrivelmente aquela pessoa habilidosa que consegue assoviar e chupar cana.

Arbo jogou outro pacote nela.

― Okay, espero que também consiga conceder explicações descentes ao mesmo tempo, porque eu ainda estou esperando e a ponta de meu pé está coçando. E esse salgadinho é de cebola. Eve tem razão: cebola não combina com morango nem em outra vida! Qual é o seu problema? Quero dizer, fora esse seu corte de cabelo horrível?

Pela primeira vez desde que chegara, Hanna se mostrou nervosa.

― Qual é? Vocês nem mesmo me conhecem e me tratam como se eu fosse uma vereadora corrupta que deixou seus filhos sem leite no inverno.

― Eu não tenho filhos. ― Arbo tiritou.

― Você! ― Hanna enviou um dedo indicador e ameaçador de Fuinha em direção a Arbo ― Você já me jogou pelas escadarias da GL uma vez. Isso não é o suficiente para você?

― Não.

― Então que diabos eu tenho que fazer para ser tratada como alguém aqui?

― Morra.

Hanna se afundou no assento, e tudo que eu pude fazer, foi ter pena. Droga. Eu verdadeiramente estava com pena da fuinha. Ter algum debate com Arbo, a tempestade, fosse da espécie que fosse, não era agradável. Arbo não era uma pessoa tão fácil de se dobrar, o que me fazia imaginar que eu havia tido muita sorte por ela ter gostado de mim logo de cara. Quem sabe apenas porque eu fosse a única garota com a qual ela pudesse ter uma interação normal.

― Hanna... ― eu comecei ― Facilite as coisas para você e apenas explique como conseguiu chegar até aqui. E por favor, sem comentários sarcásticos, ou eu não me responsabilizo por você acabar dentro do latão de lixo até o fim da tarde.

Ela se silenciou por um tempo, parecendo analisar suas opiniões quanto todos os olhos recaíam sobre ela.

Por fim, ela exalou.

― Sua tia... acha que eu devo estar aqui.

Levei alguns minutos para entender o que Hanna poderia estar querendo dizer com aquilo, e as dúvidas se somavam às certezas de forma dolorosa.

― Como assim? ― eu me precipitei ― Quer dizer que você não está aqui por vontade própria?

― Não foi isso que eu disse. ― Hanna interpôs ― Quero dizer, em partes. Eu quero estar aqui, realmente quero, acreditem vocês ou não. Depois de conhecer o objetivo real das escoltas de Falanges Guerreiras sendo treinadas para... bem você sabe, eu simplesmente me fascinei, como se de repente, estivesse conhecendo meu lugar no mundo, encontrando meu berço de origem, algo que eu sempre almejei mesmo sem saber do que pudesse se tratar. Mas eu também sou uma Falange Conjuradora, e sua tia acha que algo em mim possa ser útil para... ― ela suspirou, deixando os salgadinhos de lado e esboçando uma careta, a linha reta que seus cabelos criavam ao redor do rosto balançando como que atingidas pela correnteza branda do vento ― Escute, eu não tenho certeza absoluta sobre o que sua tia acha que está fazendo, mas ela está claramente desesperada, certo, Eve’s? Pode parecer loucura, mas ela sabe de alguma coisa. Alguma coisa que está vindo, tomando formas e ameaçando engolir tudo dentro de um grande buraco negro.

Eu não era capaz de conter minhas próprias palavras, porque um ardor mudo me corroía de dentro para fora, enviando fisgadas de reconhecimento e concordância por todos os lugares de meu corpo.

Mas Edra foi mais rápida que eu.

― Ela tem razão. ― ela afirmou, para espanto geral ― Essa garota, ela tem toda razão. Mamãe vem tendo visões, pressentindo coisas. Mas ela não sabe dizer ao certo o que pode ser.

― E a tia maluca de Eve acha que essa outra maluca pode ajudar de alguma forma!? ― Arbo arregalou bem seus olhos, descansando as costas no encosto macio do estofado ― Oh, Deus! Quando foi que a loucura se tornou o lema principal de nosso mundo?

