|6| Q U E B R A N D O

 ANALISEI A FOLHA DE IVI ENQUANTO TROPEÇAVA PELO CAMINHO até o ponto de ônibus, com apenas Itham ao meu lado. Eu odiava quando Ivi tinha faltar a escola por estar com a garganta trancada, e também odiava quando ela empurrava para mim o dever de cobrir o treino dos Tigres da GL. Quero dizer, eu não era nenhuma repórter nem nada, e com certeza não tinha muito talento para escrever matérias, mas o que a gente não faz por uma melhor amiga cuja garganta se trancou?

Ela havia citado em tópicos todas as partes importantes que eu deveria considerar antes de escrever, como se isso fosse realmente ajudar. Eu chacoalhava a cabeça enquanto terminava de ler.

Grande droga.

— Isso não é justo — reclamei enquanto Itham caminhava paciente ao meu lado — quero dizer, ela não pode me pedir para cobrir o treino dos Tigres. Eu não sei escrever matérias! O que, afinal de contas, sua irmã tem na cabeça? Existe um bom motivo para a colunista da história ser ela.

Itham deu de ombros, enrugando a testa para o papel em minhas mãos.

— Não é tão ruim, Eve. Você é uma garota inteligente, tenho certeza que vai escrever uma matéria brilhante.

Eu suspirei, enfiando o papel de qualquer jeito dentro da mochila.

— Eu odeio a garganta de Ivi.

Itham riu, enfiando as mãos nos bolsos enquanto caminhávamos pela calçada coberta de folhas secas e longas, que salpicavam nossas cabeças com insistência. Havia apenas um vento frio naquele dia. Nada de água caindo do céu ou de qualquer outro lugar.

— Você vai ver, não vai ser difícil. Considerando que você já escreve coisas super secretas na sua agenda todos os dias, vai ser fácil desenvolver uma matéria sobre o time. Você vai ver.

Itham era uma das únicas pessoas que sabiam sobre minha agenda. Na verdade, Itham e Ivi eram as únicas pessoas que sabiam tudo a meu respeito, tirando as coisas esquisitas que vinham acontecendo ultimamente, claro. E ele não se importava em saber, até por que hoje seu moletom dizia ABSURDOS DA EXISTÊNCIA. Puxa, eu tinha que presentear a pessoa que havia pensado naquela frase, por que não havia como ser mais verdadeira.

Por que minha existência estava, honestamente, lotada de absurdos.

— Obrigada. De qualquer forma, eu sei que Ivi faria o mesmo por mim. Não posso deixar que ela decepcione a Redação do jornal por causa da sua garganta idiota.

— Se você quiser, podemos ir beber algo no Café Lunna depois do treino. — ele se referia ao único Café em especial que eu, ele e Ivi sempre visitávamos quando ficávamos de saco cheio dos sorvetes sem gosto da cantina da academia. Itham estava apenas tentando me animar, mas não deixava de ser uma boa ideia.

Assenti enquanto sentia meus pensamentos perdidos dentro de minha própria cabeça, indo e vindo sem nenhuma direção específica, atropelando uns aos outros enquanto tentavam se achar.

— Claro. Estou precisando mesmo dar um tempo. Sinto que estou ficando maluca. — eu disse massageando a fonte, sobrecarregada.

Itham sorriu satisfeito. O sorriso mais famoso da ASAGL. E eu podia entender bem por que. Seus dentes eram brancos, alinhados, perfeitos. Itham tinha o mesmo porte que os surfistas mais bombados da região costumavam ter, com toda a sua pele dourada e todo seu porte havaiano, e talvez, fosse isso que deixasse as meninas malucas por ele. E eu não podia condená-las por isso.

Eu ainda pensava no sorriso de Itham enquanto remoia vários outros pensamentos, sentada no banco do ônibus. Eu e Ivi costumávamos sempre nos sentar nos bancos da frente, onde geralmente ficavam os nerds e os alunos sem status da escola, porque o meio era sempre utilizado pelas patricinhas e pelas animadoras de torcida de algum comitê legal, e os fundos do ônibus, estavam sempre lotados com os caras mais descolados da escola, que viviam fazendo brincadeiras inadequadas com objetos proibidos e de natureza afiada, jogando cartas, falando palavrões ou simplesmente tratando de assuntos que nos enojavam. De todas as formas, se sentar na frente ainda era a opção mais segura.

E eu ia repassando mentalmente todas as coisas que tornavam minha vida esquisita enquanto acariciava meu pulso com a ponta dos dedos.

Discretamente, eu obervei a cicatriz, lembrando-me de quantas vezes eu passara noites em claro a observando e tentando entender o quê poderia significar. Não que alguma vez tivesse me passado pela cabeça que corria o risco de ser alguma marca. Quero dizer... eu sempre preferia pensar que talvez, eu tivesse raspado o pulso brutalmente em alguma superfície áspera o suficiente para causar um estrago tão permanente. Talvez eu visse algo de diferente agora que suspeitava fortemente não ser apenas uma cicatriz, mas ela ainda me parecia a mesma, mesmo que agora a pele do local já não estivesse arroxeada como um hematoma feio.

Haviam pontos, separados por espirais. E era tudo.

Girei o pulso enquanto examinava melhor. Pensando bem... meio que parecia... um rabisco traçado em meio a constelações.

Claro! minha mente se acendeu de repente. Era isso!

Agora eu percebia que os rabiscos espiralados formavam a balança, o símbolo do meu signo, o símbolo de Libra. Como eu não havia reparado antes? Céus... como eu era burra!

Mas mesmo que agora pudesse definir claramente a marca, ainda não fazia ideia do que isso podia significar.

Mas eu ia descobrir bem rápido.

Tanto é, que assim que o ônibus nos despachou no estacionamento da academia, caminhei direto para as escadarias frontais, de maneira determinada, me prostrando ali, e esperando.

Por ele.

