|7| O P U N H O

P A R T E II _ N A S   E S T R E L A S

             “Traduza a angústia em palavras, o sofrimento que não fala

               O coração carregado sussurra, e anuncia sua destruição.”

                                                                    Malcom, ato V, Cena 3,

                                                                    Shakespeare, Macbeth

S SOLAVANCOS VINHAM DE ALGUM LUGAR PRÓXIMO A MIM.

Eu estava chacoalhando.

Emergi do que me pareceu ser um lago escuro, onde não existiam sensações nem aromas. Logo, a realidade foi tomando forma. A de que eu estava chacoalhando. E a realidade de que cada músculo de meu corpo doía, e uma dor latejante explodia no fundo de minha cabeça, atordoando meus pensamentos. Quase me arrependi de ter acordado. Até morrer devia ser melhor que aquilo.

Abri meus olhos de vagar, pronta para implorar que alguém acertasse minha cabeça com força e me fizesse dormir novamente. Mas então minha boca se fechou, porque percebi imediatamente que conhecia aquele estofado escuro. Eu estava deitada no banco de trás de um carro... para ser mais exata, deitada no banco de trás de uma Land Rover. Minha garganta se secou ao virar a cabeça e me deparar com a pessoa atrás do volante. Seus olhos verdes me analisavam pelo espelho retrovisor, observando minha reação.

Verdes. Não dourados nem em chamas. Apenas verdes.

Isso me fez lembrar tudo que havia acontecido, como se a fita estivesse rebobinando rapidamente dentro de minha cabeça. Isso fez com que uma reprise inteira passasse diante de meus olhos enquanto eu devolvia seu olhar, claramente afetada de uma forma que eu não conseguia entender.

— Por favor, me diga que eu imaginei tudo. — eu pedi, torcendo para que fosse exatamente aquilo que tivesse acontecido.

Ele desviou os olhos.

— Você não imaginou nada.

Fechei os olhos com força. Não. Aquilo não podia estar acontecendo. Minha realidade não podia simplesmente ter se invertido de uma maneira tão sinistra. Coisas como estas eram impossíveis! Então... então por que haviam acontecido? Fui digerindo a informação aos poucos, e meu pânico começou a aumentar a medida que eu ia entendo o porquê de tia Peg querer que eu mantesse distância de Eron.

— Ah, meu Deus! — eu me sentei rapidamente no banco, me afastando o quanto podia dele, cogitando até a possibilidade de abrir a porta e pular para fora do carro, mas dispensando a ideia assim que notei que o velocímetro estava marcando 120km\hrs. — Ah, meu Deus!!! — eu repeti, como se ainda não aspirasse ser dramática o bastante. — Droga! Então quer dizer que você estava mesmo pegando fogo? Como uma pessoa pode pegar fogo? Quero dizer, eu sei que uma pessoa pode pegar fogo, mas como você... meundeus!

Eron não respondeu, e eu sabia que estava falando demais. Seu olhar era de alguém que já esperava um surto semelhante.

Eu costumava falar demais quando estava nervosa. E naquele momento em especial, eu sentia que poderia começar a gritar de pavor a qualquer momento.

— O Sr. Encharpe é seu irmão? Como ele pode ser seu irmão? Você por caso é professor de História?

— Aquele não era Encharpe. — ele apenas respondeu, achando que isso responderia a todas as minhas perguntas.

— Então onde está Encharpe? Quem era aquele cara? E por que ele queria me matar? Droga! Por que todo mundo parece saber algo que só eu não sei?

Eron não demonstrou entusiasmo para responder minhas perguntas.

— Guarde suas perguntas, Eveline. Não sou eu quem vai responde-las. Queria mesmo saber o que está acontecendo? Meus parabéns, você vai conseguir. — ele grunhiu, e percebi que ele não estava nem um pouco contente com isso.

Engoli em seco, tentando me acalmar da melhor maneira que consegui ao ouvir que finalmente alguém ia me dizer alguma coisa. Um pouco mais calma, examinei a mim mesma. Eu não estava mais sangrando. Os cortes já haviam se curado, e se eu havia fraturado alguma coisa, provavelmente já estava inteira de novo. Apenas aquela dor mórbida se arrastava por todos os meus membros, como se eu tivesse levado uma surra daquelas ao invés de ter sido jogada pelas paredes como uma marionete.

— Para onde você está levando? — não consegui impedir de perguntar.

Apesar de tudo, Eron havia salvado minha vida. Eu devia a ele.

— À Arena. Não me pergunte porquê, mas parece que de repente, todos querem vê-la morta, e Arena quer saber o que você tem de tão especial para despertar tantos assassinos assim em um espaço tão curto tempo.

Foi então que reconheci um dos caminhos que levavam até o Vienna. Era um dos caminhos mais desertos, aqueles que levavam aos fundos do parque ao invés de levarem aos portões principais. Não havia, definitivamente, nenhum ser vivo ali além de nós dois. Se eu não soubesse que o parque não estava vazio, eu estaria mais preocupada.

Mesmo depois de ter sido salva por Eron, ainda era assustador estar sozinha com ele. Principalmente agora que eu sabia que ele podia virar uma tocha humana se eu o tirasse do sério. Eu não queria nenhum Oozaru dourado ao estilo Goku louco da vida comigo, afinal.

No fim das contas, ele era ainda mais quente  do que eu julgara a princípio.

Pensar nisso me promoveu certo arrepio.

— Por que está dizendo isso? Você acha que mais lunáticos superpoderosos como ele virão atrás de mim?

Eron bufou um riso sem humor.

— O que você acha? Uma garota desprotegida e que pode facilmente ser descartada carrega uma marca poderosa, uma marca que é uma ameaça para eles. Você acha realmente que eles vão desistir já na primeira tentativa? ― ele voltou sua atenção para a estrada a frente, e algo me disse que era apenas por que ele não queria me olhar nos olhos ― Você viu bem do que eles são capazes. E não é como se você pudesse fazer alguma coisa a respeito.

Analisei minhas perguntas. Provavelmente, ele não ia responder nenhuma delas. Mas ainda assim, eu precisava saber.