― O que mais tia Peg lhe disse? ― eu perguntei, dentes trincados, olhos fixos no nada vazio a minha frente, odiando o fato de tia Peg conseguir esconder tantas coisas de mim em um espaço tão curto de tempo mesmo depois de tudo que havia acontecido.

Hanna deu de ombros.

― Se você quer mesmo saber, eu também acho que sua tia é maluca. Eu não entendi nada do que ela quis dizer, mas o fato é que ela me aceitou aqui porque ela me quer aqui.

Eu grunhi, tanto de frustração quanto de melancolia.

― Pare de dizer “sua” tia. Esqueceu que da forma mais idiota possível, ela também é sua? E que parece estar mais receptiva a conceder informações a você do que a mim!? Porque eu estou na sombra? Porque todos parecem estar tentando me esconder o que está para acontecer?

Pela primeira vez, Dublemore ergueu os olhos.

― Porque talvez a prejudicada seja você. ― ela murmurou, enviando incontáveis informações flamejantes de mau agouro por minhas veias, especialmente ao baixar os olhos cor de gelo para o avolumado velho em cima da mesinha ― E algo me diz que isso não diz respeito apenas à você, mas a mais três pessoas.

Minha mente rodopiou, as palavras da Esfera ecoando em minha cabeça.

Você é a quarta peça, Evangeline. Minha obra prima... meu propósito final”.

Meus olhos também desceram até a biografia.

― E você concluiu que as outras peças são... pessoas?

Dublemore assentiu.

― E que Evangeline pode muito bem ser uma delas.

Meu coração trotou dentro do peito, o silvo pesado escapando de meus lábios em forma de protesto.

Com a decisão formada na mente, meu braço se esticou, meus dedos alcançando o livro, e no mesmo instante, meu mundo se partiu.

Minha órbita se inverteu, e a angústia se intrincou no mais profundo de meus ossos, vertendo do objeto em forma de dedos gelados e subindo por meus braços, encontrando meu rosto e se fundindo em algum ponto crucial dentro de mim. Eu estava queimando, rasgando, quebrando. Eu era apenas meia parte de mim mesma, vendo o mundo por de trás de uma grossa lente de vidro em chamas. Então, de uma forma esquisita, eu entendi.

A dor, a mais profunda dor. A de parecer ter perdido algo essencial para se respirar... mas não era meu pulmão que parecia arder e queimar... mais meu coração.

Entendi as lágrimas, a dor saturada por de trás delas, tão profunda, que fizeram meus dentes rangerem, um acúmulo de palavras se soltando em minha mente enquanto meu coração parecia estar rasgando o peito. “Jazer e arder”, “Eu queimarei de volta”, “A vida e morte se extingue”, “Nem céu, nem inferno”, “É uma lâmina de dois fios”, “Nascer, amar e morrer”, “A vida e morte se extingue”...

“E então, o amor, que destrói, e arrasa tudo em seu caminho. Corações que sangram, e destruídos são... é um furacão sem vento o amor; apenas destruição...”.

Nascer, amar, morrer, renascer, girar, voltar; queimar...”.

― NÃO! ― o grito rouco rasgou a sala de uma extremidade a outra, fragmentando o ar e ferindo meus ouvidos.

Demorei um pouco a perceber que era o meu, as palavras de Zórem flutuando por meus pensamentos enquanto o brasido em meu peito se acalmava.

Cuide bem de seu coração, Eveline.., sem ele, você vai descobrir que não vale a pena viver...”.

Meus olhos voltaram ao foco, como se minhas córneas tivessem decidido cooperar de repente, e as chamas sumiram, a dor, as lágrimas, as palavras, tudo... eu estava oca. Arbo estava reclinada acima de mim, o livro em sua mão, o mantendo o mais longe de mim enquanto seus olhos arregalados investigavam meu semblante.