Eron deveria saber que eu não desistiria tão facilmente. Talvez ele tivesse conseguido me convencer a ficar de boca fechada, considerando a maneira extremamente quente com a qual me tratou e desnorteou. Mas fazer o quê se o cara era um mal ambulante? Provavelmente ele nem se dava conta de que era sexy demais para o seu próprio bem e o bem das pessoas ao seu redor.

Ou tivesse plena consciência...

Mas hoje seria diferente.

Ou ele me dizia tudo que eu queria saber em detalhes sórdidos, ou... bem, eu ainda não havia planejado bem essa parte, mas esperava pensar em alguma coisa inteligente na hora.

Não que eu fosse uma excpert em termos de lidar com garotos cheios de traços atraentes como a merda, mas ele havia me deixado razoavelmente cheia de perguntas, e a única pessoa que poderia responde-las no momento, era ele próprio. E não importava o medo que eu tinha de ficar muito próxima a ele, ou o fato de meu cérebro virar gelatina em sua presença, eu simplesmente teria que abordá-lo antes que mais alguma coisa desconcertante e catastrófica acontecesse.

Era nisso tudo que eu pensava enquanto o esperava com os braços cruzados e um olhar apreensivo no rosto.

Mas é claro que ele não apareceu.

De certa forma, talvez eu já devesse ter esperado por isso.

Se Eron realmente não queria que eu descobrisse o que ele era, obviamente ele não facilitaria as coisas para o meu lado. Ainda mais agora que tudo parecia estar por apenas um fio.

Eu sentia como se minha vida estivesse meio que como um elástico esticado demais. A tensão estava aumentando, as coisas estavam suspensas e vulneráveis... e a qualquer hora ele romperia.

Particularmente, eu tinha medo do que aconteceria quando esse elástico arrebentasse.

Andar sem Ivi pelos corredores da ASAGL não me parecia ser a mesma coisa. Talvez eu já tivesse me adaptado a sua tagarelice preenchendo meu mundo silencioso.

Tudo bem. Não era apenas isso.

Era como se Ivi fizesse parte de minhas substâncias. Tudo parecia estranho e diferente sem ela. Como naquele momento, quando tudo parecia vazio enquanto eu me dirigia à sala, e percebia que Sr. Encharpe já esperava em sua mesa, ao lado do quadro negro, algo que nunca havia acontecido na história antes.

Mas que ótimo. Talvez ele estivesse pronto para aplicar outra prova surpresa. E eu não estava com humor para responder as suas perguntas. Havia muitas outras coisas nas quais eu tinha que pensar agora. Coisas que tinham muito mais importância que apenas minhas notas no fim do trimestre. Coisas que provavelmente complicariam minha vida mais do que tentar entrar em uma boa faculdade.

Mas eu era muito teimosa para desistir agora.

Me deixei cair pesadamente na carteira número doze, enquanto a carteira número treze e a vinte permaneciam vazias até o início da aula.

Eu estava debruçada sobre meu caderno de anotações, fingindo rabiscar algo enquanto esperava o sinal soar, quando um bilhete caiu a frente de meus olhos, sendo lançado em cima de meu caderno por alguém que passara no meio de um bolinho de pessoas em minha fileira. O pedaço de papel estava amassado, e a caligrafia era horrivelmente deplorável.

Ele é “meu”!

Virei a cabeça por cima do ombro, me deparando com o olhar inquisitivo de Hanna e sua sobrancelha loira levantada, enrugando a testa e percebendo que aquela letra horrível só podia mesmo pertencer a Srta. Cabeça de Fuinha.

Voltei para o pedaço de papel novamente, escrevendo furiosamente uma resposta rápida. Depois, com toda a classe possível, levantei-me de minha carteira, me dirigi até a sua e lhe ofereci o bilhete com um enorme sorriso venenoso, voltando ao meu lugar logo depois disso.

Cagando e andando pra vc.

É. Isso não foi particularmente maduro.

Hanna só devia ser mesmo muito perturbada se achava que eu realmente ia tentar arruinar sua vez com Eron. Se ela queria tanto enfiar a língua na garganta dele, com certeza não seria eu a pessoa que iria impedi-la. A única coisa em Eron que me interessava, era a verdade. E isso era algo que ele iria me dar, custasse o que custasse. Talvez eu realmente não devesse saber, considerando que minha vida já estava suficientemente complicada sem ela, mas eu me sentia como se já estivesse nisso, e não dava simplesmente pra pular fora do barco agora.

Encharpe se levantou para fechar a porta assim que o último aluno passou por ela, e me empenhei em tentar prestar mais atenção nas coisas ao meu redor.

 Era como se uma parte de mim — uma parte ainda maior do que de costume — tivesse ficado dormindo naquela cama. Não era sono, era uma sensação de... estar desligada.  Como se eu não conseguisse abrir meus olhos completamente. Como se eu estivesse perdendo alguma coisa, um pedaço do mundo. Um pedaço importante. Me ajeitei melhor em minha cadeira quando Encharpe voltou a sua posição habitual em frente ao quadro negro.

Apesar de ainda estar com aquela aparência estranha, ele já não parecia mais com alguém que estava prestes a entrar em estado de convulsão e de cair babando no chão.

Já não tinha mais tiques nervosos com a cabeça e nem ficava rolando os olhos para cima, por mais que eles ainda parecessem dois buracos sem fundo.

Era bizarro.

Desviei o olhar quando esses olhos me encontraram, rapidamente me lembrando da sensação de olhar dentro dos olhos de Eron. Eu havia percebido uma certa diferença, apesar de tudo. Os olhos de Encharpe eram frios, mas não como o olhar frio de Dublemore, por exemplo. Era um frio... maligno... errado. Já o olhar de Eron era quente, passava uma sensação de ameaça e... algo mais.

Concentre-se!  Xinguei a mim mesma em pensamentos enquanto chacoalhava a cabeça.