— Ele era seu irmão, não é?

Me lembrei instantaneamente do garoto de olhos azuis. Assim como Eron, ele tinha o porte de um felino, mas algo me dizia que eles não se davam muito bem. Eron apenas assentiu enquanto nos aproximávamos dos fundos do parque.

— E ele é... do mal, não é?

Eron não respondeu de imediato, parando o carro perto do Barco Viking e desligando o motor.

— Ele não é o único.

Suas palavras ecoaram em minha cabeça enquanto ele saia do carro, e eu tentava entender o que ele havia afirmado com aquela resposta, chegando a única conclusão que eu podia chegar. Quando dei por mim, Eron já estava do meu lado do carro, abrindo a porta traseira para que eu saísse. Esperei que ele recuasse, mas ele não recuou, e meio contrariada, desci do carro, odiando estar tão perto dele de novo.

Aquele desafio sempre presente em seu olhar afiado me impelia a nunca arredar o pé.

E quando achei que ele ia abrir passagem para me deixar passar, ele fechou a porta do carro, me encurralando com seus braços ao mesmo tempo, me forçando a encará-lo de perto. Sua proximidade me deixou ainda mais tonta, e me forcei a permanecer firme sobre os joelhos enquanto minhas costas encontravam a lataria fria do carro.

— Agora você vai descobrir coisas. Tudo o que tanto almeja saber. Arena é... uma tutora. Ela vive aqui há muito tempo e sabe de mais coisas do que deveria saber. — ele explicou perto demais, e torci para que ele não pudesse ouvir o som que meu coração estava fazendo dentro do peito, se jogando contra todos os lugares que poderia se jogar — Hoje você vai descobrir coisas que não são permitidas a humanos, por isso, torça para que você não seja apenas uma humana comum. E também torça para que você não tenha que ficar no meio disso.

Minha testa se enrugou enquanto eu tentava me concentrar em minhas palavras, e num modo de fazer elas saírem.

— Por que?

Minha voz não era mais que um fio tênue, prestes a se arrebentar.

— Porque era isso que eu escolheria, se eu tivesse uma opção. — ele apenas disse, e sem mais, se afastou, fazendo com que as coisas dentro de mim se apaziguassem novamente, e então, uma voz familiar veio de perto de onde estávamos.

— Eveline! Que bom que você veio.

Mas eu não respondi, porque estava hipnotizada ainda pelos olhos de Eron. Porque, pela primeira vez eu percebi. Fosse lá o que fosse que estivesse acontecendo, ele preferia não fazer parte.

— Arbo vai levá-la até ela. — ele apenas meneou a cabeça, dando as costas e caminhando para longe, com isso dizendo que não pretendia nos acompanhar.

Suspirei, me sentindo estranha em mim mesma e me virando em direção a Arbo. Esta, usava um conjunto escuro de couro muito apertado e moldurado em seu corpo bonito, e toda a sua altura me fez sentir baixa demais, mesmo que meu tamanho fosse o tamanho normal de uma garota de dezesseis anos. As calças estavam por cima de uma camiseta de malha em decote V, que deixava a mostra a marca do tornado com o raio no meio, desviando um pouco a atenção de seu rosto bonito.

Ela me analisou enquanto eu me aproximava, piscando seus olhos azuis com curiosidade. Eles eram fortes e turbulentos, tempestuosos... eram os olhos de uma tempestade. Havia uma mistura muito grande se sentimentos a cada piscar. Sentimentos que se misturavam entre si e eram difíceis de compreender. Olhar dentro dos olhos de Arbo rendia uma sensação parecida com a de estar andando numa montanha russa das mais loucas.

Ela me ofereceu uma mão esguia e bonita.

— Não fomos apresentadas formalmente. Eu me chamo Arbo. — ela se apresentou enquanto eu estendia minha mão pequena — Desculpe, não estamos acostumados a nos relacionarmos com humanos de forma tão direta. Isso é bem... novo.

A forma como ela disse humanos arrepiou meus cabelos, mas tentei não demonstrar isso.

— Eveline. — eu disse.

— Eu sei. Na verdade, você tem sido muito comentada desde que apareceu. Parece que você é o novo troféu dos caçadores de recompensa em potencial.

Eu pisquei.

— Eu não sabia que tantas pessoas desejavam minha morte.

Arbo assentiu.

— E essa costuma ser exatamente a forma como trabalhamos. Nos fazemos o serviço, e vocês não ficam sabendo de nada. Nunca. Essa foi uma falha proposital, já que queríamos dar uma olhada em você. — ela se permitiu um sorriso, e seus dentes brancos e perfeitos se enfileiraram a minha frente — Mas isso não é algo que eu vá lhe contar. Venha. — ela se virou com graça, me impelindo a segui-la. — Tenho certeza que há muitas coisas que você deve querer saber.

Arbo me conduziu por entre os destroços do Parque, em silêncio, e a forma esguia, rápida e graciosa com a qual ela se movia, me fazia achar que ela bem que poderia ser uma espécie de caçadora nata.

E a pergunta saiu antes que eu pudesse e conter.

— Você também... pode pegar fogo?

Me surpreendendo, Arbo gargalhou, obviamente achando graça da minha pergunta, mas ela logo se calou ao provavelmente se recordar de que eu era apenas uma humana arbitrária em seu mundo enigmático.

— Não. Eron é o único cataclista do qual se tem registro nos dias de hoje. Ele é o último deles. E não é que ele possa “pegar” fogo. Ele “domina” o fogo, o único elemento que geralmente não pode ser dominado. — ela explicou pacientemente, enquanto nos aproximávamos da maior construção do parque, o Castelo da Cinderela.

— Então tem a ver com isso? Elementos? — eu não conseguia mais fechar a boca, apressando-me para segui-la e pensando no raio tatuado em seu peito — E o que você pode fazer? Você joga raios laser pelos olhos ou algo assim?

Percebi que ela estava prestes a gargalhar novamente, mas então ela se conteve.

— Não exatamente. Eu domino o ar. Os ventos, as tempestades, os trovões...