― Pela deusa, Eve! ― ela tiritou quando percebeu que eu estava à ativa novamente. ― Só... fique longe dessa coisa satânica. Eu tive certeza que você iria diluir numa poça de Eveline... você meio que... pareceu derreter, seus olhos ficando brancos ao girarem nas órbitas... ― ela encarou o livro em sua mão ― Que espécie de merda é essa?

― Uma espécie de merda mágica, pelo que vejo... ― Hanna disse, franzindo o cenho ― E alguma espécie de merda mágica de ligação. Se vocês ainda duvidavam que essas duas estivessem ligadas de alguma forma, espere que isso soe como uma resposta.

Arbo lhe enviou um olhar impiedoso.

― O que seu traseiro entendeu sobre isso?

Edra se precipitou à frente:

― Deus, Eve! O que você sentiu?

Por um momento, eu só consegui respirar, como se sentisse falta do gosto do oxigênio preenchendo os pulmões, me tornando inteira mais uma vez... me tornando eu novamente.

― Eu... eu... meus Deus... ― eu passei as mãos pelo rosto, nunca parecendo tão satisfeita por seu eu, e não alguém preso naquele universo constante de dor e agonia... ― Eu... eu quase acho que me senti no inferno. Uma dor... não física, mas que também se impregnou em meus músculos ao mesmo tempo... na mente, em cada parte de mim. Eu estava... atormentada, como se meu coração estivesse rasgando meu peito e grunhindo de dor. Eu sei, sei que isso parece besta e poético demais, mais foi exatamente o que eu senti. Me senti... ardendo dentro da dor, se é que isto possa ser possível...

Havia requisício de lágrimas em meus olhos, pois eu os sentia úmidos contra as pálpebras, e Edra pareceu captar cada pequeno sentimento por de trás de minhas palavras, seus olhos terrosos se tornando maiores e recaindo sobre o livro nas mãos de Arbo.

Edra levou as mãos à boca.

― Querida deusa... o que aconteceu com Evangeline a ponto de machucá-la de forma tão profunda?

Eu já não queria mais saber. Com a garganta seca, percebi que talvez fosse melhor se eu apenas... esquecesse. Qualquer coisa me parecia mais viável, menos sentir aquela crosta sangrenta de sentimentos mais uma vez. Aquilo acabaria comigo se houvesse uma segunda rodada.

― Me deixe ver isso... ― Hanna pediu, estendendo uma mão, e Arbo só a encarou como se Hanna estivesse lhe esticando uma cobra.

― Arbo... ― Edra repetiu suavemente ― Ela é uma conjuradora.

― Yeah... ― Hanna assentiu ― O que quer dizer que merdas mágicas são comigo mesma...

A contra gosto, Arbo lhe passou o livro, e Hanna comprimiu os lábios numa careta desagradável ao correr as mãos pela capa rústica do objeto enegrecido. Ela exalou profundamente, parecendo captar algo invisível aos olhos.

― Isso é... Deus! ― ela se arrepiou, me enviando um olhar congelado ― Seja lá o que for que aconteceu com essa tal de Evangeline, reze à todos os céus que o mesmo não aconteça com você. Isso é quase como um... ranger de dentes. O sofrimento do Hades!

― Eu notei isso... ― eu esfoleguei, massageando o peito na esperança de me livrar das últimas sequelas daquela gaiola ardente. Eu estou bem... eu sou Eveline... eu estou legal... eu estou legal...

Hanna arfou, uma palma de cada lado do livro, e depois de fechar os olhos por alguns segundos, observei boquiaberta quando uma camada esverdeada de luz rodeou as mesmas, contornando o livro e o selando em uma bolha luminosa e incandescente que rapidamente que me lembraram a uma única coisa: os olhos de Eron, e a recordação abriu caminho por meu receios, cortando meu coração numa pontada dolorosa de... necessidade.

Engoli.

Hanna finalmente abriu seus olhos, que pareciam levemente mais escuros, e a luz se extinguiu.

― Esse livro parece... um coração ferido, que se fechou. Está carregado de feitiços de proteção, como um coração estaria, mas acho que consegui eliminá-los... ― ela me estendeu o livro ― Talvez... você pudesse tentar novamente.