Parecia haver algo dentro de mim mesma querendo sugar minha atenção. Deslocar minha mente e borrar meu foco.

— Parece que uma de nossas melhores alunas faltou hoje. — Encharpe notou, visualizando o lugar vazio ao meu lado. — Sabe nos dizer por quê, Srta. Eveline?

Fitei Encharpe por alguns segundos. Por que ele fazia tanta questão que eu falasse?

— Ela... estava doente. — eu apenas disse.

Encharpe ergueu as sobrancelhas, não completamente satisfeito com a resposta.

— Certo. Bom, pelo menos ainda temos você aqui. — ele surpreendentemente disse, e meu rosto se avermelhou, esperando por algum comentário grotesco de Hanna.

Mas ele não veio.

Me perguntei se Hanna teria ficado tão escandalizada com minha resposta a ponto de se calar. Hanna parecia ser do tipo que se escandalizava?

Ela devia achar que ninguém conseguiria ser tão vaca quanto ela.

Encharpe tomou seu bloco de anotações e se pôs a escrever rapidamente no quadro, fazendo o giz guinchar a expelir aquele pó branco terrível que fazia meus olhos incharem. E não me surpreendi por dessa vez, sua grafia sair perfeita, na falta de uma palavra melhor. Estávamos numa espécie de introdução sobre as diferenças entre Astrologia e Astronomia, e Encharpe nos passava a relação dos signos, o que eles tinham a ver com os astros, e a clara diferença entre o zodíaco e os astros em si, geograficamente falando.

Estranho e nada coerente.

Mas não consegui impedir de focar minha atenção compeltamente no quadro quando Encharpe fez questão de passar um spoilers sobre librianos:

Seu temperamento é modelado pelos sentido da pacificação do mundo ao seu redor, é defensor do equilíbrio e da harmonia, é um exemplo de julgador correto e consciencioso, embora que nem sempre ciente de que rumo seguir.”

Enruguei a testa, pulando para o próximo tópico, e ignorando que a descrição falava, hipoteticamente, de mim.

“Sonhador e romântico incorrigível. Adora o luxo e por onde usá-lo como uma parte de sua atração pelo ócio e pela vida plenamente tranquila. Busca a paz, mas o faz sempre nos seus próprios termos e mostra uma certa possessividade que impressiona.

O charme é a arma que a Balança usa para conquistar seus espaços e anseios. Guarda mágoas em ofensas e sofre em torno disso.”

Eu concordava em alguns pontos, mas dispensava absolutamente outros, como a parte do charme e do “romântico incorrigível”. E “julgador correto”? É sério que estávamos mesmo falando de mim?

“Pontos positivos:

*. Equilíbrio

*. Diplomacia

*. O senso de justiça

*. A sensibilidade

*. A sinceridade

*. O reconhecimento

*. O refinamento

*. A ambição”

 Ambição? Espere ai! Como assim?

“Pontos negativos:

*.Falta de iniciativa

Certo. Eu concordava. Minha principal falta de iniciativa estava no tag #garotos.

*.Apego ao luxo.

*.Possessividade.

*.Egoísmo.

Era oficial. Encharpe estava querendo briga.

*.Sensibilidade a crítica.

Bufei.

*.Excessiva dependência.

Considerando a falta que eu estava sentindo de Ivi, tudo bem. Eu concordava plenamente até esse ponto. Mas precisava mesmo me chamar hipoteticamente de egoísta? Ou apegada ao luxo? Quero dizer... eu gostava muito de meu quarto, mesmo com as paredes cobertas de papeis e desenhos velhos, e também adorava o All Star que eu usava agora, que estava tão batido, que chegava a estar com os cadarços puídos. Essa era a prova. A astrologia não devia estar infinitamente certa em todas as vezes. Parece que sempre haveria algum ponto a ser revisado.

Mesmo o sétimo signo do zodíaco, o signo do equilíbrio.

Blah.

Ivi talvez gostasse dessa chatice toda.

Ou questionasse o porquê de estarmos falando sobre o zodíaco numa aula de geografia.

― Como podem ver, sabemos que tanto a astrologia como a astronomia, têm um papel fundamental em nossas vidas. ― Encharpe explicou enquanto sublinhava pontos relevantes no quadro. ― Os Astros controlam nosso mundo, basicamente. Tudo que foi, é ou virá a ser, depende unicamente da vontade deles.

Eu nunca fui uma pessoa que acreditava em horóscopo, e alguém tinha que dizer a Encharpe que essa coisa sem sempre funcionava.

Mas claro que ele continuou.

―Eu sei que, provavelmente, muitos de vocês não acreditam no Universo Astrológico, ou seja, o que os Astros têm a dizer sobre cada um. Mas isso não muda o fato de que toda as regras de nosso mundo sejam redigidas por eles. O que quero que entendam nessa aula, é que em nenhuma circunstância, jamais aconteceu algo, sem que antes estivesse “escrito nas estrelas” primeiro, ou seja lá como for que vocês pretendam chamar.

Ivi provavelmente teria se rebelado a essa altura da aula, mas eu era tímida e “sem iniciativa” demais para dizer alguma coisa em público, mas eu não precisava, por que um garoto dos cabelos claros, que usava óculos e se sentava numa das primeiras carteiras da sala resolveu o tabu por mim.

― Sem querer faltar com respeito, mas o senhor acredita mesmo nessa baboseira toda de que o destino está escrito nas estrelas?

Encharpe, claro, não reagiu da maneira usual, anotando imediatamente seu nome no diário por ter lhe feito uma pergunta ou discordado de seu ponto de vista. Ao contrário disso, uma paixão feroz tomou conta de seus olhos ao expressar melhor sua opinião, que, convenhamos, não parecia ser apenas uma simples opinião.

― Não é uma questão apenas de acreditar. As estrelas são a razão e o porquê de você existir, de nós existirmos. Sem elas, não haveria nada do que é ou virá a ser. Sem o brilho delas, tudo é escuridão.

