|5| C O I S A S Q U E F L U T U A M

    EU COMEÇARIA POR TIA PEG.

Pelo menos, era nisso que eu pensava enquanto descia as escadarias da academia junto com Ivi. E ainda era nisso que eu pensava quando meio sem querer, meus olhos deslizaram para o estacionamento, onde não demorei muito a localizar Eron, que andava em direção a Land Rover escura. E também havia alguém tentando puxar conversa com ele de uma maneira um pouco mais que evidente.

Hanna.

E claramente, ela parecia não estar tendo muito sucesso.

Tá, e depois eu é que era estranha.

Convenhamos. Hanna era a garota mais bonita da academia, porque fuinha ou não, ela era simplesmente linda. Fato indiscutível e tristemente verdadeiro. Sua única imperfeição era a aparente falta de cérebro... um que funcionasse pelo menos. Então, qual era o problema dele, no fim das contas? Um cara normal não teria muita dificuldade em sair com Hanna e lhe dar uns amassos, já que ela parecia mais do que disposta a conceder alguns, mas Eron não parecia particularmente interessado nisso enquanto retirava um molho de chaves dos bolsos, parecendo tão interessado quanto se mostrava em sala de aula. E quando menos esperei que algo fosse acontecer, ele ergueu a cabeça, e seus olhos verdes encontraram diretamente os meus, mesmo naquela distância e por cima de tantas cabeças. Uma alfinetada quente encontrou minha espinha, subindo perniciosa pela nuca. A sensação dos nervos vibrando se derramou por minha pele arrepiada. E antes mesmo que algo mais acontecesse, enganchei o braço de Ivi como uma espécie de guindaste, me virando rapidamente e desembocando para o lado dos ônibus escolares. Eu meio que parecia um guincho humano de uma hora para a outra.

— Puxa, o que foi? Qual a pressa? — ela estranhou, considerando que eu estava praticamente correndo.

E a puxando comigo.

— Ahn... nada. Pensei ter ouvido o ronco do motor do nosso ônibus.

— Tudo bem, tenho certeza que o Sr. Bonitão não teria problemas em nos dar uma carona. De novo, uh!

Eu quase tropecei, não duvidando que esfregar meu nariz no pátio fosse ser um grande show.

— Claro, com certeza...

Me forcei a concordar, mas isso só me fez forçá-la a andar mais rápido.

Tia Peg, como sempre, estava no meio da cozinha, cheia de comida por todos os lados, rastros branquicentos de farinha de trigo contornando o balcão, e Havana, como sempre, não estava em lugar nenhum. Mesmo decepcionada por não ver mamãe de novo, eu sabia que precisaria estar sozinha com tia Peg se fosse mesmo abordá-la, e percebendo que era o momento perfeito, me joguei em uma das banquetas da cozinha, a observando tirar alguma coisa do forno, com um aspecto bastante crocante e apimentado. Tia Peg mantinha a mesma concentração que um cirurgião dentista. Eu teria que ser mais esperta.

Pelo menos uma vez.

Vamos lá, você consegue.

— Tia, ahn... estou com fome...

Tá, isso não foi particularmente esperto.

Mas falar sobre comida era a melhor forma de abrir caminhos para uma conversa com ela.

— É de se imaginar, depois de um dia intenso de aula, eu espero mesmo que você chegue de estômago vazio ou no mínimo desidratada ou intoxicada querida, principalmente considerando as propriedades nada saudáveis da comida que é servida naquela cantina... com todos aqueles corantes e conservantes...  — ela pousou uma espécie de pizza de catupiri enrolada como um rocambole no balcão da pia — mas não se preocupe, querida, o lanche sairá em instantes, e logo depois, um jantar bastante satisfatório.

Eu ia ter que ser mais objetiva se quisesse mesmo chegar a algum lugar.

— Hum, tia Peg... eu estava pensando... não tenho me sentido muito bem...

Ela me olhou com atenção pela primeira vez desde que entre na cozinha.

— O que foi? Precisa de um médico? Você deveria falar com Havana, querida. Todo o dom da família de ajudar pessoas doentes passou longe e parou ela. — ela disse enquanto procurava temperos em sua prateleira de mogno lustrado.

— Eu sei, mas... não tenho estado doente. Quero dizer... tenho me sentido estranha, e... tenho tido... sonhos estranhos... — eu arrisquei, observando atentamente sua reação.

Mas se ela reagiu de alguma forma, escondeu muito bem.

— Ora, imagino que seja normal para adolescentes da sua idade. Você sabe, está apenas passando por uma fase. Nada mais que isso.

Certo. Eu sabia que não ia ser fácil, mas estava sendo mais difícil do que eu imaginara. Eu havia pensado em milhões de frases diferentes para usar com tia Peg naquele momento, qualquer sutileza mascarada que a induzisse a dizer algo que me ajudasse a compreender. Mas agora, diante dela, todas elas pareciam ridículas. Tia Peg não era exatamente alguém que se pudesse pegar em uma armadilha de palavras. E nem em qualquer outro tipo de armadilha.

Era bater de frente ou bater em retirada.

Eu ia ter que ser mais direta que isso.

Foi por isso que me levantei e me aproximei mais dela, braços cruzados e um coração disparado.

Ok... estou prestes a fazer isso. Estou legal, estou legal...

— Tia, como a senhora sabia sobre Eron?

Anéis de apreensão se alastraram pela cozinha de forma quase palpável.

Dessa vez, ela não pode esconder a expressão desconfortável. Branco tomou seu rosto, veias recheadas se sobressaltaram em suas pálpebras.

— Não repita o nome desse garoto novamente, não nesta casa.

— Tudo bem, não repetirei... basta me dizer como você o conhece, e de onde? Ele já roubou sua bolsa na rua ou algo assim?

Ele meio que parecia o tipo de garoto que faria essas coisas?

Oh, Eve....

Ela não me deu atenção de início, voltando a se concentrar em seus afazeres.