Entendi de repente o porquê da confusão conflitante e envolvente em olhar. Era exatamente com isso que Arbo se parecia. Uma tempestade. Uma tempestade violenta e imprevisível, que mudava de sentimentos mais rápido do que se podia acompanhar.

Confusão e algo mais se embrulharam em meu estômago quando percebi que estávamos rumando para dentro do Castelo da Cinderela.

— Vocês moram dentro de um Castelo???

— Não exatamente. — Arbo se limitou a falar, de forma que tudo que me restava era segui-la para dentro da monstruosa e destruída construção em ruínas.

Não havia como se achar dentro do que sobrara. Haviam coisas demais caídas pelo chão. Até um enorme candelabro havia se desprendido do teto e caído no chão, preso ainda por apenas um braço torto, ameaçando despencar completamente a qualquer momento. Tentei tomar cuidado com os cacos de vidro enquanto seguia Arbo por um corredor estreito feito de entulhos e restos de cimento. E então, com uma força sobre humana, ela afastou uma enorme estante de livros de uma das paredes do Castelo, revelando uma porta de pedra no meio dela.

Arqueei as sobrancelhas. Uma passagem secreta. É claro.

Arbo pisou em algum lugar estratégico do chão, e a porta pesada se arrastou, revelando um cômodo pequeno e quadrado, com as paredes acinzentadas e uma lâmpada fraca pendida no teto. Demorei um pouco a perceber que se tratava de um elevador. Arbo me convidou a entrar, e a porta se fechou atrás de mim, mas ao contrário do que eu pensava, ao invés de começar a subir, ele começou a descer. Prendi a respiração nos pulmões quando percebi que estávamos indo para o subterrâneo, e que eu não estava mais tão certa do que estava fazendo. De repente, a ideia de estar de baixo da terra me pareceu meio... desconfortável.

— Por que em baixo da terra? — a pergunta foi inevitável, assim como o incômodo na minha voz.

— Porque viver acima da terra é para humanos. Nossa morada sempre foi subterrânea no mundo terreno. É sobre se camuflar. Apenas nosso lar ancestral fica em cima da terra, mas lá moram apenas... bem, os outros. — ela deu de ombros — Mas Arena provavelmente vai lhe falar sobre isso.

— Por que decidiram morar logo em baixo de um Parque? — a ideia me parecia bizarra.

— Porque não existia Parque antes. — ela explicou pacientemente. — Arena está aqui há muito mais tempo que você imagina. E antes dela, outros já estiveram. É uma história que sempre se repercute. O que eu sei, é que esse lugar sempre existiu, antes mesmo que essa cidade surgisse.

Puxa. Parecia que a coisa era mais séria do que eu pensava.

Quando o elevador finalmente parou, preparei meu estômago. Quero dizer, eu estava esperando algo como túneis de terra, talvez minhocas e provavelmente muitos insetos subterrâneos serpenteando perto de meus pés, e talvez seja por isso que minha boca se abriu junto com as portas.

O que tinha a nossa frente, era um corredor bem iluminado, com as paredes forradas com papel de parede cor creme, e o chão de mogno encerado passava uma sensação de conforto, assim como a luminária amarelada presa no teto. Parecia o hall de entrada da casa de alguém, não a morada subterrânea de seres como Arbo.

Não havia nada de amedrontador ou até mesmo claustrofóbico ali em baixo, apenas um ar acolhedor e clássico. Meus avós poderiam morar ali. Não que eu os conhecesse.

Gratissimum! Bem-vinda à nossa casa, Eve. — Arbo deu as boas vindas enquanto saía do elevador, me incentivando a fazer o mesmo.

Uma figura branca surgiu em nosso caminho de repente, saída de uma das portas, e rapidamente reconheci Dublemore, a garota dos cabelos brancos. Ela me deu um olhar desinteressado enquanto parava para me analisar, sem estar realmente curiosa.

Era como um gato branco e preguiçoso. Um gato muito bonito, por sinal.

— Esta é Dublemore. — Arbo nos apresentou, mesmo sabendo que eu já fazia ideia de quem ela podia ser.

— Arena a está esperando na sala. — foi tudo que Dublemore disse, sem se dar o trabalho de apertar minha mão ou fazer qualquer outra coisa que alguém normal faria.

— Eu sei disso. ― Arbo falou, ― Mas antes vou mostrar um pouco da Morada a ela.

― Que seja. ― Dublemore deu de ombros ― Apenas não demore muito. Ainda temos muito a fazer para ficarmos perdendo nosso tempo com coisas banais. ― ela disse, sumindo em outra porta sem ao menos se despedir.

Arbo parecia mais decepcionada que eu.

― Você deve perdoá-la. Dublemore é uma pedra de gelo sem emoções. Está tão congelada que não consegue amar nem a si mesma.

Eu assenti relutante, me virando para ela.

― Não me fale, deixe-me adivinhar: gelo?

Arbo assentiu tristemente.

― Sim. Dublemore pode congelar a umidade ao seu redor e transformá-la em gelo, e ainda dar formas. É uma das únicas em nosso mundo capaz de fazer isso. Não é um dom tão fácil de ser encontrado. É poderoso e bonito, mas triste. ― ela concluiu se virando ― venha, vou lhe mostrar um pouco do lugar. Espero que você não se sinta muito deslocada.

Mas não havia como. Quanto mais passeávamos pelos aposentos, mais boquiaberta eu ficava.

Os móveis eram velhos, centenários, mas luxuosos e muito bem preservados. Tudo tinha um ar atemporal, desde as fechaduras nas portas grandes e entalhadas de carvalho, até as luminárias presas às paredes, lembrando a velhos lampiões em arandelas de bronze. Os candelabros e as lareiras também eram predominantes, e tudo era muito limpo, cheio de tapetes decorados pelo chão. Até a mesa na sala de jantar era enorme, com castiçais dourados em cima do tampo de vidro negro e cadeiras de mogno, com um pequeno lustre cheio de cristais pendurado no teto. Um enorme espelho adornava as paredes, duplicando as imagens e criando efeitos impressionantes para quem estivesse sentado à mesa.