Certo. Aquela aula já estava passando dos limites. Eu já estava a ponto de perguntar o que aquela aula tinha a ver com geografia, mas novamente, ele tinha algo a dizer antes de mim.

― Estrelas não estão ligadas apenas a eventos geográficos... elas estão ligadas a tudo.

E foi aí que aconteceu a coisa mais esquisita que eu achei que poderia acontecer. Encharpe ergueu um dos braços para jogar seu bloco de anotações na mesa novamente, e por um breve instante, sua camisa se abriu um pouco, e mesmo que só eu tenha notado, minha boca se abriu quando reparei em algo que só eu repararia: a ponta de uma tatuagem.

E não uma tatuagem qualquer, mas uma espécie de tribal muito esquisito que provavelmente queria dizer alguma coisa. Não era uma tatuagem. Era um símbolo. Assim como os símbolos que Eron, Dublemore e Arbo carregavam pelo corpo. Minha respiração deu um tempo, enquanto eu imaginava o que aquilo podia significar.

E algo me dizia que não podia ser nada bom.

Ivi não estava aqui, Encharpe tinha uma tatuagem, eu ia fazer uma matéria e Hanna não estava pegando no meu pé durante a aula.

O universo estava mesmo tendendo para o caos.

 Olhei no relógio da parede enquanto corria pelos corredores do ginásio, ouvindo meus tênis guincharem pelo piso encerado, num efeito desconfortavelmente emborrachado.

Eu havia me atrasado um pouco na hora de sair, perdida na hora de reunir meus materias e na hora de me lembrar tarde demais que eu não tinha que esperar por Ivi por que ela não estava ali. Provavelmente, eu já havia perdido boa parte do treino, e provavelmente, minha matéria iria sair pior do que teria saído em outra ocasião melhor que aquela.

Quando entrei no ginásio, os Tigres já estavam na quadra, e o treinador Preston já estava gritando obscenidades para os jogadores do outro lado da quadra.

Para minha infelicidade, Hanna também gritava obscenidades para as outras animadoras de torcida do outro lado do ginásio. Parece que teríamos outro treino duplo hoje. E logo entendi por que Hanna não poderia perder aquele treino. Quando me viu, Itham correu ao meu encontro, passando a bola para Jimmy num arremesso perfeito. Sua pele dourada estava suada, e seus cabelos molhados caiam sobre seu rosto vermelho de esforço. A camiseta molhada de suor se grudava em seus músculos, revelando mais do que Itham gostaria que revelasse.

― Puxa vida, onde você se meteu? O treino começou há uns quinze minutos... ― ele reclamou enquanto parava esbaforido a minha frente.

― Quinze minutos e você já se parece como alguém que veio correndo do Arizona até aqui? Talvez eu devesse mencionar isso na minha matéria... ― eu observei ― Desculpe, tive que... tirar umas coisas do caminho hoje.

Itham ergueu uma sobrancelha, e percebi que ele havia notado meu blefe.

Eu nunca tinha compromissos ou coisas no caminho.

Droga, acorde Eve! Já está mais que na hora.

― Tudo bem, de qualquer forma. Eu cheguei a pensar que você não viria... fiquei observando as arquibancadas.

― Ah, eu... ― parei de falar quando encontrei o olhar de Hanna, que mesmo aquela distância, parecia me atingir como uma lâmina afiada. Ela dançava na quadra, mas me fulminava com o olhar ao mesmo tempo. E tinha um dom nato para fazer isso sem perder a compostura. Engoli em seco enquanto desviava o olhar. ― Droga. Vocês não podem mesmo dar um jeito nisso? Esse deveria ser o treino dos Tigres, não das tigresas de plantão...

Itham não precisou acompanhar meu olhar para saber do que eu falava.

― Eve, eu já disse. Desconsidere Hanna, está bem? Nada do que ela faz ou diz deveria ser de grande importância para você...

Eu suspirei.

― Acontece que é.

― Eve, você realmente...

― Tudo bem... ― eu dei de ombros, chacoalhando as mãos em descaso. ― Não tem importância... eu tenho uma matéria pra fazer... ― eu soquei seu braço enquanto me dirigia ás arquibancadas — Faça-me o favor de fazer algumas cestas para eu ter algo que dizer, ok?

Itham sorriu enquanto penteava o cabelo molhado com as mãos, saltitando de volta para a quadra com um sorriso enorme nos lábios.

Subi nos degraus poeirentos do ginásio, me sentando em cima da mochila e prendendo meus cabelos em um elástico. Eu estaria menos nervosa se estivesse prestes a iniciar uma prova do Enem. Quero dizer, todo mundo leria aquilo. Se alguma besteira fosse detectada em meu texto, eu ficaria conhecida como a garota que estragou a coluna brilhante de Ivi.

Segui as instruções de Ivi ao começar uma resenha de Boas Vindas em seu bloco rosa de anotações. Eu havia aprendido as coisas com ela, e duvidava que se parecesse com algo que ela faria, mas fiz algo que se parecesse com o que eu diria em uma matéria. E talvez por isso ela tinha começado tão ruim. Concentre-se, pedi a mim mesma. Isso não é apenas um ensaio.

Observei o jogo por alguns instantes.

Eu nunca tinha me dado ao trabalho de fazer isso antes, considerando que Ivi era sempre a única que precisava escrever sobre isso.

Itham jogava realmente bem. Com todo o seu tamanho, ele se movia rapidamente pela quadra, fazendo passes precisos e certeiros nos momentos certos. Levantei as sobrancelhas ao realmente perceber a perícia e a precisão de sua coordenação motora.  Itham parecia ter uma habilidade especial em se concentrar e correr ao mesmo tempo. Em pular e pensar ao mesmo tempo. Em se focar. Talvez fosse isso que fizesse dele um jogador tão talentoso.