— E por que você está tão interessada?

Certo. Agora ela havia me pegado.

— Curiosidade... quero dizer, ele não parece ser o tipo de pessoa com quem a senhora se relacionaria.

Ela deu de ombros.

— Você também não...

— Bom, ele estuda comigo. Tipo, em todas as aulas. Eu não posso simplesmente ignorá-lo... eu só... não entendo como pode conhecê-lo. Ou sua repulsa sobre ele.

Tia Peg me encarou de repente, daquele jeito que ela raramente me encarava, quando precisava me dizer alguma coisa realmente séria.

— Você já sabe tudo que precisa sobre ele. Que precisa apenas ficar longe. Mediante isto, tudo estará bem.

Eu me encolhi. Odiava quando ela me olhava daquele jeito. Havia apenas verdade em seus olhos, e isso me fazia sentir impotente.

— Mas por quê? Tem coisas que a senhora não está querendo me contar mesmo sabendo sobre o que se trata, mas por quê? Por que não me diz? O-o que... tem algo acontecendo, não? Porque apenas não me conta?

Ela apenas se virou.

— Por que não é da sua conta.

Eu já estava a ponto de surtar com minha tia, pela primeira vez em toda a minha existência.

— E por que isso é da sua conta, mas não é da minha? Por que você pode saber e eu não? Você não sabe das coisas idiotas que tem acontecido na minha vida! E eu preciso pelo menos saber o que está acontecendo, mas você parece saber e mesmo assim não quer me dizer. Quer que eu me afaste das pessoas apenas porque... quer! Por que está fazendo isso comigo? Está sendo... horrorosa!

O silêncio tomou conta da cozinha por alguns instantes, e me perguntei se eu não havia dito mais coisas do que deveria. Mas para minha surpresa, percebi que eu não tinha dito nem a metade do que eu queria.

Por que tia Peg apenas recomeçou seu trabalho na cozinha.

— Apenas ignore e tudo voltará ao normal. — foi a única coisa que ela disse.

Ácido quente e formigante subiu até minha garganta, e eu não podia acreditar no que estava ouvindo.

— Você ignoraria?

Ela não respondeu, e foi aí que eu me virei e subi ás escadas furiosa, e ambas sabíamos que eu não desceria para o café, e provavelmente, nem para o jantar.

•••

  Eu estava embolada em um emaranhado desordenado de lençóis, cobertas e cabelos quando Havana entrou em meu quarto. Eu soube que era ela por que tia Peg não era do tipo que voltava atrás numa discussão.

Minha agenda estava aberta ao meu lado na cama, mas eu não me importava com isso agora. As coisas idiotas que eu escrevia não eram de particular interesse de minha mãe. Na verdade, não eram de particular interesse de ninguém.

— Eve? Está acordada? — ele sussurrou em meio às sombras fantasmagóricas de meu quarto, considerando que já deviam ser umas 21:00hrs da noite, e eu ainda não havia saído do quarto.

— Estou. — eu apenas respondi sem me mover.

Seria tão bom se eu simplesmente pudesse contar tudo para Havana. Mas Havana era uma médica, o que rapidamente dizia que ela estava do lado da ciência, e não de acontecimentos que desafiassem qualquer lei da física. Tudo que Havana seria capaz de fazer, seria me mandar para uma clínica de reabilitação para meu próprio bem.

E talvez, fosse exatamente disso que eu estivesse precisando, no fim das contas.

Senti o colchão ceder atrás de mim sob o peso de Havana, que havia acabado de se sentar.

— Ei, tudo bem? Peg disse que você não parecia muito bem. Disse que você não desceu para comer hoje.

Eu quase chiei.

— Tia Peg diz muitas coisas.

Havana acariciou meu ombro descoberto enquanto tirava um pouco do cabelo de cima de meu rosto com a outra mão. Posso ter imaginado isso, mas uma onda de calma subitamente me relaxou.

— Ora, querida. Não precisa se privar de comer apenas por que sua tia é uma chata que falastrona... — ela murmurou da maneira mais suave possível, mesmo que não fizesse ideia do quanto tia Peg podia falar de menos quando mais se precisava que ela falasse demais. — Não é saudável ficar sem comer o dia todo, e também não é saudável ficar trancafiada no quarto o dia todo... embolada deste jeito.

Meu coração se apertou. Eu sabia o que se passava pela cabeça de Havana naquele momento. Ela não havia perdido a filha no coma, mas era como se estivesse perdendo de outra forma.

— Ás vezes, sinto que estou perdendo você, Eve.

Eu me surpreendi ao ouvi-la verbalizar meus pensamentos, mesmo que fosse óbvia a forma que ela pensava conciliada à maneira como eu vinha agindo ultimamente.

Eu estava me perdendo em mim mesma, e essa era toda a coisa.

Você não entende, mãe... — a frase ficou entalada em minha garganta, por que eu não seria capaz de dizê-la agora.

Mas eu não podia deixar que Havana percebesse o estrago num âmbito total, por que doía muito mais em mim. Eu me ajeitei na cama, me sentando e me recostando na cabeceira de madeira polida. Havana ainda estava vestida com suas roupas habituais de trabalho, indumentária verde e desbotada, seus cabelos castanhos e longos escapavam do coque mal feito, aumentando ainda mais seu ar de cansaço. Círculos meio arroxeados circulavam seus olhos, marcas de expressão cortando a comissura dos lábios. E era incrível a forma como seus olhos castanhos ainda brilhavam mesmo depois de um dia pesado de corre-corre, correntes de luz âmbar enviando jorros de energia para fora.

— Não é isso, mãe, é só que... — eu encarei minhas mãos, claramente sem saber direito o que dizer. — É só que... eu tenho me sentido meio... estranha depois do acidente... parece que... as coisas se deslocaram, e eu ainda não estou conseguindo acompanhar as mudanças. É difícil perder metade da cabeça por aí e não conseguir lembrar onde.