Uma sala, em especial, era cheia de espelhos, e me vi perdida dentro dela quando Arbo fechou a porta, para que eu tivesse uma melhor visão do espaço. Havia apenas uma almofada no centro da sala, e me perguntei o que isso poderia significar, não percebendo que eu havia verbalizado meus pensamentos.

― É para cá que nós viemos quando queremos nos encontrar, ou quando temos um problema para resolver e precisamos pensar. Esta é a Sala dos Espelhos. Ás vezes nos perdemos em nós mesmos, esquecendo de quem somos quando começamos a ser consumidos por nossos poderes. É normal que ás vezes, muitos de nós precisemos ficar sozinhos por longas horas nas Salas dos Espelhos. Dias. Meses. Ela nos ajuda a refletir, nos ajuda a lembrar, e nos ajuda a ponderar. ― Arbo explicou, da forma mais clara para que eu pudesse entender.

― Já aconteceu de algum de vocês se esquecer de quem era? De ser consumido pelo poder? ― a pergunta me veio rapidamente.

Arbo deu de ombros.

― Acho que é mais o menos por causa disso que estamos em guerra. Na verdade, a maioria de nós não possuem poderes tão agressivos. Esses casos são os mais raros, mais ainda existem.

Ela me guiou por outro corredor largo e bem iluminado, que desembocava em uma pequena fonte dentro da Morada, e percebi, encantada, que aquilo era mais que apenas uma casa.

Uma cidade, um país... um lar.

― Agora, você vai conhecer o espaço mais importante desta Morada... ― Arbo avisou, se dirigindo a uma porta ainda maior que as outras, onde havia uma balança entalhada. ― Esta, é a Sala da Balança.

A primeira coisa que me chamou a atenção, foi a enorme estátua no centro da sala. Havia um enorme entalhe de pedra se erguendo até o teto extremamente alto, um entalhe que eu conhecia bem. A deusa Têmis, a deusa da justiça. A enorme espada de pedra estava em riste na mão esquerda, e sua mão direita segurava A Balança.  Mas meus olhos logo foram atraídos para outro ponto. Haviam bancadas ao redor da estatua, e elas sustentavam instrumentos de natureza desconhecida que imediatamente me fizeram suar.

Facas afiadas, machados e objetos de natureza duvidável que deixariam qualquer apreensivo.

― Por que “Sala da Balança”?

― “Pese na Balança” ― ela citou, sempre caminhando atrás de mim e me deixando observar bem cada detalhe ― Porque é aqui que a justiça é feita. É para cá que nós trazemos nossos inimigos... e eles nos dizem o que queremos saber. E é aqui que eles recebem sua punição, dependendo das sentenças. Pense nisso como uma sala de interrogatórios.

Minha espinha tremeu ao pensar na cena.

― O que vocês fazem com eles?

Arbo percebeu que eu estava incomodada. Sua voz adquiriu um tom sombrio.

― Apenas os interrogamos.

Meu coração já havia começado a disparar.

― E se eles não dizem o que vocês querem saber?

Arbo deu uma olhada nos metais afiados, e meus pensamentos seguiram os dela ao mesmo tempo que meus olhos seguiram os seus.

― Damos um jeito de eles dizerem. Eles sempre dizem.

Engoli em seco, me afastando um pouco. Eu esperava nunca mais ter de entrar naquela sala novamente. 

Percebendo o meu incômodo, ela me convidou a sair.

― Venha. Só queria que você entendesse, que no nosso mundo, a Justiça é uma lei severa. Não existe nada mais importante. Nem mesmo nossa própria família.

Eu assenti, mesmo com a garganta seca. Pelo menos essa parte da história havia ficado extremamente clara.

Acompanhei Arbo para o outro lado da fonte, uma das partes que ainda não havíamos explorado. Duas enormes portas de mogno se erguiam abaixo do alpendre, e suas maçanetas de ouro reluzente pareciam brilhar a medida que nos aproximávamos. A menos de três passos de Arbo, as portas se abriram como que automaticamente, e me perguntei se ela havia feito aquilo com a força da mente ou qualquer coisa assim.

A nova sala era ainda mais espetacular que as anteriores.

Ela era ampla, espaçosa, acolhedora, impecável, e extremamente alta. O único detalhe que indicava que ainda estávamos no subterrâneo, era a aparente falta de janelas. Uma escada de ferro adornado em formato espiralado levava até um segundo piso, onde estantes e mais estantes cheias de alguma coisa se erguiam até o teto imensamente alto. As paredes de pedra estavam completamente forradas com símbolos escuros, símbolos que me pareciam muito familiares. O chão era forrado com um tapete marrom com um único desenho estranho, o mesmo cata vento familiar com as três pontas espiraladas que eu havia visto no livro da biblioteca.

Haviam poltronas espalhadas pela sala, e uma enorme lareira acesa aquecia o ambiente aos fundos do cenário, criando um aspecto sinistro em meio a tanta comodidade. Tudo ali parecia confortável. Tudo me parecia extremamente acolhedor... era como se... era como se eu estivesse chegando em casa.

― Este é o Salão de Pedra ― Arbo comunicou, me incentivando a seguir adiante, e as portas se fecharam novamente atrás de nós. ― Nosso salão de reuniões.

Eu ia continuar olhando abobalhada para os detalhes encantadores da sala, mas então, passos na ponta de cima da escada me avisaram de que não estávamos sozinhas no grande salão. Ergui a cabeça rapidamente, e confirmando minhas suspeitas, observei atentamente quando uma mulher de meia idade passou a descer as escadas, com um sorriso amistoso no rosto.

Suas roupas também tinham um tom de cinza, mas ela não usava roupas normais para uma mulher de sua idade. Ao invés de vestir um suéter ou qualquer coisa parecida, ela usava uma espécie de vestido cor de pérola, que delineava seu corpo bonito. Seus cabelos e olhos acinzentados eram um enigma claro ao serem comparados com a experiência sóbria e obsoleta que seu olhar produzia. Isso, por que era impossível dizer quantos anos ela tinha.

Tatuagens em forma de renda cruzavam sua testa de uma extremidade a outra, descendo por seu maxilar e terminando em seu queixo redondo.