Baixei a cabeça para registrar essa nova descoberta em minhas anotações, não deixando de ressaltar como todo o resto do time era unido, se consultando entre si com olhares a cada passe dado.

Mas depois de alguns poucos parágrafos, as letras começaram a tremer, e numa confusão estranha, começaram a se embolar no papel. Pisquei violentamente, tentando fazer minha visão voltar ao normal, mas então, pareceu que por um momento, eu me esqueci da forma correta de segurar o lápis, que caiu em algum ponto dos degraus abaixo de mim.

Droga! Que merda é essa agora?

Chacoalhei a cabeça, tentando me livrar daquela sensação desesperadora, mas então as coisas começaram a girar. Era como se eu estivesse perdendo os sentidos. Era como se eu estivesse entrando no modo hibernação. Pareciam haver paredes invisíveis ao meu redor, se comprimindo e fechando-se cada vez, me encaixotando dentro de uma gaiola de ar claustrofóbica e acumulada de vertigens. Minha caixa toráxia parecia a ponto de achatar meu coração, que pulava descompassado em algum ponto dentro do peito, como se quisesse se libertar e sair correndo.

Respire. algo instruiu no fundo de minha mente, e mesmo que eu não fizesse ideia do que pudesse ser, obedeci, percebendo que meus pulmões tinham parado de trabalhar sem que eu tivesse me dado conta. A medida que ia puxando o ar novamente, minhas pálpebras foram parando de bater, e me senti dentro de meu corpo novamente.

Esperei alguns momentos, até que minha visão ficasse clara novamente, mas junto com ela veio outra sensação: havia algo queimando. Em meu peito. Afastei minha camiseta, me deparando com o colar que havia ganhado de tia Peg. Sua gota dourada parecia um pedaço de brasa acesa. Quanto mais ele esquentava, mais normal eu me sentia novamente. E quando passou, o colar voltou ao normal, deixando apenas minha boca seca.

Fiquei imóvel por alguns instantes, me perguntando o que exatamente havia acabado de acontecer.

Mas eu não tinha uma resposta para nada daquilo.

Passei as mãos pelo rosto, tentando convencer a mim mesma que eu não estava morrendo nem nada do tipo. Eu odiaria ter um derrame agora.

Está tudo bem, está tudo bem, está tudo absolutamente bem!

Mas é difícil se convencer de uma coisa quando você sabe que essa coisa não é, bem... verdade.

Deixei minhas coisas na arquibancada e me levantei zonza, tencionada a ir ao banheiro. Eu não podia vomitar ali. Hanna já tinha motivos suficientes para falar de mim sem que precisasse me ver despejar o café da manhã na quadra de basquete. E eu não ia querer que toda a ASAGL soubesse que eu havia tido uma crise no dia seguinte.

Os corredores do ginásio permaneciam vazios, e agradeci mentalmente por isso.

O banheiro feminino também estava deserto, sem nenhuma animadora de torcida retocando o batom, e isso foi uma conquista.

Me debrucei sobre a pia branca da bancada, me concentrando em respirar direito e abrindo a torneira ao mesmo tempo. Depois de bebericar um pouco de água fria, enfiei o rosto embaixo da torneira.

Por um momento breve, a água pareceu amainar meu espírito, fazendo com que eu voltasse ao normal de novo. Mesmo assim, borrifei água pelo pescoço e pelos punhos, desesperada para voltar completamente a realidade de novo. Eu me sentia meio como uma bomba atômica, prestes a explodir. Era como se as coisas ao meu redor estivessem tinindo, prontas a se espatifar em mil pedaços com tanta pressão. Como se eu realmente estivesse no controle da lei da gravidade, por exemplo.

Mas então tudo foi se acalmando, e parei de me sentir em meio a um terremoto.

So que aí a porta se abriu.

E Hanna entrou.

Rolei os olhos. Eu não merecia isso. Não no mesmo dia.

Hanna não disse nada, apenas desfilou até a bancada e passou a ajeitar seus cabelos no enorme espelho do banheiro, e realmente considerei a possibilidade de sair de fininho, pois talvez ela realmente ignorasse minha presença, mas então sua boca se abriu.

— Não é que eu esteja com medo de você, Gringer. Apenas quero que você esteja ciente. Gosto que as pessoas estejam cientes.

E eu sabia sobre o que ela estava falando. O bilhete havia sido nosso último meio de comunicação, e não havia como não perceber isso.

— Ciente de quê? Do seu corte de cabelo horrível? Não havia a necessidade daquela mensagem — eu simplesmente disse, enxugando meu rosto com papel toalha — Não estou interessada nele, se é isso que quer saber.

Ela continuou olhando seu reflexo no espelho, tirando um gloss de dentro do sutiã e retocando seus lábios.

— Não acho que você represente qualquer espécie de perigo. Só quero que você se coloque em seu lugar e perceba que não há nada em você que seja melhor do que tudo que há em mim...

Amassei o papel molhado, o arremessando com força no lixo encostado na parede.

— Qual é o seu maldito problema? — a raiva escapou de repente, fluindo de algum lugar desconhecido e novo dentro de mim.

— Você. — ela não se inibiu em revelar.

— Ah, sério? E por que você me odeia tanto, Hanna? O que exatamente eu te fiz? Por que você decidiu que tinha que ser eu?

Pela primeira vez desde que entrou, seus olhos azuis me encaram pelo espelho. E eles pareciam como se fossem me derreter viva.

— Por que é você. É por isso que eu te odeio.

Minha boca se abriu, e meus olhos se inflaram. Por que ela tinha que ser assim? Por que tinha que me tratar daquela forma? Hanna conseguia fazer com que eu me sentisse um nada. Como se eu não tivesse importância nenhuma de repente.

Hanna me fazia sentir ninguém.

— O que você tem comigo? Por que precisa dizer coisas tão absurdas contra mim e minha família?