Havana avaliou bem minhas palavras enquanto observava minha expressão.

— Você está me dizendo que não está se sentindo bem psicologicamente? Quero dizer, nós podemos tentar consultar uma psicóloga, ou...

Era isso que eu temia.

Eu não estou louca...

Eu acho.

— Não, mãe... — eu neguei com um gesto de queixo antes que ela pudesse terminar. — Não é isso... eu acho que só me sinto estranha porque parte das minhas lembranças sumiram. Simplesmente sumiram. Isso já é bem ruim. E depois, eu... — comecei, mas então minha boca se fechou, garganta seca e uma sensação áspera de perda na língua. O que eu poderia dizer? Que uma garota insuportável na escola agora ficava fazendo piadinhas sobre mim e minha família, envolvendo rituais vodu e tudo? Que coisas bizarras estavam acontecendo comigo, como levar choques de papeis de bombom e provavelmente ter desejado de maneira muito forte que algo caísse na cabeça de Hanna? Que desastres pareciam acontecer ao meu redor o tempo todo? Que sua filha havia sido se tornado uma granada? Que tia Peg me queria longe de um garoto a quem parecia conhecer, e que ela sabia muito mais do que aparentava? Mas sabia sobre o quê? Como eu poderia explicar algo que nem eu entendia?

Não havia nem como tentar sem soar louca.

E a clínica de reabilitação seria a próxima parada.

Então, tudo que fiz foi permanecer calada enquanto o restante da frase que não terminei pairava ao nosso redor, pesando sobre nossas cabeças.

Um sorriso fraco explorou seus lábios, mas ainda era um sorriso. E sua mão pequena apertou a minha mão entre os lençóis.

— Querida, você é tudo que eu tenho, sabe disso. Apenas me prometa que vai fazer algo para melhorar, que vai se esforçar mais, que não vai procurar se autodestruir. O que me mantém aqui, em pé e sempre forte, é você. Eu não teria mais motivos para continuar... não depois que seu pai...

As palavras se pareceram se entalar em sua garganta, como se fosse sua vez de não saber como continuar, e eu apertei sua mão novamente. Palavras nem sempre eram necessárias.

Havana ainda o amava.

— Eu sei mãe. Você também é tudo que eu tenho.

Ela sorriu novamente, mesmo que parecesse estar segurando as lágrimas que pendiam nos cantos de seus olhos.

— Então não desista, Eve. Ver você dessa forma apenas me deixa ainda mais destruída, a cada dia.

Havana me abraçou, me dando um beijo na testa quando a abracei de volta.

Não era sempre que Havana decidia expor sua angústia dessa forma, por isso, alguma coisa dentro de mim parecia ter se acendido. Eu não desistiria por ela. Talvez eu não devesse seguir procurando as respostas para as perguntas que tinha, mas eu me via obrigada a fazê-lo por nosso próprio bem. Se tia Peg sabia de algo que pudesse nos proteger, eu ia lutar com todas as minhas forças para descobrir o que era. Ser posta na sombra não ajudaria a ninguém.

Impelida por Havana, desci para a cozinha, deslizar algo para o estômago, mas em nenhum momento me dirigi a tia Peg ou ousei sequer olhar em sua direção. Ela sabia que eu estava fazendo jogo duro, mas eu também sabia que ela não iria ceder. Afinal de contas, ela era tia Peg, aquela que sempre tinha seus truques escondidos na manga.

O que me fez pensar em todas as coisas idiotas que Hanna havia mencionado sobre ela na sala de aula.

Pelo menos eu podia saber que ela não era macumbeira nem nada parecido, e que não havia nenhuma verdade sobre as galinhas sacrificadas também. Mas o que poderia incitar a família de Hanna inferir acusações terríveis como estas? O que havia sobre tia Peg que eu deixara escapar por tantos anos? Era preciso perder a memória, quase morrer, ou um garoto estranho aparecer me dando carona para que eu finalmente abrisse os olhos? Estava claro que ela não estava nada contente com a atual situação, de eu de repente perceber que havia algo ali que nunca notei antes, mas o que podia ser tão ruim assim?

Se era uma guerra que ela queria, ela teria uma.

E eu queria respostas, e teria algumas.

Quando comi o suficiente, pelo menos para satisfazer a preocupação de Havana, já eram quase onze horas da noite, e finalmente pude dar a desculpa de tema de casa para poder subir novamente.

A verdade é que eu não queria mais ficar na cozinha.

A verdade é que eu queria explodir. E fazer alguns muitos estragos ao meu redor, uma sensação pulsante queimando em mim e enlouquecendo minha cabeça.

Apenas me joguei novamente na cama, me embolando no que encontrava em cima dela, e implorando para que o sono viesse antes que a sensação de estar rompendo me enlouquecesse.

O ar estava borrado com alguma coisa salpicada de cinza. Eu não podia saber o que era, porque o vento chicoteava meus cabelos para frente dos olhos. Meus pés estavam soterrados em alguma coisa úmida e gelada, e tive que tirar o cabelo do rosto antes de olhar para baixo e perceber que eu estava de pé no chão. Uma base também fria de cimento estava enterrada em meio à terra fria e molhada, onde letras se embaraçavam, se enroscando umas nas outras e não me permitindo ver o que estava escrito. Uma névoa grudenta se levantava do chão, se arrastando por entre as lápides enquanto eu recuava zonza, abominando rapidamente o cheiro de flores e velas queimadas.

Um cemitério.

O que eu estava fazendo descalça em um cemitério? E por que eu estava sem blusa num lugar tão frio?

Havia crostas de gelo branco se aderindo em todas as lápides pelas quais meus olhos corriam, o vento uivava em todas as direções numa ressonância fúnebre e agourenta, levando pedaços de névoa branca consigo. Folhas secas me acertavam enquanto eram tragadas pelo vento, e eu logo soube que a agitação se devia a alguma coisa brilhante que se movia do outro lado do cemitério. Tochas. Eram como um clarão em meio à noite escura. E o clarão desembocava rapidamente em minha direção, aniquilando qualquer distância com rapidez.