― Que prazer finalmente poder conhecê-la, Eveline. Sou Arena ― ela cumprimentou do alto das escadarias numa vênia elegante. ― Bem-Vinda ao mundo das Falanges.

  Alguma coisa ricocheteou dentro de mim ao ouvir a nomenclatura para tudo aquilo que eu estava vendo e presenciando, como se houvesse uma pequena chama se acendendo dentro do meu peito... uma pequena chama que ia crescendo cada vez mais.

― Falanges? É isso que vocês são? ― minha pergunta fluiu por conta própria. Eu havia pensando em muitas coisas. Vampiros, bruxos, Ex-Man, mas nunca Falanges. ­― O que isso significa?

Arena esvoaçou seu vestido perolado ao terminar de descer as escadas, com uma graça e paciência que eu admirei. Eu já teria tido descido rolando aquelas alturas do campeonato... provavelmente derrapando pelo chão e depois caindo de cabeça dentro da lareira. Mas Arena parecia ter um equilíbrio admirável, tanto, que flutuou para perto de nós ao invés de andar. Pelo menos, era isso que parecia.

― Você gostaria de uma xícara de chá? Café? Suco? Refrigerante?

Balancei a cabeça antes que ela sugerisse achocolatado, e eu acabasse aceitando com pesar.

― Não, tudo bem. Eu... estou bem.

Ela não parecia muito convencida, principalmente ao analisar bem minhas roupas, e só aí eu percebi que havia extremamente incoerente.

― Tem certeza disso? Então quer dizer que esse sangue não é seu? ― ela acenou delicadamente para a gola de minha camiseta de malha branca, e quando abri a boca para dizer algo, um sorriso calmo e com propriedades dopantes aflorou vagarosamente em seu rosto limpo. ― Descanse. Você não precisa explicar nada, nós já estamos sabendo. Já faz muito tempo que Eron estava atrás de Jade, e foi uma surpresa para todos descobrir que ele havia assumido a identidade de um de seus professores. O enviamos para lá assim que detectamos atividades das Trevas na escola.

Minha cabeça rodou a alguns quilômetros por hora ao tentar compreender a gravidade de terça parte das coisas que ela havia acabado de proferir em apenas uma frase.

― Jade? Atividade das trevas? O que foi mesmo que você disse?

Arena voltou a sorrir calmamente, se virando para Arbo, que permanecera quieta e expectante até agora.

― Arbo, poderia fechar as portas? Parece que estamos prontos a nos revelarmos aos humanos pela primeira vez em séculos, e precisarmos de algum tempo para isso.

Arbo obedeceu, fechando todas as outras portas abertas dentro da sala com um levantar de braços, e em menos de um segundo, estávamos confinadas dentro daquela enorme sala, embaixo do esqueleto dos brinquedos do destruído Vienna. Não tinha como não se sentir apreensiva com tudo aquilo.

― Por que não se senta? ― Arena apontou para uma das poltronas, onde Arbo já havia se jogado ― Quero começar pedindo desculpas. Não estamos acostumados a nos relacionarmos com humanos, como você já deve ter percebido. Então, perdoe-me se eu de repente lhe disser algo que fuja muito de sua compreensão. Nunca tive que ensinar ou explicar algo da nossa Origem a alguém, e não sei se vou conseguir fazê-la entender tudo que deve ser compreendido. ― ela disse enquanto eu me sentava sozinha em uma das poltronas almofadas, e tentava acompanhar a eloquência suave de suas palavras.

Arena não se parecia em nada com Arbo, Dublemore ou até mesmo Eron. Enquanto estes últimos exalavam um ar de perigo, assassinato e morte, Arena exalava um ar de sabedoria, calma e temperança. Sua voz também parecia ter uma espécie de calmante mental e muscular.

Havia algo nela que me fazia querer confiar.

― Infelizmente, eu não sei lhe dizer se houve realmente um Início, e como ele foi com precisão. Na verdade, talvez nem haja alguém que saiba. ― ela disse, caminhando calmamente pela sala, enquanto eu admirava a beleza das luminárias em formato de bolhas presas às paredes e alguns quadros pendurados ao fim da sala ― Nós sempre existimos, sempre estivemos ali, vigiando seu mundo em segredo.  Há muito tempo atrás, os egípcios nos consideravam deuses, nos veneravam e criaram sua própria religião, baseada na fé em nossos antepassados, os Maoris.

Meu coração disparou ao ouvir a menção do nome, porque eu já o tinha visto em algum lugar.

― Os Maoris são um povo antigo, que a civilização de hoje tem como um antigo povo “não evoluído”. Mal sabem eles o que esse povo realmente foi. Tudo começou com eles. Os Maoris eram um povo poderoso, cheios de ritos, tradições e poderes. Foi entre eles que os primeiros Caminhantes surgiram.

Eu não podia deixar isso passar em branco. Não depois de ouvir o tal de Jade mencioná-los.

― Caminhantes? Como assim?

― Os Maoris eram... extremamente ligados a natureza, principalmente ao Céu e aos astros. Eles tiravam sua força toda de tudo que os rodeavam, de tudo que tocavam. Sua maior afinidade estava com o céu. As Estrelas. ― Arena parecia procurar as palavras certas ― É de onde vem a energia vital de tudo que se vê e tudo que se sente. Os guerreiros Maoris sempre acreditaram que as estrelas os guardariam enquanto eles estivessem em equilíbrio com a natureza, e o equilíbrio de nosso mundo sempre esteve relacionado aos tangata whenua, ou simplesmente, terrenos, se você assim preferir chamar. Humanos. ― Arena disse me olhando ― As Falanges possuem todos os Dons Celestes, por vocês, Eveline, os humanos. O “povo da terra”. O mais desguarnecido. Foi para protegê-los que todo esse poder nos foi dado.

Eu assenti vagarosamente, com medo de minha próxima pergunta.

― Nos proteger de quê?

Arena estalou os dedos.

― Esse é exatamente o ponto. Nunca tivemos tantas coisas com as quais nos preocupar em proteger como agora. Existem coisas aí fora, Eve. Coisas sobre as quais vocês nunca tiveram conhecimento pleno graças a nós. Coisas que querem prejudicá-los e erradica-los por que sabem que os terrenos são a única raça pura e sem alterações da natureza. Seu mundo os nomeou de muitas coisas hoje em dia, espíritos, chupa-cabras, vampiros, lobisomens, elfos... mas a verdade é uma só, e todos também são uma coisa só. Seja lá o que forem, eles sempre tiveram como objetivo destruir os terrenos, criar um novo mundo de Renegados. ― Arena explicou pacientemente, e seus olhos acinzentados foram vagamente ficando sem vida. ― Mas isso foi antes. Quando ainda éramos unidos. Quando ainda tínhamos uma causa.

Ela parou diante de uma enorme pintura com um símbolo familiar. Um catavento de três pontas espiraladas. O mesmo símbolo que enfeitava o tapete aos nossos pés. O mesmo símbolo que parecia saltar em minha direção para tudo que eu olhava.

― O poder era muito. O poder era agressivo. E muitas Falanges passaram a ficar soberbas, envaidecidas, e foi então que os primeiros cataclistas passaram a aparecer.

Meu coração deu galopes dentro do peito ao ouvir a palavra “cataclista”.

― Algumas Falanges mais antigas, acreditam que há muito tempo, uma Estrela desceu do céu em forma humana, Têmis, e concedeu dons aos Caminhantes das Estrelas, os Maoris, e então, tudo teria começado. As Falanges sempre tiveram sextos sentidos e dons sensacionais, mas os mais excepcionais deles, eram os dons de poder controlar pelo menos um dos quatro elementos, considerando sua ligação íntima com a natureza. Mas o único elemento que nunca foi controlado, foi o fogo, e quando os primeiros cataclistas apareceram, nós os tememos. O fogo não é algo que possa ser “controlado”. As chamas têm vontade própria. E elas consomem sem deixar rastros...

Enquanto Arena falava, meus pensamentos iam voltando para Eron. Não era à toa que eu havia pressentido algo de muito ruim nele já à primeira vista.

― Mas resolvemos confiar, e nos arrependemos logo depois disso. Um cataclista nunca foi merecedor de confiança, porque aos poucos, todos eles iam cedendo ao lado sombrio e virando Caminhantes das Trevas. É de lá que o fogo vem. Isso fez com que muitos se perguntassem o por quê, ou como eles poderiam ter surgido no meio de nós, sendo que a estrela chamada Têmis nos dera instruções claras para fazer o bem. E logo descobrimos que Têmis fazia parte da Ordem, o centro das Leis e Regras. Tudo que é está dentro da Ordem, o bem e o mal. E foi por dessa forma que descobrimos a Luz e as Trevas. Tudo é uma balança, uma espada de dois gumes. Um não existe sem o outro... onde existe luz, também existem trevas.― Arena voltou a caminhar, parecendo perdida em lembranças antigas, obsoletas e esquecidas ― Os Caminhantes das Trevas vem, desde então, tentando descobrir o que fez Têmis descer a terra para conceder poderes aos Maoris. Eles querem mais, eles sentem a necessidade de ser a força vital do mundo, e estão se aliando aos Renegados. “Se um Caminhante é tão poderoso, quão excepcional deve ser uma Estrela”?

― Então esse é o problema? Os Caminhantes das Trevas querem governar o mundo e vocês estão tentando impedir? É isso que está acontecendo? ― eu estava tentando me achar em meio a tantas informações, e me ouvir repetindo suas palavras parecia besta e infantil. Era como se eu estivesse tentando entender uma nova brincadeira ou uma Cat Sine por de trás dos games de Itham.

― Mais o menos isso. ― Arena ainda não reprimiu o sorriso largo, como se eu tivesse acabado de dizer algo infantil. ― O problema maior, é que eles descobriram como fazer isso. Pra fazer uma Estrela descer, é preciso invocar A Esfera. É o centro de todo o poder da Ordem. Eles estiveram atrás da Esfera há muito tempo, porque não sabiam exatamente o que ela era, ou como encontrá-la. Mas algo aconteceu. A Esfera rompeu o véu que separa nossa realidade da Ordem, e colidiu bruscamente com o nosso mundo, criando uma certa confusão da qual você já deve estar familiarizada...

Minha boca foi se abrindo de vagar, a medida que eu ia montando suas palavras como um quebra cabeça. Oh, céus...

― O Desastre... ― minha voz não era mais que um sussurro.

― Sim... ― Arena assentiu satisfeita, como se soubesse que eu imediatamente ia compreender, e então, ela se sentou próxima a mim ― Por algum motivo que ainda desconhecemos, ela resolveu cair logo a cima de nossas cabeças ― ela apontou para cima, e eu riria da piada em uma circunstância comum ― O problema, é que nós não sabemos ainda o que a Esfera é, ou o que ela é capaz de fazer, ou para onde ela foi, e onde ela se esconde. Tudo que sabemos, é que os Caminhantes das Trevas a querem a qualquer custo. Mas nós também precisamos dela, para que as coisas voltem ao rumo normal.

― Como assim? ― minha cabeça já estava latejando. Saco. Eu ia precisar de muita cafeína depois daquilo.

― Depois que a Esfera se perdeu, a Ordem foi rompida. E nosso Punho foi desfeito, nossos poderes estão fora de controle, e há coisas que não podemos controlar, como as marés e o tempo em si.

Aos poucos, a ficha ia caindo.

― Isso explica algumas coisas... ― eu murmurei ― É por isso que tem chovido tanto nos últimos dias? Ou estado frio a ponto de nevar?

Arbo pigarreou ao meu lado, me parecendo mais vermelha do que estivera quando a vi pela primeira vez.

― Não tem sido culpa minha. Com a Ordem rompida, não há muito que eu possa fazer para controlar meus poderes.

Eu quase rolei os olhos.

Maravilha.

― Então, quer dizer que tudo será imprevisível enquanto a Ordem estiver rompida? ― eu perguntei, me dirigindo a Arena.

―Infelizmente sim... ― ela concordou ― Nosso mundo está numa confusão enorme por causa disso. E é por isso que precisamos da Esfera, mesmo que por motivos diferentes dos Caminhantes das Trevas.

Eu pedi tempo com um sinal feito com as mãos, tentando me achar em meus próximos pensamentos. Minha cabeça sim é que estava numa confusão só...

― Espere um pouco, você falou algo sobre um Punho. O que é isso?

― É a autoridade suprema do nosso mundo. O Punho sempre foi formado por cinco autoridades, os Cinco Potenciais. ― Arena mostrou sua mão fechada, a abrindo logo em seguida a frente de meu rosto. ― Um punho tem cinco dedos, e todas as Falanges são partes essenciais desses dedos. Mas depois da Revolta das Sombras, onde muitos Caminhantes foram para o lado das Trevas em números desordenados, o Punho se desfez, e nos dias de hoje, resta apenas um Potencial em pé. Ela se chama Zórem, e é uma das últimas Falanges descentes que tem o sangue puro dos Maoris. Porque hoje, só existem dois últimos descentes puros, o que chamamos de Puro Sangue. O resto de nós tem apenas parte do sangue, apesar de continuarmos com os dons.  ― Arena suspirou cansada, como se repassasse mentalmente todos os seus problemas ― E infelizmente estamos em guerra, Eve, como nunca estivemos. Falanges contra terrenos, Falanges contra Falanges e Falanges contra Renegados. Aqueles de nós que não tem dons tão agressivos e aptos para a guerra, ficam na Catedral da Ordem, em um lugar longe de tudo, protegidos de qualquer Caminhante das Trevas. Já aqueles que possuem o dom de domínio dos Elementos, são chamados a luta com 17 anos, como é o caso de Dublemore e Arbo.

Ela fez uma pequena pausa antes de concluir sua história com uma voz amarga:

― Não sobraram muitos... graças as trevas, estamos quase instintos hoje em dia.

Esperei em silêncio, mas ela não citou o nome de Eron em momento algum. Pensando nisso, repassei mentalmente tudo que eu sabia até agora, procurando por falhas que ainda não me deixavam compreender a complexidade de tudo aquilo.

E existiam muitas.

Era bom se sentir livre para perguntar o que quiser, apesar de ser assustador não saber o que esperar da resposta.

― Você disse que restaram apenas dois descendentes puros dos Maoris... ― eu citei, erguendo as sobrancelhas.

Arena se ajeitou melhor no assento, como se essa parte não a agradasse muito.

― Sim... ― ela concordou ― Zórem, nossa líder atual, é uma deles... e o outro... bem, é Eron. ― ela disse, me fazendo enrugar o cenho, completamente surpresa ― Mas preciso que você entenda, Eve. Eron é um caso a parte. Eron é o único cataclista que restou de todos as Falanges da sua raça. Por Leis severas em nosso mundo, ele deveria ter sido executado, por seu grande declínio para o lado sombrio. Mas quando foi descoberto, Eron ainda não havia se tornado um Caminhante das Trevas, e isso não nos dava nenhum direito de erradicar sua raça. Dessa forma, todos acharam melhor adormecê-lo. E foi assim que ele permaneceu, por muitos anos a fio.

Fechei a boca de vagar.

― Quando a Esfera se perdeu, e a Ordem se rompeu... ― Arena continuou, olhando de soslaio para Arbo ― Arbo e Dublemore foram as primeiras a saber, porque estavam monitorando a situação já há muitos dias. Então, sem que A Ordem ou Zórem soubesse, elas me consultaram, e todas chegamos a uma mesma conclusão. Os cataclistas sempre foram as Falanges mais poderosas de nosso mundo, as Falanges do Fogo, mesmo sendo inconstantes e imprevisíveis como as chamas, e se os Caminhantes das Trevas encontrassem a Esfera antes de nós, Eron poderia ser o único a poder detê-los. Era a nossa única esperança, e por isso, tivemos que Despertá-lo. Mas... ― Arena fez uma pausa significativa ― Estamos apostando todas as nossas cartas em Eron, e essa é justamente a parte que eu menos gosto. O Punho não sabe que Eron foi desperto, e tento não pensar no que eles farão quando descobrirem que fizemos isso, mas tento botar minhas esperanças no fato de que eles nos redimirão se conseguirmos provar que Eron pode optar livremente por ser um Caminhante da Luz, mesmo sendo um cataclista. Mas se ele passar para as trevas, Os Caminhantes das Trevas teriam um poder imenso, e todos nós estaríamos perdidos. É perigoso.

― E isso seria pouco comparado ao que poderia acontecer conosco por te-lo Desperto ― Dublemore surgiu na sala, vinda de uma das portas, e se pondo perto de Arena, como se estivesse ouvindo a conversa o tempo todo ― Mesmo levando em consideração que não tínhamos outra escolha.

Engoli em seco ao entender a gravidade da situação.

Quer dizer que o futuro de tudo, até mesmo das três Falanges a minha frente, estava nas mãos daquele garoto perigoso, que pegava fogo e que fazia arrepios subirem e descerem pela minha espinha?

Aquilo tinha zero chances de acabar bem.

Céus! Não acredito que estive pensando em achocolatado até agora...

― Quer dizer que vocês colocaram tudo nas mãos dele? ― torci para que eu não estivesse tão perplexa como julgava estar ― Vocês podem... ser punidas por causa dele? E sabiam disso?

Arena suspirou, cansada.

― Nós não tínhamos escolha. E continuamos não tendo. A única esperança que temos de um dia conseguir derrotar os Caminhantes das Trevas e os Renegados, é Eron e os que virão depois dele. Mas não lhe foi dada nenhuma única chance...

Fechei a boca antes que pudesse soltar o “então vocês estão todos perdidos” que estava terrivelmente entalado em minha garganta. Porque, provavelmente, elas sabiam, sem que houvesse a necessidade de alguém dizer.

― Mas e Jade? Ele é irmão de Eron mesmo? Ele também é um cataclista?