— Coisas absurdas? — ela se virou para mim, batendo de frente pela primeira vez —não há nada de absurdo sobre o que eu disse sobre sua família. Vocês são repugnantes, e não sabem qual é o lugar de vocês, e alguém deve lhes ensinar. Assim como sua tia, você tem de ser colocada em seu lugar, deve aprender a não se meter onde não é chamada! — suas palavras pingavam veneno, chegando afiadas até mim e se encravando em meus ouvidos, enquanto lágrimas quentes afloravam em meus olhos, e eu me recusava a deixá-las descer.

— Do que diabos você está falando?

Hanna me analisou por alguns instantes, momentaneamente surpresa, mas logo, o desprezo tomou lugar em seus olhos azuis.

— Ah, você nem mesmo sabe não é? Então sua tia desprezível nem mesmo lhe contou. Viu só? Até ela acha que você é um peso morto, que talvez você nem mesmo devesse ter nascido. Ela sabe o que todos nós sabemos, Eveline: você é um nada! Me ouviu? Nada!

Eu não suportei mais. Não me importava que Hanna parecesse saber algo terrível que eu vinha desesperadamente querendo descobrir. A única coisa que importava, era que ela estava conseguindo me fazer chorar. Ela geralmente sempre conseguia, e eu sempre me sentia impotente contra ela, o que só fazia com que eu me odiasse mais. Poque talvez ela tivesse razão. Tia Peg não me achava capaz de saber da verdade. Tia Peg me achava fraca. Tia Peg me achava um nada...

Corri para a porta, passando por Hanna sem olhá-la, ainda contendo as lágrimas se dependuravam nos cantos de meus olhos. Hanna não merecia me ver chorar.

Saí porta à fora, a deixando dentro do banheiro e saindo para os corredores, me deparando com uma figura alta que parecia esperar pacientemente fora do banheiro... bem em frente à porta. Caí contra a mesma novamente, batendo a nuca na madeira.

Merda.

Mordi a língua a língua no processo, soltando o ar surpresa ao reconhecer Encharpe, e torci para que a expressão “socar alguém” não estivesse tão óbvia em meu rosto.

Paciente, ele mantinha suas mãos unidas atrás das costas, e seus olhos escuros e tenebrosos me encaravam calmamente, e seus óculos não estavam à vista. O que ele fazia sem os óculos?

— Sr. Encharpe? O que está fazendo aqui?

Ele apenas me olhou por alguns instantes, se virando e seguindo adiante.

— Venha comigo, Srta. Gringer.

Soltei o ar exasperada. Apesar de tudo, Encharpe ainda era meu professor de geografia.

O segui pelos corredores vazios, com a cara amarrada, ainda digerindo mentalmente tudo que Hanna havia dito. Era muito fácil me aconselharem a não ouvi-la... difícil mesmo era não fazer isso. Ouvir Hanna falar era o mesmo que oferecer a perna para uma cobrar morder. Hanna conseguia entrar em sua mente, mudar seu ponto de vista e fazê-la acreditar em qualquer coisa que ela quisesse. Maldita fosse!

Ao longo dos anos, eu havia aprendido isso da pior forma possível.

Talvez por isso eu nem relutasse mais?

Ainda perdida em pensamentos, quase bati nas costas de Encharpe quando ele parou abruptamente a frente de uma das portas marrons que adornavam as paredes brancas. Era o escritório do treinador Preston. Encharpe abriu o trinco com facilidade e me convidou a entrar.

A sala estava cheia de estantes com feixes de papeis e arquivos, e uma mesa de mogno a cortava ao meio, deixando apenas um pequeno espaço do outro lado, onde uma cadeira almofadada se opunha vazia. Um enorme ventilador pendurado atrás da mesa estava desligado, dando um ar estranho à sala com todo aquele frio. Havia apenas uma enorme janela de persianas aos fundos da sala. Uma janela fechada.

— Sente-se, Srta. Gringer. — ele convidou enquanto fechava a porta e sentava-se do outro lado da mesa.

Fiz o que ele pediu, me perguntando que raios Encharpe poderia querer comigo. E considerando a infinita cota de sorte que fora designada a mim, não deveria ser nada bom.

— Devo dizer... — ele começou enquanto abria uma ficha minha a sua frente em cima da mesa — que sua ficha acadêmica está me impressionando cada vez mais.

Fiquei perdida por alguns momentos, tentando entender exatamente do que ele estava falando.

— Sua... participação nas minhas aulas tem sido... excelente. — ele frisou enquanto lia minhas informações na ficha a sua frente, claramente surpreso com alguma coisa — Veja só... seu sobrenome impõe respeito, Srta. Gringer. Sabia que sua tia estudou nessa mesma academia quando tinha sua idade e parecia também se destacar muito nas aulas de geografia?

Minha boca meio que se abriu, surpresa.

Estava claro que havia muita coisa sobre tia Peg que eu não sabia.

— Ah, eu... não. Na verdade eu não fazia ideia.

Seus olhos escuros me analisaram novamente, e mais uma vez desviei o olhar. Os olhos de Encharpe pareciam gelar minhas veias de uma forma esquisita. Mediante seu olhar, eu só conseguia pensar em gelo correndo por minha corrente sanguínea ao invés de sangue. Eu me sentia cair. Eu me sentia desligar. Eu me sentia... navegar para fora de mim.

— Tem certeza que não sabe mesmo, Srta. Gringer? Eu estaria mais feliz se você estivesse mais disposta a cooperar.

Eu soltei o ar com força. Já estava farta de manter a boca fechada diante de tudo, sempre. E esquisito mesmo foi perceber isso só agora.

— Escute. Eu não sei porque isso te interessa tanto, mas eu não sei quase nada sobre minha tia. Nós não temos exatamente um relacionamento muito aberto quando as coisas dependem de ela me contar coisas sobre ela.

Encharpe parecia chocado.