Algo me dizia que aquilo não estava certo. Algo me dizia que aquelas pessoas estavam atrás de mim, e brandiam o que pareciam ser armas afiadas, e que aquilo acabaria mal.

”Você deve correr!”, uma voz soou no fundo de minha mente, em forma de sussurro. Eu não sabia como aquilo era possível, mas eu podia saber que aquela voz não era a minha, e também não eram meus pensamentos.

“Corra, Eve, antes que eles te peguem! Corra!”.

Mas eles já estavam perto demais, e eu estava congelada em mim mesma, pavor e frio se enroscando em meus membros e enviando lascas afiadas de medo por minhas veias.

Enquanto recuava de forma desesperada, eu tentava identificar os rostos que seguravam as tochas, mas era impossível, por que um capuz escuro cobria a cabeça de todas as pessoas que pareciam tão empenhadas em me alcançar, tornando impossível saber o que eram, ou o que poderiam ser.

Num único segundo de realidade, a pessoa mais a frente do grupo levantou uma grande lâmina reluzente em minha direção, mas antes que eu pudesse pensar em correr, como me mandava a voz, uma pequena ponta do capuz voou, mostrando um brilho dourado no único olho que a luz da lua revelou, e então, a lâmina desceu em minha direção, vindo furiosa sobre mim.

Terror me engoliu.

Como se tivesse acordado de repente, meu braço se ergueu enquanto eu recuava, e com uma pontada dolorosa de dor, senti o fio cortando a palma de minha mão, rasgando minha pele num corte profundo e agonizante. Um grito assombrado vazou para fora, arrebentando minha garganta, e girando sobre os calcanhares, corri. Eu não sabia por que ou de quê estava fugindo, apenas sabia que tinha que ganhar o máximo de distância que conseguisse. Tinha de sobreviver. Uma mata densa se derramou à frente, alta e densa, porém sem vida, circundando toda a estrutura circular do cemitério, e me embrenhei nela desesperada, sentindo gravetos afiados se enroscando em minhas roupas, furando meus braços e tentando me impedir de conseguir. Mas um pavor mudo havia se entalado em meu peito, me impelindo a correr, como se de repente, eu soubesse do que estava fugindo. A luta desesperada pela vida tomando seu preço, luzes de agonia muda vertendo em meus olhos, o mundo se tornando oblíquo e infernalmente opaco de repente.

Mas então meus passos vacilaram quando percebi que o solo abaixo de mim não estava mais grudento, apenas gelado como a morte.

Arfei ao olhar ao meu redor e perceber que eu estava em cima de algo branco e úmido, um lago congelado.

Mas já era tarde demais.

Antes mesmo que eu pudesse me dar conta do que estava acontecendo, o gelo se partiu em um milhão de pedaços, a água gelada me engolindo faminta, me fazendo reter o ar nos pulmões, sentindo a temperatura fria entrando em meu corpo como se fossem pequenas agulhas insistentemente dolorosas. Tentei gritar, mas então minha boca se encheu de água, e fumaça tomou conta de todos os meus sentidos.

Oxigênio!

Dessa vez acordei de um salto, sentindo a respiração ainda presa nos pulmões. Inspirei todo o oxigênio que conseguia, inflando meus pulmões a ponto de quase estourá-los com a pressão. Algo gelado subia por meus braços, como garras, chegando até meu rosto num espasmo horrível de frio e se enterrando em meus olhos torpes.

Aquilo era o que mais deveria se parecer com uma hipotermia.

Mas não era isso que estava me preocupando, e sim o líquido quente que parecia estar empapando aos poucos minha coberta.

Levantei da cama aos tombos, enjoada e sentindo que ia despejar a janta a qualquer momento, ignorando o frio que parecia ter congelado todas os meus ossos. Me joguei para dentro do banheiro, acendendo as luzes e enfiando minha mão esquerda em baixo da torneira.

Com os olhos arregalados, percebi que estava ali.

O corte na minha mão estava ali, como se eu tivesse realmente tivesse estado .

Droga. Eu já havia ouvido falar sobre sonhos muito reais, mas aquilo era simplesmente ridículo. Como tia Peg esperava que eu ignorasse uma coisa daquelas? E se eu tivesse um sonho onde eu morria e acordasse... bem, morta? Não fazia sentido.

Como eu podia ter estado lá sem realmente estar lá?

Com a mão direita, lavei o rosto, esperando que aquela sensação horrível passasse. Mas o fato é que esquisitice não se curava com água no rosto, tão pouco com olhadas assustadas no reflexo pálido no espelho. Eu tinha que resolver aquilo de uma vez por todas, e mesmo que a ideia me apavorasse mais do qualquer coisa, eu precisava fazer o que tinha de ser feito naquele mesmo momento. E infelizmente, eu só tinha uma ideia do que fazer.

Voltar no lugar onde tudo começou.

Estava apavorada demais para voltar para a cama. O horror cru e feroz estalava em meu peito. Um monstro negro rugia nas dimensões mais esquecidas de minha mente, sensações sem nenhuma base sólida ou racional.

Já eram quase 03:00hrs da madrugada, mas quem é que importava? Quando você descobre que pode morrer enquanto dorme, você meio que começa a perder o sentido das coisas sensatas. Como agora.

Depois de enrolar a mão em um curativo apertado, voltei para o quarto, trocando o pijama por uma roupa mais quente, e me enfiando dentro de um moletom do time de basquete de Itham que estava na minha casa desde o verão passado, e que eu não tinha planos de devolver. Depois, procurei por uma lanterna em minha escrivaninha, e abri a janela do quarto, porque não poderia exatamente sair pela cozinha sem ser notada. Eu já havia pulado aquela janela outras vezes, quando fugia de casa para dormir na casa e Ivi, que ficava bem ao lado da minha.