― Não... ― Arena negou enojada ― O pai dos dois era um dos Potenciais, mas ele foi... incinerado e consumido pelo próprio dom, apenas algum pouco tempo depois de ter se tornado um Caminhante das Trevas. O seu poder o dominou, e ele foi destruído de dentro para fora quando sua ambição de tomar a Esfera cresceu até se tornar insuportável. Jade seguiu o caminho do pai, e hoje está como um dos líderes dos Caminhantes da Trevas. Ele não herdou o dom de cataclismo do pai ou de Eron, mas o dom de dominar as águas e as marés, um dom muito parecido com o de Arbo, embora ele tenha conseguido personificar alguns fatores. Jade pode mover coisas que estejam ao seu redor, controlando as partículas de ar a sua volta. A perícia de Arbo está nas tempestades e raios, diretamente ligada a isso, já a de Jade, está diretamente ligada a água em si, e ao ar. Ele não tem um elemento definido, considerando que é parte da água e parte do ar, e isso o torna ainda mais letal.

Bem, pelo menos isso explicava a forma como ele havia me jogado pelas paredes com apenas um balançar de dedos. E a forma como seus olhos azuis recriavam a cor escura das águas do oceano, quem sabe.

― Jade não é um descente puro, por que a mãe dele não é a mesma mãe de Eron. Ambos, são irmãos apenas por parte de pai, e isso dá alguma vantagem a Eron. Talvez seja por isso que Jade não tenha nascido um cataclista.

Assenti rapidamente, eu já sabia o suficiente daquela história.

― Muito bem, então vamos ao que realmente interessa. ― eu disse, erguendo o pulso a altura dos olhos de Arena ― O que é isso? E mais exatamente, por que eu?

Arena observou minha cicatriz por um tempo, e depois suspirou calmamente.

― As marcas são o outro lado da moeda. No nosso mundo, todo símbolo significa alguma coisa. E toda Falange é marcada com seu símbolo assim que apresenta aptidão para algum dom. Mas essas marcas vem espontaneamente, e acompanham a Falange por toda sua vida. As marcas nos definem, dizem quem somos. Geralmente, recebemos apenas uma marca. Apenas os Caminhantes das Trevas costumam ter mais que uma. ― Arena explicou, e meu coração deu um salto ao me lembrar dos braços e do pescoço de Eron, mas Arena pareceu não notar quando engoli em seco ― Já no seu caso, a marca é uma balança, mas o real problema, é que nunca se teve histórico de algum humano que tenha sido marcado.

― Por quê? Pode nos fazer mal?

― Para se ter um dom de Falange, é necessário ser uma Falange, e você decididamente não é uma. É por isso que temos esse enigma, aqui, Eveline. Infelizmente não posso te dizer ainda o que isso significa... tudo que posso fazer, é parabenizá-la por você não ter morrido com essa marca, que não apareceu por conta própria como geralmente aparece em nós. Alguém ou algo te marcou.

Soltei o ar, decepcionada. Ela havia me dito tudo... menos aquilo que eu mais queria saber. No fim, eu havia dado mil voltas ao redor de mim mesma e voltado ao mesmo lugar, na estaca zero novamente. E com o estômago embrulhado.

― Mas você pode nos ajudar a descobrir... ― Arena se inclinou mais em minha direção ― Existe algo que você gostaria de me contar? Algo que está acontecendo com você e que você sabe que não pode ser normal por que não acontecia antes?

Eu pisquei para Arena, como que perguntando se ela estava mesmo falando sério. Acontecimentos estranhos? Eu podia fazer uma lista! Era por isso que eu estava ali!

Dei de ombros enquanto cruzava os braços.

― Não sei... de repente podem ter umas coisinhas sim... tipo, eu estar levando choque de papel alumínio, estar produzindo faíscas em meu chuveiro, de repente também posso estar fazendo lamparinas se desgrudarem do teto e... ― Desenrolei o curativo de minha mão direita ― ah, também me ocorre que tenho tido sonhos um pouco reais demais para o meu gosto, como no último, em que sonhei que havia levado um corte na mão e... ― me calei quando percebi que a palma de minha mão estava lisa e completamente curada ― ... acordei com a mão sangrando.... Droga! Eu juro! Estava bem aqui!

Mas as três não pareciam chocadas com a cura rápida do corte, e sim com a informação anterior em si. Até Dublemore já não tinha mais aquele ar indiferente, mas espantado.

― Espere, você disse que tem tido sonhos reais? Quando acorda, você tem a sensação de que realmente esteve lá? ― Arena perguntou.

Sensação? ― eu quase explodi em gargalhadas ― Você por acaso ouviu a parte que eu acordei sangrando? Raios! Eu poderia muito bem ter morrido enquanto dormia! Já pensou se eu acordasse morta? Minha mãe ia me matar!

Chacoalhei a cabeça. Certo. Uma pane havia sido identificada.

Uma campainha estava tocando em minha cabeça. Excesso de informação, excesso de informação, excesso de informação.

Arena se ajeitou em seu assento, como se também tivesse percebido isso.

― Certo, Eveline. Prometo que vou investigar o que puder sobre suas suspeitas, mas você já tem coisas demais para digerir por hora. Tudo que eu vou te pedir, é para que você descanse um pouco, está bem? Por hora, não poderá voltar para casa, pois estará muito vulnerável, além de estar expondo todo o resto de sua família em perigo.

Mas eu já estava negando com a cabeça antes que ela tivesse terminado.

― Eu não posso fazer isso! E minha mãe? E...

― É atrás de você que eles estão. E enquanto não descobrirmos o por quê, ou o quê essa sua nova marca pode fazer, você terá que ser vigiada.

Eu ia dizer mais alguma coisa, quem sabe, continuar argumentando contra Arena, mesmo sabendo que não iria ganhar, mas quando abri a boca para lhe dizer algo, um barulho forte atravessou o salão, e as duas enormes portas pelas quais eu havia entrado momentos antes se abriram com um estrondo.

Com os olhos arregalados, observei estupefata quando a figura deu um passo a frente, chacoalhando o guarda chuva que pingava no carpê.

Os cabelos esbranquiçados pela idade estavam completamente secos enquanto ela ajeitava melhor seus óculos.

― Bem, senhoras. Eu realmente espero que não estejam enchendo a cabeça da minha garotinha com baboseiras.

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