Arbo chiou.

― Eu não sei se essa seria uma boa...

― Tudo bem... ― eu tremi, minha voz se quebrando num suspiro ao alcançar a peça com os dedos.

Era um dever, e todo dever é um dever. Doloroso ou não.

Mas para minha surpresa, dessa vez, o toque era apenas gelado, como uma crosta de lava vulcânica que se gelara ao redor da capa, amortecendo ligeiramente a ponta de meus dedos. Com as esperanças renovadas, estiquei o único elástico desgastado que rodeava o livro, o abrindo logo em seguida, meus olhos indo de encontro às páginas machadas de gordura, amareladas e opacas, velhas e mofadas.

E meu queixo caiu.

De decepção.

Ressabiada e perplexa, folheei o livro avidamente, não conseguindo acreditar no que meus olhos registravam.

― Mas... isso é impossível! ― eu gaguejei, sob os olhares espantados caídos em mim ― Isso simplesmente... está em branco! Nem uma única palavra! Nada!

O olhar de Arbo rapidamente foi para Hanna.

― O que é isso agora? Você o quebrou!?

Hanna se encolheu, lhe enviando um olhar inocente e ao mesmo tempo irritado.

― Como diabos eu iria quebrar um livro? Eu apenas eliminei seus feitiços de proteção!

― E mais todas as letras junto com ele, ao que parece...

Ela rolou os olhos.

― Não seja ridícula. ― Hanna se virou em minha direção, implorando com o olhar para que eu acreditasse nela ― Eu juro, Eve’s! Tem mais uma coisa também: foi a própria Evangeline que enfeitiçou isso. Talvez seja por isso que Zórem não quisesse que você pusesse as mãos nele: porque talvez soubesse que só você conseguiria descobrir o segredo. Isso é óbvio.

― Mas... porque eu? Como ela saberia?

Hanna deu de ombros.

― Talvez soubesse que você... era a próxima?

Eu gemi, agoniada, deixando os ombros caírem. E agora?

Mas antes que qualquer uma de nós pudesse dizer mais alguma coisa ou expressar mais algum sentimento, a porta da frente se abriu com um estalido, e vozes familiares preencheram a cozinha.

― Você ouviu bem o que o Conselho registrou sobre os Centros de Comando de acordo com as últimas informações do mundo terreno, Arena! Não foram assassinatos sem causa ou mesmo normais para as circunstâncias... ― a voz de tia Peg estava escandalizada, atormentada ― Isso foi mais como... selecionado, eu não sei! Mas acredite: não foram ocasionais. E... querida deusa! Isso é cheiro de queimado??

Eu estava tão torpe que não consegui nem engolir em seco, quanto mais Hanna se dignou a fazer algum comentário sarcástico. Todas estavam o suficientemente hipnotizadas pela conversa estranha na cozinha.

― Não podemos ter certeza, Pégasus! Precisaríamos de provas antes de instigar qualquer investigação de peso em cima disso. Os terrenos se matam o tempo todo, não podemos usar isso como uma prova inquebrável e óbvia.

Tia Peg grunhiu.

― Não me venha com essa. Os crimes pelo mundo terreno são peculiares, mas estes assassinatos em especial apresentam a mesma característica em todos eles. A mesma que já foi usada antes! Você sabe disso!

― Foi apenas um assassinato desta natureza, Pégasus. Não podemos criar uma onda de pânico à toa se ele não voltar a se repetir. Você poderia ser banida para Tríade.

Arbo resfolegou ao som da menção do nome, e eu apenas franzi o cenho, um segundo antes de tia Peg irromper na sala junto com Arena. Para alguém que sempre sabia das coisas, sua careta surpresa foi no mínimo inconveniente.

― Hãm, meninas? Pela deusa, eu não sabia que vocês estavam aqui.

O quanto da conversa vocês ouviram?”. ― era o que ela realmente estava perguntando.

― O que está acontecendo no mundo terreno? ― minha pergunta afirmou que havíamos ouvido tudo, e tia Peg se absteve em rolar os olhos em extrema angústia.