Lembrar disso me fez observar a janela de seu quarto. As luzes estavam apagadas, sinal de que ela dormia. A ideia de acordá-la chegou até a passar por minha cabeça, mas eu sabia que seria idiota. Ainda mais do que já estava sendo, ao menos. Ivi jamais me acompanharia ou mesmo me permitiria ir ou fazer o que eu estava fazendo.

E eu já havia tido ideias idiotas demais para apenas uma noite só.

Pulei a janela, caindo de leve no telhado da cozinha, e tomando o cuidado de engatinhar da maneira mais silenciosa possível. O vento frio acertou meu rosto, me fazendo lembrar da sensação angustiante de cair dentro do lago de gelo. Pensar nisso me fez apressar os passos, até chegar na veirada do telhado. Me dependurei na calha, tateando com os pés até achar um lugar seguro na grade da janela da cozinha em que me firmar. Quando pulei no jardim, caí de sentada, rolando pela grama e aguardando alguns segundos em silêncio, até ter certeza de que não havia acordado ninguém. Silenciosamente agradecia por Hank, o cachorro de Ivi, dormir mais que uma pedra.

Passei por entre os arbustos que separavam as laterais do jardim com a frente da casa, caminhando ainda levemente pelos ladrilhos coloridos. Também era muito conveniente que o portão torto não rangesse, exatamente por estar com suas dobradiças frouxas há tanto tempo. Só quando estava o suficientemente longe de casa, pude respirar fundo. Não que eu não estivesse com medo de sair feito uma idiota caminhando sozinha pela cidade àquelas horas da noite, mas eu simplesmente não podia dormir de novo. Não depois daquilo.

Eu não precisava da lanterna enquanto atravessava os quarteirões que me separavam do parque, mas a mantinha apertada entre os dedos enquanto me dirigia a Inglewood Ave, como se ela fosse uma arma. Eu não sabia direito o que estava fazendo, só sabia que precisava estar lá, e não me importava que tivesse sido a pior ideia que eu já tivesse tido na vida. De repente, tateei meus bolsos, entrando em pânico quando não senti o volume reconfortante do celular.

Droga. Apesar de tudo, eu ainda não era tão esperta quando julgava ser.

Apertei mais a lanterna entre as mãos enquanto apenas caminhava, engolindo em seco cada vez que um carro diferente passava por mim. Eu não era a única pessoa na rua àquela hora. Hawthorne era uma cidade agitada demais para estar deserta até mesmo de madrugada. De certa forma, isso me confortou um pouco, me fazendo pensar que eu não estava totalmente sozinha.

O ar foi realmente começando a pesar e as ruas foram ficando desertas apenas a medida que eu me aproximava do beco largo que levava a uma das maiores construções da cidade, mesmo que agora destruída e abandonada. Meu coração disparou um pouco enquanto eu sacava a lanterna, atravessando o beco vazio e me aproximando dos enormes portões em forma de V virado do Vienna, o famoso Coisas que Flutuam.

Me agachei para poder passar por baixo da uma das fitas zebradas que cercavam o local. Era como estar invadindo o local de um crime. Não que fosse muito diferente disso.

O enorme portão estava quase tão torto como o portão de casa, o que facilitou minha entrada por dentro das barras de ferro que o sustentavam, sem que surgisse a necessidade de eu precisar pular por cima de algo para conseguir entrar. Foi aí que meu coração realmente disparou.

Ok. Eu estava oficialmente dentro.

Engoli em seco enquanto erguia a lanterna. Chocada, percebi que algumas das lâmpadas restantes permaneciam acesas, piscando em curtos intervalos de tempo. Confusa, me perguntei por quê. O parque não estava mais funcionasse. Sua rede elétrica não deveria ter sido cortada?

Empunhar a lanterna me dava uma segurança a mais de segurança, mesmo que fosse apenas uma sensação claramente falsa.

Passei direto pela bilheteria vazia, pulando a roleta e tentando me manter o mais atenta possível. Céus... Aquilo havia virado um verdadeiro parque do terror. Talvez, a academia devesse organizar o próximo baile de Halowheen ali, sem precisar gastar nada com a decoração.

Meus tênis esmagaram cacos de vidro enquanto eu caminhava, e havia pedaços de brinquedos espalhados pelo chão. Aquilo só podia ter sido causado por um terremoto. Qual outra explicação para tanta bagunça num único lugar? Também haviam bilhetes rasgados jogados pelo chão, copos plásticos faltando a metade, pedaços de canudos de algodão, chepas de cigarro, caixinhas de chicletes, sacolas plásticas rasgadas, litros de coca cola vazios e até alguns CDs completamente cobertos de poeira e em pedaços.

O silêncio pairava tão profundamente, que eu podia ouvir a respiração saindo e entrando em meus pulmões. Apenas uma brisa mansa balançava meus cabelos para os lugares errados.

O lugar estava completamente calmo.

Então por que eu estava tão apavorada?

Por que foi aqui que eu quase morri.

Recomecei a andar, tentando me lembrar para que lado exatamente o túnel do terror havia estado uma vez, mas eu não tinha estado ali por tempo suficiente da última vez para me lembrar tão facilmente. O parque era grande demais, e meu pavor algumas maior.

Tentei usar a roda gigante tombada de lado como um ponto de referência no meio de tantos escombros, mas simplesmente não havia como saber. E quando eu encontrasse os restos do túnel, o que exatamente eu faria? Suspirei derrotada. Eu nem mesmo sabia o que estava fazendo ali às três horas da madrugada, parada ao lado do carrossel e tentando me achar em meio a um parque destruído.

A alguns metros de mim, estava a entrada para o Castelo Encantado da Cinderela. Parecia a única construção ainda em pé, a rotunda da torre principal se erguendo imponente contra os céus escuros.

Um arrepio correu por meus braços quando visualizei a decadência em que ele se encontrava. A carruagem na frente do castelo estava tombada para o lado, recostada no muro que cercava o pequeno lago em frente ao castelo, e uma boneca da Cinderela estava com metade do corpo para fora da janela, com a cabeça quase dentro do lago. Algo em tudo aquilo lembrava a morte da princesa Diana. E foi totalmente inquietante. Imagens do dia interior tomaram minha mente, as cortinas balançando na torre quando ousei olhar para cima, na oportunidade, com Ivi, e o medo floresceu excruciante pelo peito.

Minha boca se secou, e impedi que meu pescoço se inclinasse, me forçando a olhar para cima novamente. Verificar aquela impressão estava totalmente fora de questão. Suor gelado escorria por minha espinha.

Mas que tipo de merda eu tinha na cabeça afinal de contas? Vir sozinha a um parque como o Vienna não era exatamente uma coisa que uma pessoa em sã consciência faria. O que diabos eu esperava encontrar ali, além de possíveis ladrões em potencial? Claramente se parecia com um lugar onde fugitivos procurariam abrigo, já que ninguém era idiota o suficiente a ponto de entrar ali.

Até eu passar pelos portões.

Um ruído de pedras sendo esmagadas a minha direita me sobressaltou, me fazendo apertar mais a lanterna entre os dedos, e logo, as palavras de Ivi me acertaram como um soco no estômago. “Você acha que existem fantasmas ai?”.

Pavor frio desceu por minha espinha ao me dar conta do tamanho da idiotice que eu havia feito.

Corra. Apenas corra e não olhe para trás!

Mas meus joelhos haviam travado no lugar, e meus pés pareciam colados ao chão enquanto o pânico tomava conta de todos os meus sentidos, porque eu já me encontrava em outro estado da realidade do medo, sabendo, com todas as minhas células, que não estava sozinha no parque.

Quando contei mentalmente até três para sair correndo, girei sobre os calcanhares, mas parei repentinamente tão rápido quanto havia me virado, meus tênis derrapando nas pedras soltas e quase me enviando ao chão numa derrapagem impressionante. Havia uma sombra perto do guichê do carrossel, escondida por uma das pilastras que sustentavam a construção circular. Meu coração disparou, como se fosse saltar pela boca ou simplesmente trancar a passagem de ar, sobretudo quando a sombra saiu da escuridão, se revelando na luz fraca que saía das lâmpadas grudadas nos cavalos.

— O que você está fazendo aqui?

•••

                                                                                                      

Sibilei enquanto piscava, sentindo minhas pálpebras batendo umas nas outras enquanto eu recuava, surpresa e amedrontada demais para fazer qualquer outra coisa além de tentar subir o queixo caído.

Isso, porque não havia como não reconhecer aquela voz e aquelas tatuagens. E porque também não havia como discordar do fato de que talvez eu preferisse lidar com algum assassino em potencial.

Eron estava parado a alguns metros de mim, e dessa vez, não havia nada de zombeteiro em sua expressão.

Tentei encontrar minha voz enquanto tentava entender o que estava acontecendo ali.

— Como assim? O que você está fazendo aqui??? — foi a única coisa que consegui soltar, considerando o tanto que minhas pernas tremiam e meus joelhos se recusavam a cooperar em me enviar para longe.

Ele levantou uma sobrancelha, seus olhos se semicerrando com os de um gato.

— Eu acho que perguntei primeiro.

A única coisa que consegui fazer em resposta foi engolir em seco, principalmente quando ele começou a se aproximar, aniquilando a sagrada distância entre nós com passadas largas e firmes.

— Me responda, Eveline. O que está fazendo num lugar como esse há essas horas da madruga? Tem a mínima ideia do que está fazendo?

Oh, eu tinha bastante ideia. Exatamente naquele momento.

Pena que o momento em si tenha sido meio tardio.

Automaticamente passei a recuar, porque havia uma ameaça não declarada por trás de seus olhos verdes, e a forma como ele estava encurtando a distância entre nós já começava a me causar coceiras, me fazendo segurar a lanterna à frente do corpo com força, como se ela fosse me proteger. Ou como se ele fosse me dar tempo de usá-la se os eventos assim o exigissem.

Mas então, alguma coisa caiu atrás de mim, e quando girei sobre os calcanhares, meu queixo também caiu, inexplicavelmente atraído pela força gravitacional de repente.

Na verdade, nem tão inexplicavelmente assim.

Haviam duas garotas paradas atrás de mim, a uma distância segura. Uma era alta, e seus cabelos vermelhos eram tão bagunçados que chegavam a balançar por conta própria enquanto ela me observava, olhos estreitos como os de um felino, e suas roupas eram escuras, de couro, a camiseta com decote em forma de V deixava ver uma enorme tatuagem de um redemoinho em seu peito, entrelaçado a um raio. A segunda garota era ainda mais impressionante, mesmo que parecesse ser uma versão inversa da primeira. Tudo nela era branco. Desde às roupas, até seu cabelo bem comportado e liso que descia até quase os quadris. Sua pele também era pálida, e a única cor que havia nela eram os olhos, azuis acinzentados, que mais pareciam dois blocos de gelo. Seus cílios também eram brancos, e única tatuagem escura em sua pele também se encontrava um pouco abaixo do pescoço, um V virado contornado por espirais.

E havia uma lâmina branca presa à bainha de sua calça, assim como havia uma espécie de lâmina afiada presa numa bainha que devia estar por dentro do cano da bota de salto alto da garota dos cabelos vermelhos.

Oh... lindas garotas e lâminas. E tatuagens. Aquilo nem de longe poderia ser bom. Talvez aquele fosse um ótimo momento para dizer a alguém que eu estava certa sobre Eron e uma gangue. Mas eu teria sorte se eles apenas não roubassem meus órgãos ou algo parecido, por hora.

— Quem é ela? — a primeira garota perguntou, obviamente se referindo a mim.

Ambas eram absurdamente bonitas, e poderiam até ser consideradas delicadas, se não fosse algo estranho que parecia fluir do corpo de ambas, parecendo se chocar com o ar nosso redor. Era como se elas pudessem por tudo o que restara do parque abaixo com apenas um sopro.