— E você não sabe nada sobre ela?

Eu dei de ombros. Foi duro de admitir.

— Ela faz uns biscoitos ótimos.

— E você pelo menos sabe dizer alguma coisa sobre a genealogia de sua família, Srta. Gringer?

Meus olhos se estreitaram mais. Eu não estava gostando nada daquela conversa.

— Eu não sei o que você está querendo dizer com isso...

Encharpe soltou o ar cansado, como se estivesse perdendo a paciência com minha ignorância a cerca dos fatos. Eu queria apenas sair correndo, mas já não sabia se podia fazer isso agora.

Essas salas têm câmeras de segurança. , eu assegurei a mim mesma, mas então, Encharpe se endireitou mais em sua cadeira.

— Então, apenas me conte sobre sua marca, Srta. Gringer.

Meus olhos se arregalaram, e um sinal silencioso e vermelho disparou em minha mente, me fazendo pular em pé no mesmo instante. Não havia mais nenhuma outra marca na qual eu pudesse pensar naquele momento.

— Escute aqui, eu não sei quem é você, e nem o que você quer de mim, a única coisa que eu vou te dizer é que eu não sei de nada!  Está bem?

Eu gostaria de saber o que fazer naquelas circunstâncias, mas não era como se existisse um manual de instruções chamado O que fazer quando seu professor de geografia enlouquece – Parte 1...

Ultimamente, não saber era uma constante que me irritava.

Encharpe inspirou pacientemente, com calma, girando um globo de vidro em sua mão, seus olhos nem mesmo estavam voltados em minha direção, e isso só fez com que eu me arrepiasse ainda mais. Eu estaria mais calma se ele estivesse me ameaçando verbalmente ou com algum objeto cortante em mãos.

Pelo menos assim as coisas ficariam mais claras.

Não ficariam?

Corra! Agora! aquela voz familiar soou no fundo de meus pensamentos, mas eu não poderia obedecer dessa vez, por que minhas pernas estavam travadas.

— Mas que pena, Gringer... eu realmente esperava que você colaborasse — ele ergueu calmamente a mão direita ao mesmo tempo em que falava, e algo me dizia que ele não queria apenas que eu admirasse suas unhas ridiculamente bem feitas —, mas me parece mesmo que vamos ter que apelar pelo modo mais difícil... — ele concluiu, balançando os dedos em minha direção, e alguma coisa muito forte atingiu meu peito, uma força invisível que se chocou contra mim, me jogando contra o outro lado da gravidade. Meus pés se arrastando no chão e todas as coisas no caminho. Então minhas costas atingiram uma parede com mais força do que eu achava que seria possível.

Dor vermelha explodiu por minhas têmporas.

Meu grito seguiu o impacto, sentindo meus pulmões se deslocaram em algum ponto dentro de mim. Eu esperava desfalecer no chão, julgando o fato de que não conseguia sentir minhas pernas, mas percebi que eu estava grudada na parede pela mesma força, e que não conseguia me mover. Forcei meus pulmões a funcionarem, percebendo que minha visão estava nublada novamente, e meu corpo paralisado

— Vamos lá, Gringer, apenas me diga tudo o que eu preciso saber, e ninguém vai precisar sair machucado. — a voz de Encharpe tinha mudado, muito, e eu não conseguia entender como aquilo era possível. Havia algo de másculo e jovem no novo fonema de seu tom, o que me dizia que meu professor de geografia parecia estar trocando de pele de um jeito sombrio. Ele havia se levantado, caminhando em minha direção com calma, como se não estivesse me colando na parede apenas com a força do pensamento. — Agora, me diga Eveline, diga-me o que essa marca no seu pulso significa. Me conte porquê você foi marcada com uma Balança.

Forcei minha voz a sair, ainda tentando ignorar a dor em minha caixa torácica ao tentar respirar.

— Eu já disse... eu não sei.

— Tisc Tisc... — ele estalou a língua no céu da boca, balançando os dedos novamente, e em menos de meio segundo, eu estava voando na sala de novo.

Mas dessa vez, fui arremessada com força contra outra parede, caindo no chão logo em seguida. Arfei de dor ao chocar contra o material frio do chão, sentindo o impacto de matéria contra matéria. Coisas caíram no chão ao meu redor, se quebrando e se partindo junto comigo. Meu queixo havia arranhado brutalmente em alguma coisa, e eu sentia o corte frio e profundo se abrindo em algum ponto perto de minha boca, e o líquido quente escorrendo por meu pescoço.

Sangue.

O cheiro forte me dominou enquanto meu estômago dava voltas.

— Vamos Eveline... isso não precisa ser assim. Apenas me conte. Diga-me o que houve com você, diga-me onde eles se escondem, diga-me onde estão o restante deles, diga-me apenas por que você foi escolhida. Você entende que não há necessidade de nada disso? Poderíamos apenas conversar.

Cada centímetro de meu corpo gemia em agonia, e sangue vermelho empapava os papeis ao meu redor, me fazendo descobrir bem cedo que haviam mais partes sangrando do que apenas meu queixo, e com certeza, conversar não estava no topo da lista das coisas que eu queria fazer com aquele cara.

Com um único gemido eu abri a boca, cuspindo sangue no chão:

— Vá se ferrar.

E dessa vez fui parar em cima da mesa, tendo minha cabeça violentamente lançada contra o tampo duro e cheio de papeis, que voaram em todas as direções com meu pouso problemático. Meu coração parecia ter saltado para fora da boca, e eu me sentia quebrada em vários lugares, como se os pedaços de mim estivessem tentando se achar numa confusão obtusa de sensações.

A realidade me atingiu como um balde de água fria, dentre todas as outras dores físicas que eu já tinha para me preocupar.

Alguém normal já teria ido para a luz com tantos encontrões violentos e quedas brutais. Eu não era normal.

Havia mais sobre mim do que eu própria sabia.