― Eu não acho que este seria um assunto para ser tratado com...

― Pégasus... ― Arena pousou uma mão gentilmente sobre os ombros de tia Peg, cortando todos os argumentos com aquele tom que só ela sabia usar, aquele tom de voz que dava a impressão de fazer até um terremoto se acalmar. ― Eu acho que isso não é necessário. As meninas já são bem grandes para lidar com essa, e Eveline e Yohanna logo mais serão Falanges Guerreiras também. Talvez seja sensato deixá-las por dentro dos assuntos da Ordem.

Eu nunca amei mais Arena.

Arena havia sido a pessoa que ficara do meu lado mesmo quando minha tia se recolhera dentro de si mesma, envolta em seu mundo de mentiras a cerca de minhas origens. Apesar de eu entender e não culpar mais tia Peg, ainda odiava aquela sua mania irritante de me esconder coisas por achar que poderia estar me protegendo com isso.

― Achei que você mesma tivesse ressaltado que precisamos de mais provas. ― tia Peg disse.

Arena me enviou um olhar apaziguador, e depois disso, pareceu ter uma ideia.

― Ótimo, vamos dar um jeito nisso.

Arena se dirigiu a uma enorme placa escura cravejada em madeira polida na parede a nossa frente, e só quando as imagens brilhantes iluminaram o cômodo, percebi que aquilo era na verdade, um televisor.

Uau! Temos um televisor em Miriad!

Ela sintonizou num canal terreno onde as principais manchetes brasileiras costumavam ser destacadas, e depois de alguns minutos, os informes de última hora logo começaram a rolar pela terra, a voz da jornalista pálida soando em meio a um pequeno tumulto em algum beco escuro enquanto o câmera parecia tremer ao focalizá-la.

― “Mais uma tragédia assola os moradores de São Paulo, pondo a multidão em alerta sobre a possível presença de um Assassino em série entre os residentes da cidade. Ainda hoje pela tarde, a patrulha policial encontrou mais um corpo vitimado pela loucura de algum psicopata jogado próximo ao arroio do beco que corta a Avenida Paulista na direção Sul da cidade. Cinco corpos já foram encontradas em diferentes partes do país apresentado a mesma morte trágica: todas as vítimas foram encontradas sem coração”.

Arena suspirou de forma pesada no canto oposto da sala, seus olhos se tornando duro como vidros ao assimilar a situação, enquanto tia Peg, anestesiada, passou a caminhar de um lado para o outro na entrada da sala, como um animal enjaulado e desgovernado.

― Pela deusa! Isso não está acontecendo! Não pode acontecer! Isso não pode, não pode estar acontecendo! Não agora! Seria coincidência demais!

Com as pernas moles, eu me levantei, sabendo que as coisas haviam começado a desandar novamente. Ou talvez, elas já estivessem desandando antes, e eu apenas estivesse a todo custo me forçando a ignorar isso. E foi quando eu percebi: eu estava no meio da avalanche, desde o momento que nascera. E precisava me dar conta de que não podia mais ignorar meus medos, e sim encará-los. Nada ia acontecer enquanto eu continuasse fingindo que agora que a Ordem estava novamente restaurada, as coisas ficariam bem. Na verdade, mais parecia que estavam piorando.

― Tia... ― eu implorei num fio de voz, atraindo sua atenção novamente. ― Tia, já chega disso. Você sabe de coisas, e está na hora de me contar.

Tia Peg focalizou meu rosto, como que puxada de dentro de seus pensamentos, e logo em seguida, analisou o restante dos rostos apavorados nos estofados.

― Você precisa ter estômago, Eveline. Todas vocês.

― Tia, ― eu insisti, dando um leve e temeroso passo em sua direção, temendo que a única pessoa que parecia ter as respostas pudesse de repente desaparecer em sua única oportunidade de contar algo. ― Por favor, o que está acontecendo?

Ela soltou o ar com força, seus olhos se perdendo nos meus.

― Tudo. Tudo está acontecendo outra vez.

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