— Ninguém. — Eron se apressou em responder, parecendo estar odiando a presença das duas. — É apenas uma das alunas da academia.

Foi a primeira vez que ouvi um cara rosnar, decidindo se deveria me ofender pela parte de ter me chamado de “ninguém”.

A segunda garota, dos cabelos brancos, não demonstrava expressão nenhuma, apenas me lançou uma rápida olhada, analisando meu nível de ameaça, talvez, mas obviamente não encontrando nada que a preocupasse.

— E o que ela está fazendo aqui? — ela simplesmente perguntou, e sua voz parecia ser tão gelada quanto seu olhar.

Eron pareceu rosnar por alguns instantes. De novo.

O medo meio que duplicou.

— Era o que eu estava tentando descobrir. Obrigado por nos interromper. Agora, será que já podem ir?

— Isso não é brincadeira, Eron. — a garota de cabelos brancos falou, no mesmo tom de antes, mas havia algo em sua voz que ainda lhe deixava um tanto sem expressão — Arena não vai gostar nada disso. Pessoas rondando o Parque.

Eron bufou, obviamente irritado.

— E quem é que se importa com o que ela acha ou deixa de achar? — ele perguntou enquanto fingia pensar por alguns instantes — deixe-me ver... eu com certeza não.

A garota dos cabelos brancos apenas deu um longo suspiro, enquanto chacoalhava a cabeça.

— Eu não espero menos que isso, apenas impeça seus amigos de passearam por aqui como se o Parque fosse uma Casa de Exposições. Já temos problemas o suficiente por enquanto.

Eron rolou os olhos verdes.

— Por que você não vai procurar algo de interessante para fazer? Pra variar um pouco?

Mas a garota de cabelos vermelhos não estava tão disposta a sair dali, porque ainda me olhava com curiosidade.

— Esperem. Talvez devêssemos levá-la para Arena...

— Isso não vai ser necessário — Eron a cortou irritado, com um tom tão cortante quanto lâmina, e agora sim havia uma ameaça especial em seus olhos. — Ninguém vai levá-la a Arena. Venha, Eveline, eu vou te levar para casa. — ele me puxou pelo pulso antes que eu pudesse prever o movimento, e algo terrivelmente quente balançou minhas estruturas.

E então a manga de meu moletom subiu, revelando a única cicatriz que eu sempre fazia questão de esconder. Os olhos de Eron logo deslizaram por meu pulso, e por uma fração de segundos, seus eles pareceram se arregalar, enquanto uma maré de reações se passava por seu rosto.

— Mas que merda! — ele vociferou largando o meu pulso como se eu tivesse lhe dado um choque, e depois me encarando surpreso com seus pavorosos olhos verdes. — Por que você não me contou sobre isso antes?

Eu estava confusa demais para formular alguma frase coerente.

— O-o quê? Do que você falando? — eu gaguejei, no mesmo tempo em que a garota de branco chegou como o sopro do vento ao meu lado, querendo saber sobre a mesma coisa.

Eron parecia estar surpreso demais, parecendo se decidir internamente se contava ou não, fosse lá o que fosse que ele tivesse para contar.

— Ela foi marcada.

Meu cenho se enrugou, e quando eu finalmente me decidi gritar a plenos pulmões, exigindo uma explicação e por estar bastante apavorada com a situação, a garota de branco tocou meu pulso, erguendo a manga de meu moletom com um gesto suave e delicado ,e algo na forma como Eron dissera “marcada”, sugeria que aquilo não era nada bom. Mas o que me fez calar a boca enquanto ela analisava minha cicatriz, foi o toque frio de seus dedos brancos. Era como se ela estivesse encostando cubos de gelo seco em minha pele, completamente diferente da sensação quente do toque de Eron.

— Você tem razão. E não é uma marca nada comum. Ela foi marcada com uma balança.

A garota dos cabelos vermelhos também logo se aproximou, claramente surpresa, tentando ver por cima do ombro da garota de branco.

— Não pode ser. Ela é terrena! Isso é simplesmente impossível! Como ela pode ter resistido a uma marca dessas? — a garota dos cabelos vermelhos me encarou curiosa, e quando seus olhos desceram em mim meus nervos vibraram — Como você conseguiu isso e continuou com uma cabeça perfeitamente intacta em cima do pescoço?

Mesmo chocada, percebi que eu não poderia fazer outra coisa se não responder.

Ou tentar.

— Ah, eu não sei bem... eu meio que, quero dizer, aconteceu depois do acidente. E-essa foi a única cicatriz que não pode se curar... eu acordei no hospital e... não me recordo como aconteceu... — me perguntei se eu estava falando coisa com coisa, principalmente quando a garota me olhou como se eu tivesse acabado de cair de bunda do céu.

— Do que ela está falando? — ela se dirigiu a Eron, confusa, que custou um pouco a responder, mas acabou cedendo quando percebeu que todas as atenções se voltaram para ele, inclusive a minha.

Vamos lá, faça um trabalho melhor que o meu. O que houve comigo, Eron?

— Ela estava aqui na noite do desastre. Ela perdeu a consciência. — ele apenas resumiu, e fiquei grata por ele não mencionar a parte de eu ter perdido parte da memória, mesmo sem entender por que ele resolveu omitir parte da experiência de quase-morte. Ou morte quase-vida.

O silêncio predominou por alguns instantes, enquanto todos pareciam  tentar digerir as informações, inclusive eu. Pavor mórbido e pesado escorregava por minha garganta, e eu não conseguia entender como ainda não havia corrido. Quem sabe o fato de estar cercada por traficantes de crack tivesse algo haver com isso.

— Bem... seja como for, parece que encontramos algo realmente interessante aqui. — a garota dos cabelos brancos e dedos gelados concluiu enquanto me devolvia meu pulso, que recebei com satisfação — talvez fosse realmente inteligente levá-la até Arena e descobrir o que isso tudo significa.

Mas antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, e me surpreendendo, Eron me puxou para trás dele, e eu cedi como uma bonequinha de pano, entendendo de repente o significado da expressão “parede de músculos”, porque ele meio eu virou uma.

— Vocês não vão levá-la a lugar nenhum. Ela não tem nada ver com isso, é apenas uma terrena.

Considerei se eu deveria me ofender com seu apenas.

A garota dos cabelos vermelhos deu um passo a frente.

— Mas...

— Sem ‘mas’ Arbo. E você também Dublemore. Eu vou levá-la para casa e vocês duas vão esquecer do que aconteceu aqui. Simples assim. Agora, se me dão licença... — Eron se virou, pegando meu braço abruptamente e me forçando a acompanhar seus passos. Eu ainda estava chocada demais para resistir, e algo me dizia que eu não conseguiria, mesmo se quisesse. Tentar empurrar Eron para longe deveria ser o mesmo que tentar empurrar uma parede de concreto. Só que uma parede quente. De músculos.

Quando me recuperei do choque inicial, e percebi que já estávamos a uma distância segura o suficiente de Arbo e Dublemore, tentei me recompor, piscando enquanto tentava pôr meus pensamentos em ordem, mas eu não conseguiria fazer isso sem usar de todo meu dom de tagarelar.

— O que, exatamente, acabou de acontecer aqui? — eu perguntei, mas não tive nenhuma resposta, o que me deixou ainda mais nervosa e desorientada do que eu já estava — Eron, você vai me responder ou não? Quem eram aquelas garotas? O que é uma Terrena? E quem era Arena? É a líder da gangue? As garotas estão tentando me recrutar para ser alguma traficante de crack também? — as perguntas se embolavam em minha cabeça, como um novelo de lã mal enrolado. Eu não conseguia achar as pontas, eu havia perdido o fio da meada. E estava sendo mais idiota que de costume. Bem feito. Quem mandava ele ser tão... tão... — E que maldita história é essa sobre marcas e balanças?  É algum código que vocês tem? Você vai me responder ou não? Por que não deixou que eu falasse com Arena?

Então ele surtou, e parando onde estava, ele intensificou o aperto dos dedos em meu braço, mudando de direção e me arrastando para as sombras do parque, onde me jogou contra uma das paredes frias da bilheteria, a escuridão nos engolindo rapidamente. Minha cabeça meio que se chocou contra a parede, me fazendo calar a boca.

Certo. Eu merecia aquilo.

Antes que eu pudesse me recompor, ele já havia me encurralado, firmando as mãos na parede atrás de mim, uma de cada lado de minha cabeça, e meu coração deu uma cambalhota dentro do peito, ameaçando se entalar em minha garganta.

O calor que irradiava de sua pele chegava até mim, me mantendo quente enquanto seus olhos verdes procuravam os meus em meio a escuridão e não havia nada de brincalhão neles, o que me fez permanecer de boca calada. Este Eron me parecia mais maldoso e assassino do que o Eron que eu havia conhecido antes. E inferno se não parecia ainda mais atraente. O esforço sobre humano que fiz para manter meus olhos longe de seus lábios me fizeram enxergar vermelho.

Ou quase incitar um grave caso de miopia.

— Escute aqui, Eveline. Foi um erro ter vindo até aqui esta noite. Tudo isso não tem nada a ver com você, e você não devia estar querendo entrar em nada disso se soubesse o que significaria. — ele sussurrou próximo a mim, sua respiração fazendo cócegas na pele de meu rosto e enviando calafrios por minha espinha. Tentei ignorar a forma como meu coração se jogava contra as costelas, enquanto tudo que eu conseguia fazer era sustentar seu olhar, que estava muito, muito irritado no momento — Não me faça mais perguntas. Apenas basta para você saber que eu não sou... o que você acha que eu sou.

Eu engoli em seco.

— Eu acho que você é maluco. Ou algum tipo de traficante. Será que estou mesmo errada?

Ele avaliou minha expressão, se aproximando mais para selar sua afirmação de maneira mais convincente. Não tive como dizer que ele não precisava fazer aquilo. Já estava sendo suficientemente claro e já estava me deixando o suficientemente tonta sem que precisasse se aproximar mais.

— Acredite, Eveline. Você não vai querer descobrir.

Ergui o queixo em tom desafiador, me aproximando dele também, e tentando demonstrar uma coragem absurda que eu amplamente não possuía.

— Bem, pois deixe-me dizer-lhe algo: eu vou descobrir. Esteja bem ciente disso.

Meu peito começou a sofrer espasmos quando percebi que sua atenção foi direcionada à minha boca, e novamente minhas costas encontraram a parede fria atrás de mim, produzindo um barulho oco, e o brilho verde de seus olhos pareceu estar se derretendo de uma forma assustadora.

— Você não faz ideia do tamanho da encrenca em que está se metendo, garota. Dizem que quem brinca com o fogo, sempre acaba se queimando... — sua voz não era mais que um sussurro rouco e trepidante, e meu coração pareceu estar batendo em algum lugar próximo aos ouvidos. Havia algo de assustador sobre estar tão perto de Eron, porque era como se algo estivesse me sugando para perto de modo irresistivelmente tentador, a ponto de me sufocar em mim mesma enquanto eu tentava resistir. Ele também estava começando a respirar com dificuldade enquanto seus olhos desciam quentes em mim, parecendo ter enormes e significantes problemas em se mover para longe. — Vamos, está ficando tarde. — ele rapidamente se afastou, e eu pendi para frente, como se o oxigênio tivesse sido arrancado de mim de forma abrupta.

Firmei as mãos sobre os joelhos, deixando cair a lanterna e tentando me recompor, tentando entender que maldição havia acontecido agora.

E eu queria acreditar que havia apenas imaginado o brilho dourado que havia tomado seus olhos geralmente verdes antes que ele se afastasse altamente incomodado.

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