— Ao que parece, você não tem nenhuma das informações que eu preciso — a voz de Encharpe surgiu de algum lugar, me lembrando novamente que eu não estava sozinha — O que me diz que desse jeito, infelizmente terei que dar um jeito em você. Você é uma cartada fora do baralho Eveline... você nem deveria ter nascido, se é que me entende. Não posso correr o risco de deixa-la viva.

Tentei murmurar alguma coisa. Eu queria insultá-lo com o pior nome que me viesse a cabeça, mas o sangue parecia queimar minha garganta, como se eu já tivesse gritado até perder a voz. Encharpe tirou alguma coisa prateada de dentro da camisa, alguma coisa que brilhou sob a luz ofuscada que entrava pelas frestas das venezianas fechadas da janela, e seus olhos assumiram um brilho maníaco.

Vou morrer... — foi o único pensamento claro que se passou pela minha mente, enquanto eu me sentia cada vez menos lúcida e perdida em mim mesma. Aquele era o fim.

— Suas últimas palavras? — Encharpe perguntou.

Eu forcei todo o ar de meus pulmões:

— ...Duas: seu... merda.

Encharpe não pareceu muito satisfeito com meu senso de comunicação final.

— Você é mesmo uma peste, Eveline.

Mas antes que ele pudesse enfiar seu punhal em meu peito ou em qualquer outro lugar que pudesse me descartar, os vidros da janela se quebraram com um estrondo maciço, como se houvesse uma pressão insuportável vinda de fora da sala, que até eu senti, e alguma coisa caiu da claraboia no teto, pousando no chão junto com os cacos.

E então, calor.

Uma presença aqueceu a sala, e de repente, eu não me sentia mais tão gelada.

Meus olhos se arregalaram ao reconhecer a figura nova. Eron socou o rosto surpreso e distraído de Encharpe, que também atravessou a sala, batendo na parede ainda mais violentamente do que eu havia batido segundos antes, desprendo até o ventilador dos parafusos.

— Então você finalmente resolveu dar as caras... — Eron bufou se recompondo em toda sua compleição física — eu realmente achei que você ia me fazer brincar de gata cega por muito mais tempo...

A figura que um dia havia sido o Sr. Encharpe, meu professor de geografia, se retorceu no chão, como se estivesse queimando, e então, uma gargalhada alta e bem humorada quase explodiu meus tímpanos, vinda do fundo da garganta do homem que já não tinha mais nada de meu professor de geografia. Seu rosto havia mudado, suas formas, e sua estatura. Seus olhos não eram mais escuros, mas sim de um azul gelado e profundo, e seus cabelos claros também eram mais curtos, ondulados, e sim, lisos até a altura dos ombros. Seu físico já não era o físico redondo de Encharpe, mas sim, musculoso, a pele muito clara.

Seus braços a mostra também estavam cobertos de tatuagens.

— Ora, ora, ora, irmãozinho... quanto tempo! É assim que você me recebe depois de tanto tempo? Eu me arriscaria a dizer que você deveria ser um pouco mais receptivo...

Seu riso era maníaco, e cada palavra sua parecia uma lâmina afiada, me fazendo gelar a cada sílaba. Mas os olhos raivosos de Eron mostravam que ele não estava achando graça nenhuma na situação. Foi aí que percebi algo que me fez pestanejar: seus olhos não estavam verdes, como eles normalmente eram, mas sim, dourados. Os olhos de Eron estavam pegando fogo. Todo aquele brilho que eu julgara ter visto neles por todo aquele tempo, havia se multiplicado cem vezes mais em suas pupilas, e eu realmente teria saído correndo se conseguisse sentir algo mais que todas as pontadas de dor que percorriam meu corpo.

— O que você veio fazer aqui? — Eron simplesmente perguntou.

— Não é óbvio? — o novo Encharpe perguntou enquanto tentava se levantar — Vim descarta-la. E se você tivesse um pouco mais de senso, estaria me ajudando ao invés de tentar me impedir... Você sabe que ela é um erro no esquema das coisas. — ele se levantou aos poucos, e percebi que não havia nada de parecido nos dois, a menos, é claro, o físico impressionante. Itham ficava no chinelo perto daqueles dois — Vamos lá, Eron! O que aconteceu com você? Perdeu toda a sua descência? Se juntou aos Caminhantes da Luz? Não se esqueça que o sangue que corre em suas veias ainda é o mesmo que o meu! Querendo ou não, você é um Caminhante das Trevas, maninho...

— Cale a boca! — Eron voltou a acertá-lo, o jogando novamente contra um dos armários cheios de arquivos, e chocada demais, percebi que as mãos de Eron também estavam pegando fogo.

— Você vai acabar se arrependendo disso, Eron! Você sabe que sim! Você sabe que vamos nos encontrar de novo, e você sabe que um dia, você vai acabar cedendo! Não vai poder se esconder na Luz para sempre!

Mas então Eron jogou algo em sua direção, e percebi tarde demais que eram chamas.

Oh, céus! Eu estava mesmo vendo aquilo! Eron estava botando fogo no escritório do treinador Preston!

O treinador ia ficar furioso.

Preparei meu olfato para o cheiro de pele queimando, mas o cheiro não veio. Havia apenas o cheiro peculiar de papel sendo incinerado, de sangue escorrendo e do nada sendo aspirado.

Foi então que percebi.

Eu estava caindo.

Pelo menos, era isso que eu sentia enquanto percebia que estava aos poucos perdendo os sentidos, por que minha visão estava esfumaçada, e tudo parecia estar falhando. Finalmente, eu estava desligando.

Algo muito pouco lúcido me alertou mentalmente de que Eron estava me pegando no colo e que ele estava me perguntando se eu estava bem. Eu queria dizer algo, queria contar alguma coisa, mas não medi bem minhas palavras enquanto era tragada pela lufada inconsciente do nada:

— Você está pegando fogo...

                              

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo