|4| D E C A B E Ç A P A R A B A I X O

   ACORDEI COM AS BATIDAS INSISTENTES TAMBORILANDO em meus ouvidos.

Abri os olhos de vagar, tentando me lembrar de onde eu estava. A sala estava mais escura, apesar das luzes que saíam da tela da TV, e eu ainda estava sozinha em casa. Procurei o relógio de cuco na parede, enrugando a testa. Já havia passado das 3hrs, e tia Peg já devia estar em casa se planejara mesmo chegar antes do ônibus escolar.

As batidas soaram insistentes de novo, e demorei um pouco a perceber que elas vinham da porta. Estava frio, a temperatura rastejando nos graus negativos, o que dizia que havia parado de chover a muito pouco tempo.

Ainda coçando os olhos pesados, me levantei, cruzando a cozinha vazia e silenciosa e tropeçando na minha mochila esquecida no chão.

Raios.

Liguei as luzes antes de atender a porta. As nuvens deviam estar tão carregadas, que faziam o céu ter um aspecto escuro demais para as horas que ainda eram.

Abri a porta sem a menor vontade de trabalhar os músculos, me deparando com uma Ivi molhada e muito, muito irritada do outro lado.

— Começa a contar!

Ivi quase havia enfiado o indicador gelado em meu nariz, e seu olhar de acusação varreu meu rosto antes que eu pudesse ter algum tipo de reação, considerando que eu ainda estava no meio do processo de acordar e tentar lembrar meu nome.

— Ivi? Do que você está falando? De onde você está surgiu?

Ela me olhou como se eu tivesse acabado de arrotar o alfabeto.

— Heloooou? Acorde! Estou vindo da academia, aquela escola que você deixou hoje pela tarde... — ela entrou porta adentro, me empurrando para o lado enquanto invadia minha cozinha como uma versão mais laranjada do furacão Catrina. — Então quer dizer que você e o Sr. Sexy simplesmente somem depois da cabeça de Hanna ser atingida e você ainda espera que eu nunca vá te perguntar o que aconteceu? Realmente, você não se parece com alguém que me conhece desde os dois anos de idade...

Ela me puxou para as banquetas da cozinha e me fez sentar de frente pra ela.

— Anda, me conta o que aconteceu?

— Ivi, não aconteceu nada... — expliquei ainda tentando me livrar do torpor do sono — Eu só... estava vindo a pé para casa... Você me conhece, eu não conseguiria ficar lá depois do que aconteceu... quero dizer, não depois de tudo que Hanna disse.

Ivi havia me pegado pelos ombros antes que eu conseguisse realmente terminar ou prever o movimento com atecedência.

— Você é maluca ou o quê, sua demente? Você sabe o quanto aquela rota é perigosa? — ela me chacoalhava — Você poderia...

— Eu sei, foi por isso que ele me deu uma carona. — a interrompi, e sua boca se abriu escancarada.

— Ele quem?

— Eron. Ele me alcançou e me ofereceu carona. Eu não ia aceitar, juro que não ia, mas algo me dizia que ele simplesmente me jogaria no porta malas se eu não aceitasse, então...

— Espera aí! — Ivi me interrompeu enquanto tentava organizar suas ideias — Quer dizer que o Sr. Gostosão te alcançou e te trouxe até em casa? Tipo, totalmente deu uma de Salvador Romântico? Foi mesmo isso ou eu entendi errado?

Rolei os olhos.

— Ivi, será que dá pra parar de chamar ele de gostosão? Quero dizer, o cara é de arrepiar! ― Bem, sim... e MUITO ― Não é só por que ele me trouxe até em casa que ele é confiável... — eu queria explicar para ela que Eron não era simplesmente mais um cara bonito que aparecia na escola, havia algo muito pior por trás de daquilo, mas como? Não havia um modo de fazê-lo sem parecer esquizofrênica ou simplesmente idiota.

— Atá, lá vem você com essa história de novo...

Suspirei derrotada enquanto escondia o rosto com as mãos.

— Ivi, você não entende...

— O que eu não entendo é o seguinte: todas as meninas da escola estão babando por ele, menos você, todas as meninas da escola babam por Itham, menos você. Qual é o seu problema, Eve? Você por acaso gosta de meninas?

O bico de meu pé encontrou sua canela.

— Não seja otária. Itham é meu melhor amigo. A gente não baba por um cara que a gente considera um irmão Ivi... tente se imaginar beijando Itham, por exemplo.

Ela não conseguiu conter uma careta.

— Cale a boca, Eve, isso é nojento!

Então eu fiz aquela cara de quem diz viu só?, mas sabia que não venceria a discussão tão facilmente. Afinal de contas, era com Ivi que eu estava debatendo...

— Bom, o Sr. Pirata Sexy não é seu amigo.

— Mesmo assim, ele é... demais. ― “Namorável demais, lindo demais, endeusado demais... enfim... encrencas demais...” ― Acredite em mim, Ivi, pelo menos uma vez. Se tem um cara nessa vida que nós duas temos que manter absoluta distância, esse cara é ele.

Ivi considerou por um momento, enquanto avaliava meu estado de desespero em tentar lhe explicar isso.

— Você desconfia de alguma coisa, não é?

Na verdade eu tinha era quase certeza sobre algo.

— Eu não sei Ivi, mas com certeza não quero descobrir. Algo de... errado não está certo.

Ela deu um longo suspiro enquanto dava de ombros, mas não sem antes me enviar aquele olhar que claramente dizia “Oh, você é tããããooo

idiota”.

— Bem, então ok.

— E como está Hanna? — perguntei engolindo em seco, porque aquela era a parte mais perturbadora da história.

Os olhos de Ivi se acenderam de raiva.

— Aquela vaca da Hanniela DeVil! Quem ela acha que é? Se eu não estivesse na sala de aula, eu juro que teria dado um pontapé ligeiramente eficiente naquela bunda ossuda! — ela cuspiu, e eu podia ter certeza absoluta de que não duvidava de Ivi, mas logo sua expressão se abriu, como o sol aparecendo por de trás das nuvens _laranjadas_ em um dia de tempestade — mas você viu aquela luminária caindo na cabeça dela? Eu mesma não teria feito melhor, caso pudesse! Você devia ter visto a cara dela.

Ivi começou a gargalhar. Ela se parecia com alguém que nem desconfiava.

— Foi muito apropriado àquela coisa ter caído na cabeça dela bem naquela determinada hora. Nem os deuses suportam aquela garota! Bem, claro que a diretora decretou que de agora em diante todas as luminárias das salas sejam checadas semanalmente para que um episódio assim nunca mais aconteça, mas ninguém pode dizer que aquilo não foi espetacular!

Eu me permiti sorrir por um instante.

— Foi mesmo.

— Itham quase morreu de rir quando lhe contei.

— Mas o que aconteceu depois?

— Você sabe... Hanna ficou fazendo todo aquele drama dramático na enfermaria até a educação física, quando a diretora finalmente resolveu ligar para sua mãe vir buscá-la. O que foi uma benção, devo dizer.

Aquela cabeça de fuinha não perde por esperar.

Eu sorri novamente para Ivi. Todo mundo precisava de uma amiga assim.

— Obrigada por estar do meu lado.

— Ei! — ela devolveu meu chute na canela — somos uma dupla!

Ao invés de reclamar da dor, eu ri.

Mas meu riso morreu quando a porta se abriu novamente e tia Peg entrou com um guarda-chuvas.

E ela não tinha nenhuma sacola de compras.

— Ah, bem — Ivi disse se levantando — acho que eu tenho que ir agora, mamãe deve estar se perguntando por que ainda não voltei. Adeus, Sra. Peg. — ela disse ao passar por Tia Peg.

— Adeus, Ivi. — tia Peg cumprimentou, deixando sua bolsa no hall de entrada.

Droga. Eu conhecia bem aquele tom.

— Porque você fugiu da escola hoje? — ela apontou o guarda-chuva molhado para mim quão logo a porta se fechou, antes mesmo que eu tivesse tempo de falar relâmpago.

Minha boca se abriu e fechou. Como, afinal de contas, ela sabia?

— Tia, a senhora está molhando o chão inteiro!

— Deixe que eu me preocupo com isso, apenas me responda.

— Ahn... eu... eu só não estava... você sabe, me sentindo muito bem.

Ela ergueu suas sobrancelhas branquicentas.

— Isso é algum tipo de motivo para fugir da escola?

Mordi os lábios.

— Eu sei tia, me desculpe, eu só...

— De qualquer forma, não é isso que me importa. — ela disse, guardando seu guarda-chuva no vão entre a porta e a parede, se voltando para mim com aquele olhar que dizia tudo, enquanto claramente não dizia nada. Nada que fizesse muito sentido, ao menos — Tudo que me importa é: fique longe daquele garoto.

E quando ela rumou para a cozinha como se nada tivesse acontecido, eu soube que não arrancaria nada dela nem que quisesse. Só que eu estava ocupada demais com minha perplexidade no momento para me preocupar com variáveis familiares.

Mesmo de queixo caído, eu devia admitir; pelo menos minha tia maluca concordava comigo em alguma coisa.

•••

 Estava escuro. Eu podia saber que era noite, mesmo que não soubesse que horas eram. O brilho da lua era interceptado pelos galhos do salgueiro acima de minha cabeça, fazendo com que a escuridão na rua de minha casa fosse mais profunda do que deveria numa noite luar. Trazia meu celular na mão. Estava sem bateria, e eu não havia conseguido ligar para Ivi. Mas de onde eu vinha àquelas horas? Onde eu havia estado? Fazendo o quê? Por que eu simplesmente não conseguia me lembrar? E por que eu estava de pijama?

Chacoalhei a cabeça. “Estou ficando maluca.”

Mas continuei caminhando, mesmo sem saber de onde exatamente estava vindo ou para onde poderia estar indo. Mas então, cheiro de fumaça. Meus olhos captaram o leve brilho branco subindo pelo ar, e se enroscando nos salgueiros que se debruçavam sobre a rua. O cheiro de alguma coisa queimando, seguido pelo crepitar familiar das chamas. Então percebi. Estava quente. Tão quente que eu chegava a transpirar. “Por que está tão quente aqui?”. Era como se eu estivesse rodeando uma fogueira gigante por horas. Quando ergui os olhos, entendi por quê. Meus joelhos se imobilizaram, e meu sangue pareceu se cristalizar nas veias por um momento. Senti que se movesse um músculo, eu poderia quebrar. Chamas altas e grandes lambiam por entre as folhas dos salgueiros mais altos e mais distantes de onde eu estava.

Fogo. Minha casa estava pegando fogo!

Joguei o celular enquanto impulsionava meu corpo a frente, correndo com todo o fôlego que meus pulmões me permitiam sugar.

— Mãe! Tia Peg! Eu estou indo!!! — gritei enquanto corria, mas era como se eu não corresse o suficiente. Quando mais eu tentava alcançar minha casa, mais distante eu ficava, como se a corrida me afastasse ao invés de me aproximar. — Mãe! Saia daí!!!

Lágrimas quentes escorriam por meus olhos enquanto eu pensava em Havana e tia Peg dormindo enquanto tudo ao redor se tornava um inferno. Elas não poderiam sair, eu tinha que fazer alguma coisa!

Dedos se fecharam ao redor de meu braço.

— Eve, o que você está fazendo?

Eu voltei meu rosto. Era Itham. Ele tinha uma expressão preocupada. Mas a preocupação era comigo. Era como se ele não pudesse ver o que estava acontecendo.

— Itham! Me ajude! Minha casa está pegando fogo! — eu expliquei desesperada, tentando atrair sua atenção para as chamas, mas Itham não desgrudava seus olhos de mim — Itham, por favor! Mamãe e tia Peg estão lá dentro! Se você não me ajudar elas irão morrer!

Mas de repente, o aperto se tornou quente, e ao invés de encarar os cabelos ruivos de Itham, cabelos escuros tomaram seu lugar. E não eram mais os olhos castanho dourados, mas verdes e elétricos. Eron apertava meu braço agora, um sorriso zombeteiro cruzando seus lábios.

— É tarde demais para elas. Aceite, Eveline.

O fogo aumentou, e logo, já não sobrava mais nada de minha casa.

— Não!!! — eu gritei puxando meu braço comigo, chorando enquanto Eron gargalhava na noite, e tudo se transformava em sombras e fumaça.

Acordei arfando.

Aos poucos, a realidade foi tomando forma.

Está tudo bem, foi só um sonho, foi só um sonho, foi só um...

As cobertas estavam no chão, sinal de que eu havia me debatido muito enquanto dormia, e meus dedos estavam tão agarrados no lençol, que as dobras já brancas de esforço formigavam. Minha nuca doía, e minhas roupas estavam encharcada de suor, cheiro de fumaça e cinzas reverberando pelo ar, os fones de ouvido embolados no pescoço, tocando Jet Black Heart, no álbum de 30 Secondes

Of Summer...

... “Se vejo uma guerra, eu quero lutá-la,

Se vejo uma partida, eu quero ganhá-la,

Todo fogo que já iniciei,

Acaba em cinzas...”.

Deixei a cabeça tombar novamente no travesseiro enquanto suspirava. Eu odiava ter pesadelos.

Principalmente quando eles aconteciam no meio da noite, e eu sabia que não poderia ir procurar Havana e nem pedir para dormir com ela ou algo do tipo. Porque essas coisas boas haviam ficado para trás, junto com a infância. E só eu sabia como queria voltar para elas agora.

Fingir que você sabe lidar com os próprios problemas é mais cansativo que tentar ignorá-los.

Mirei os números luminosos e vermelhos no despertador em cima de meu criado mudo bagunçado. Eram 03:00hrs da madrugada.

Eu precisava de um copo de água.

Desci os degraus que levavam até a cozinha da maneira mais suave possível, tentando não acordar ninguém. Senti o frio nas pernas nuas. Droga. Esse era o ponto negativo de dormir de shorts e precisar beber água no meio da noite. Mudando de ideia no meio do caminho, procurei uma caixinha de suco gelado na geladeira, agradecendo silenciosamente quando o líquido escorreu por minha garganta seca. Enquanto bebia, encarei o interior da geladeira, que por sinal, parecia do mesmo jeito que estivera naquela mesma manhã.

Uma coisa era certa.

Tia Peg não havia ido ao mercado naquela manhã.

Mas o pior de tudo: a sensação de estar sendo observada golpeando meus instintos mais primitivos.

Não sonhei com mais nada naquela noite, e quando acordei pela manhã, Havana já havia saído. Fiquei decepcionada.

Sinceramente, depois daquele pesadelo, eu queria pelo menos ganhar mais um abraço. Acho que toda aquela agitação já estava mexendo com o meu psicológico de forma preocupante. Tanto, que meus atos naquela manhã foram completamente mecânicos. Comendo sem sentir o gosto da comida, olhando sem saber o quê e caminhando sem saber para onde. Não que eu sempre prestasse atenção em tudo que Ivi dizia, mas hoje eu só conseguia concordar com ela com leves acenos de cabeça.

Ela percebeu meu estado mode-zumbi, mas mesmo assim, preferiu não forçar a barra.

E eu silenciosamente a agradeci por isso. Ivi era Ivi. Não mencionei as outras esquisitices que haviam acontecido, tipo, o que tia Peg havia me dito assim que ela saíra. Já era ruim o suficiente o que tudo aquilo estava fazendo aos meus neurônios. Eu não precisava pôr Ivi no meio daquela bagunça generalizada também.

O dia havia amanhecido chuvoso, e meus cabelos haviam amanhecido piores que o normal. Droga. Às vezes eu me perguntava como Ivi conseguia manter seus cachos tão em ordem.

— Ei, olha só... — Ivi me puxou para frente do quadro de avisos envidraçado da escola— ...está vendo? — ela apontou para um gráfico dentro do vidro — Parece que nosso jornal está vendendo mais fora da escola do que dentro. — ela sorriu consigo mesma — Não é genial que toda a cidade esteja curiosa para saber o que acontece dentro da academia?

Eu ergui as sobrancelhas, realmente surpresa.

— Talvez seja a linguagem que a colunista principal usa. É difícil achar alguém com tanto talento para escrever, ou tanto... humor ácido.

O sorriso de Ivi cresceu mais.

— Obrigada. Talvez, quando sair da escola eu ainda consiga um emprego num jornal de verdade. Você sabe. Talvez eu consiga um Planeta Diário e um Clarck Kent para completar... ainda que totalmente me satisfizesse com um Elon Musk! — ela chacoalhou os ombros, arrepiada — Puxa, isso seria incrível!

— Eu tenho certeza de que...

— Falando em jornais... — uma voz horrível demais guinchou atrás de nós, me fazendo fechar os olhos com força.

Eu realmente precisava de alguma coisa em que bater a cabeça.

— O que você quer, Hanna? Seja breve, tenho horário marcado para daqui alguns minutos e minha agenda é pouco flexível... — Ivi interpelou antes que eu tivesse a chance de fingir que não tinha ouvido nada, e Hanna logo estava à nossa frente, com a última edição do GEORGE’S COMETA nas mãos. Amassada.

Oh, isso totalmente não era bom.

— O que eu quero é saber, é que tipo de merda é essa que você escreveu sobre mim na sua coluna idiota no jornal idiota sua... idiota!

Ivi enrugou a testa.

O vocabulário de Hanna não parecia exatamente “rico” ou expansivo.

— Como assim? Quer que eu leia para você? É sério, nem isso você consegue fazer sozinha? Estou assombrada, mas não surpresa.

A essas alturas, todos os alunos no corredor haviam parado para ouvir o bate boca. Droga. Meu dia realmente não poderia ter começado pior que isso. Ser o centro das atenções dificilmente poderia ser um item a ser enquadrado na minha lista de coisas preferidas.

Hanna parecia prestes a ter um ataque epilético.

— Eu quero essa coisa idiota fora dos jornais, entendeu Ivileine? Se não, vou me encarregar pessoalmente para que você seja expulsa da academia ainda hoje!

Mas Ivi não era alguém que se deixava abater por ameaças de fuinhas...

— Me desculpe queridinha Hanniela DeVil, mas uma vez publicado, esqueça de “retirar”. Eu sei que você não é particularmente esperta, mas quando uma edição de jornal é lançada, você não pode fazer nada a não ser observar as pessoas lerem... — ele foi o mais diplomática possível — ...a menos, é claro, que seja disso que você esteja com medo...

Hanna fez uma careta, fuzilando Ivi como se ela fosse o Anticristo.

— Vocês só estão com inveja por que o meu cabelo é o cabelo mais bonito de toda a academia!

— O “aplique” mais bonito, você quis dizer. E não é como se eu concordasse com seu ponto de vista. — Ivi a corrigiu prontamente.

— Sua perdedora! Você e essa esquisita jamais deveriam ter pisado na academia. Não pensem que escrever baboseiras num jornal de merda vai fazer com que eu me sinta ofendida!

Ivi deu de ombros.

— Bem, parece que já se sentiu. Agora, que tal pegar esse seu traseiro de brontossauro e ir plantar bananeiras no campo de futebol? E você, não pense que meu irmão vai em alguma hipótese inimaginável reparar que você existe. A menos que seja para passar para o outro lado da rua, claro.

A voz de Hanna tremeu um pouco nessa parte.

Isso. Esse era um ponto delicado. Eu estava quase soltando vivas e fazendo torcida ao lado de Ivi. Era pena que eu não tivesse nenhum pompom para balançar. Eu totalmente desejei ter a desenvoltura de Hanna para isso.

— Ra! Está falando de Itham? Me desculpe, mas eu tenho planos melhores para minha vida amorosa. Planos que com certeza não envolvem Itham e sua família de perdedores. Agora, eu tenho coisas mais importantes a fazer do que ficar perdendo o meu tempo com duas fracassadas. Com licença.

— Claro, milady... coisas como ir para o inferno, eu espero...

Minha boca estava levemente aberta, e Ivi parecia não se decidir se ficava brava por ela ter mentido sobre Itham ou se ficava aliviada por ela ter declarado publicamente que não queria nada com Itham.

Tudo que eu sabia era que queria, absolutamente, que um raio partisse a cabeça de Hanna naquele instante.

Mas claro que isso não aconteceu, o que aconteceu, foi que Ivi me cutucou de repente, erguendo as sobrancelhas e definitivamente o triplo de abobalhada.

— Ei, alerta de gostosura na área... e peloamordedeus! Bota gostosura nisso!

Eu soube instantaneamente de quem ela estava falando, e talvez tenha sido por isso que eu tenha ficado estática novamente, meu pescoço se emperrando e se negando a virar-se para trás. Mesmo quando Ivi arqueou as sobrancelhas, confusa.

— Mas o que ele está fazendo com...

— Cale a boca, Ivi! — implorei.

E logo ouvi a voz de Hanna novamente:

— Ei, Eron! Que surpresa ver você por aqui! — ela soou como se fosse impressionante vê-lo na escola num dia de aula — Oi! Eu estava exatamente pensando sobre nós dois tomarmos um sorvete depois da aula hoje. Você ainda precisa conhecer melhor a cidade e tudo, e eu com certeza poderia lhe ajudar nisso. O que acha?

E eu não aguentei mais. Eu tinha que olhar.

Me virei naquele instante, sentindo aquele arrepio estranho. Progressivo e quente na nuca, focando sua silhueta alta fisicamente estonteante a menos de dois metros de mim. Não que eu tivesse esquecido do quanto ele era bonito, mas era uma sensação nova contemplá-lo novamente. Eu me sentia jogada impiedosamente de surpresa num amontoado de masculinidade e perfeição, sem ter ideia de como lidar com tudo aquilo junto. Dessa vez, a regata era escura, e as tatuagens em forma de garras afiadas em seu pescoço pareciam mais vivas que nunca. Seus cabelos extremamente escuros, cor de visom, aprofundavam ainda mais o verde prásino de seus olhos, contornados pelo negrume quase inacreditável dos cílios.

Ele era simplesmente demais em todos os sentidos e em todos os lugares. Simples assim.

Mas o que realmente fez minha boca cair, foi... bem. Com uma mão ele segurava a alça da mochila num ombro, e com um assombro mudo, percebi rapidamente o que ele segurava na outra mão, surpresa coroando um espasmo involuntário em meus tendões.

Eron deu apenas um olhar desinteressado em Hanna antes de prosseguir seu caminho.

— Eu não gosto de sorvete.

Enquanto Ivi ria baixinho ao meu lado, observei congelada quando os olhos verdes de Eron me encontraram, como uma onda gigante se chocando contra outra e criando um grande “splash” ensurdecedor.

— Eveline, eu estava te procurando. — aquele sorriso zombeteiro explorou seus lábios redondos enquanto ele erguia meu suéter branco, como se estivesse balançando um pompom no topo de uma pirâmide humana no grupo das animadoras de torcida — Você esqueceu isso no meu carro ontem. — ele fez questão de enquadrar as palavras exatamente daquela forma, para que todos ouvissem.

Meu rosto parecia ter sido mergulhado em ácido cítrico, por que sangue quente aflorou em todos os meus poros.

Merda. Ele havia dito aquilo daquela maneira completamente de propósito. Seu olhar divertido demonstrava o quanto devia ser legal deixar uma garota vermelha como uma pimenta madura e completamente sem ação na frente de uma maré de alunos. Antes de perceber mais detalhes sobre a boca de Hanna se abrindo e seus olhos se arregalando em surpresa, pesquei o suéter que ele me oferecia... usando um pouco de força a mais que o necessário.

— Ahn... obrigada.

Eu costumava ser inteligente. Mas caras como Eron me imbecilizavam a esse nível angustiante.

— Não há de quê. — ele piscou, parecendo saber que isso só me deixaria mais desconcertada.

E antes que ele tivesse a chance de dizer mais alguma coisa que me deixasse mais terrivelmente idiota que aquilo na frente de toda a ASAGL, agarrei o braço de Ivi e dei no pé.

Não foi uma atitude exatamente madura, mas ... É.

•••

 — Pois é, agora todo mundo sabe que vocês foram juntos de carro ontem para casa. E daí? — Ivi tentava falar enquanto engolia parte do sanduíche que estava mastigando no refeitório ao mesmo tempo, coisa que parecia não estar funcionando direito. — Pelo menos você teve a sorte de não levar detenção e nenhuma advertência. E qualquer garota aqui arrancaria os próprios dedos das mãos para que Eron a levasse para casa, disso pode ter certeza.

— Você não entende. Ele falou aquilo de propósito. Ele sabia que ia me afetar. Tipo, na frente de TODO MUNDO.

Ivi deu de ombros.

— Talvez ele realmente goste de te provocar... Ou talvez estivesse querendo mandar uma real à Hanna. — ela sorriu — devia ter visto a cara que ela fez.

Eu suspirei pesadamente.

— Eu vi. E é disso que eu não gosto Ivi. Eu odeio a forma como ele zomba de tudo ao redor dele. Parece que todos nós fazemos parte de uma grande piada que se só ele sabe o significado...

Ivi deu de ombros novamente, estrangulando o sachê vermelho enquanto botava mais ketchup em seu sanduíche de panini.

— Tanto faz. Apenas admita que ele é simplesmente a coisa mais gostosa que já pisou nessa escola.

— Quem é a coisa gostosa da escola? — Itham perguntou se juntando a nós, com a bandeja recheada de batata frita transbordando pelas veiradas. — Eu espero que estejam falando de mim, principalmente depois do jogo de hoje. — ele se sentou, fazendo com seus espelhos balançassem e retinissem.

— Desculpe ferir tão descaradamente seus sentimentos, Itham, mas nope. — Ivi deu outra mordida no sanduíche enquanto eu fingia estar pensando na ínfima remota possibilidade de cutucar o meu, que ainda estava intocado na bandeja.

— Oh. Claro... — Itham fez uma careta de desgosto — Devem estar falando naquele cara. Parece que a academia inteira não tem outro assunto...

— Viu só? — Ivi abriu bem os seus olhos enquanto me cutucava por baixo da mesa — até Itham admite.

— Eu não estou admitindo nada. — Itham protestou enquanto começava a se encher de batata frita — e “coisa gostosa”? Por favor, Ivi, como você sabe que aquele cara não é nenhum assassino malvado?

— Existem assassinos que não sejam malvados? — a pergunta idiota meio que escapuliu, sendo ignorada por Ivi com sucesso.

— Sim. Um bad boy. Não é excitante?

Foi minha vez de chutá-la por baixo da mesa.

— Ivi!

— Quero dizer, você pelo menos já parou para prestar mais atenção naquelas tatuagens? Ouvi os caras falarem que são símbolos demoníacos. — Itham segredou de boca cheia.

Ivi concordou.

— Tem razão, talvez eu deva pedir para ele tirar a camisa para eu poder averiguar os fatos e dar uma bela olhada...

— Ivi! — eu e Itham dissemos em uníssono.

— O quê? — ela abriu mais os olhos de maneira inocente.

Itham balançou a cabeça em desgosto.

— Você está parecendo uma... eu nem sei!

— Uma garota normal? Desculpa aí! — ela fuzilou Itham com seu pior olhar enquanto pousava a metade de seu sanduíche na bandeja — Aff! Vocês são tão chatos! Provavelmente dariam uma bela dupla. “Eve e Itham, os artilheiros da ASAGL”... quero dizer, como, exatamente, vocês pretendem achar uma boa companhia para a Festa a Fantasia se continuarem agindo como se fossem meus avós? Estou dizendo, precisamos marcar a data deste casamento!

Itham se afogou com uma batata.

Eu meio que só abri a boca feito uma foca com problemas cardíacos.

A festa a fantasia acontecia todos os anos no ginásio da ASAGL, geralmente, uma noite depois do jogo classificatório dos Tigres da GL. E todos os alunos da escola eram absurdamente loucos pela festa. Todos os anos, a temática mudava. Ano passado o tema foi “Super-Heróis”, e Ivi me havia fez vestir uma fantasia ridícula da Xena, a Princesa Guerreira. Ela havia ido de “Sam”_ de As Três Espiãs Demais_, e Itham, de Hércules. Esse ano, o tema da festa era livre, fazendo sentir-me mal antes mesmo que a semana da festa se aproximasse mais. Eu não tinha ideia do que Ivi me faria pôr dessa vez, e no fim de tudo, eu sabia que o objetivo real da festa era: achar um par romântico. Não que eu tivesse exatamente me saído muito bem ano passado, e não que eu esperasse me sair esse ano, mas apenas pensar na ideia de ter que dançar novamente fazia meu estômago se retorcer de uma maneira bem pouco natural.

Quero dizer. Eu era inteligente e tudo, mas não era nenhum pé de valsa. E algo me dizia que eu apenas não iria arriscar aparecer na festa desse ano.

Porque algo me dizia que Hanna nunca estivera tão pé da vida comigo antes, e já que ela era a Princesa Encantada da escola, não seria difícil arranjar alguma forma me ferrar de todas as maneiras que conseguisse.

E era exatamente isso que seu olhar dizia quando ela passou por nossa mesa com suas amigas perfeitas a tiracolo, seus olhos azuis e afiados como lâminas deslizando ferozmente em minha direção. Vou te ferrar. — era tudo que eles diziam.

Eu me encolhi onde estava, e Ivi percebeu, virando o rosto curiosa.

— Eu apenas queria saber por que ela me odeia tanto... — reclamei de repente, cutucando meu sanduíche com a ponta do garfo, meio como se ele fosse uma boneca vodu de Hanna — Quero dizer, não é como se eu houvesse realmente feito algo a ela. Ela simplesmente me odeia desde o primário, com uma intensidade tal que deixaria até Hitler humilhado...

Itham baixou os olhos, fazendo de conta que estava com a boca cheia demais para responder, e Ivi apenas suspirou, observando o fluxo intenso de alunos ao nosso redor, se embrenhando por todos os cantos do refeitório enquanto gritavam um para o outro feito um bando de canibais.

Eu nunca ia entender a motivação que levava um ser humano a gritar numa intensidade sônica com outro quando ambos estavam sentados lado a lado...

— Por que ela é detestável. — Ivi me lançou a resposta mais óbvia — E porque ela não gosta de ninguém além de si mesma. Garotas como Hanna não entendem nada sobre valores e preceitos humanos... A não ser o coito... — ela desabafou, dando uma leve olhada para Itham, que ainda fingia não estar a par da conversa feminina enquanto se concentrava arduamente na tarefa de não babar ketchup pelas veiradas da boca.

— Eu sei... mas ninguém quer tanto ferrar outra pessoa nesse nível satânico se essa pessoa não tenha lhe ferido íntima e diretamente. Não faz sentido. Ela é nojenta e tudo, o que não é nenhuma novidade, mas isso não explica as coisas num âmbito geral. Ela age como se eu fosse a pessoa que fez xixi no cereal dela... ou que matou seu cachorro na noite passada.

Ou que puxou uma lamparina na sua cabeça.

Itham finalmente ergueu o olhar para mim, ainda mastigando.

— Ei, E. Essa garota é doente, isso é tudo. Não deveria se importar tanto com ela.

Em um momento de silêncio, eu apenas assenti, pensando que havia um fundo de verdade na declaração de Itham. Não fazia sentido, mas e daí? Eu tinha coisas mais importantes para me preocupar do que Hanna ou a Festa a Fantasia da Academia, como por exemplo, aquela sensação gelada ao redor do umbigo novamente. Droga. Era como se eu estivesse a ponto de vomitar sem nem ter empurrado nada para o estômago. E por que raios eu estava transpirando tanto? O clima estava frio, porque as nuvens do lado de fora ainda estavam carregadas, e o tempo continuava nublado. Qual era o sentido de estar suando e sentindo frio ao mesmo tempo?

Virei o copo de suco garganta abaixo, enquanto tentava me livrar daquela sensação esquisita.

Talvez eu estivesse ficando realmente doente. Talvez estivesse pegando o resfriado de Ivi. Ou talvez precisasse apenas ter uma conversa com tia Peg. Não que eu achasse de verdade que ela fosse mesmo me dizer alguma coisa, mas estava claro que ela sabia de algo que eu não sabia. Eu só precisava... que ela soubesse disso.

Meus olhos correram pelo refeitório antes que eu pudesse me conter ou perceber o que eu estava fazendo. Rodas de garotos gritando e rindo alto, com os fones escondidos por baixo do moletom e fazendo batatas voarem por toda a parte atraíram minha atenção, mas nenhum deles era o garoto que eu procurava. Lógico, porque, de alguma forma, se ele estivesse ali, eu saberia. Era isso que me deixava ainda mais confusa. Onde ele estava? Como conseguia sumir desse jeito? De acordo com sua Grade, que continha quase todas as mesmas aulas que a minha, seu turno de almoço também deveria ser o primeiro. E porque eu parecia ser a única a notar esse tipo de coisa?

Meus pensamentos foram interrompidos quando meus olhos deslizaram sem querer pela mesa de Hanna, e seus olhos afiados encontraram os meus, e enquanto ela falava alguma coisa na rodinha em sua mesa, não foi difícil perceber que o assunto em pauta envolvia meu nome.

Baixei os olhos novamente para minha bandeja.

Por que esse tipo de coisa só acontecia comigo?

Droga. Porque Hanna simplesmente não me dizia por qual motivo decidira me odiar tanto para que ambas pudéssemos resolver aquilo da maneira mais apropriada possível? Ela não podia ser tão terrível o tempo todo, podia? Quando levantei os olhos e percebi que ela ainda me encarava, constatei o óbvio.

Talvez ela pudesse sim.

Não demorou muito para o próximo som eclodir, tamborilando molhado nos telhados do refeitório. Comecei a pensar que poderia até me acostumar a isso. Talvez estivéssemos realmente predestinados a agora viver sempre em baixo de uma grossa nuvem cinzenta de chuva. A coisa depois disso seria a escuridão do sol. O próximo passo, seriam os gafanhotos.

Eles totalmente poderiam fazer algo sobre a bunda de Hanna.

Sr. Encharpe não havia aparecido de novo, e isso só me fazia perguntar porque só eu achava isso estranho.

Talvez eu só devesse “desencanar mais”, como sugerira Ivi.

E era o que eu estava tentando fazer na aula de literatura, quando fomos todos despachados para a biblioteca da escola.

Eu gostava daquela biblioteca, mas ela nem se comparava com a Biblioteca Municipal. Não que esta também não fosse grande, mas ela não tinha os mesmos livros velhos, não tinha aquele ar acolhedor e empoeirado. Ali, tudo era lustrado, cheiroso, didático, limpo e claro. Também não havia nenhuma Sra. Hernessa por trás do balcão atendente, lendo seus romances obscenos, mas sempre algum aluno morto de sono que se disponibilizava a ser o ajudante do dia apenas para ficar sentado sem fazer nada e sem precisar estudar.

Como Ivi estava preocupada demais procurando coisas notavelmente desinteressantes nas prateleiras, me contentei em sentar em uma mesa perto das janelas, abrindo uma versão longa e mais estendida de Coleridge, para que pudesse abrir minha agenda sobre ele sem ser notada. Saquei a lapiseira enfiada entre as espirais e me pus a folhear as páginas mais recentes, até que encontrasse uma folha em branco, engasgando perceptivelmente ao me deparar com o desenho de um garoto de repente.

Arrepios incontáveis subiram e desceram pela espinha, e espantei a sensação com um tapa mental, continuando a folhear. Certo. Havia tanta coisa entalada em minha garganta, em meus pensamentos, e havia só uma forma de pôr tudo para fora... e eu sabia bem qual era essa forma.

E eu tento me esconder,

tentando me camuflar

nas paredes, do meu medo.

Talvez não tivesse como ser mais clara que isso.

As palavras não estão aqui,

E agora eu as vejo, bem claras em minha mente.

As lágrimas se esgotam num sorriso demente

Que teima em achar que tudo está bem...

Ás vezes, eu achava que gostaria de mostrar essas coisas a alguém. Mas Ivi talvez não entendesse, porque ela não era tão sentimental quando eu precisava que ela fosse. Eu conseguia ver o sentido por trás das palavras, enquanto as rabiscava no papel. Tudo parecia fácil demais... claro demais. Descomplicado demais...

Mas então as palavras perdiam sentido quando eu mais precisava delas.

Como naquele momento, quando me obriguei a fechar a agenda rapidamente no momento em que alguém se sentou do outro lado da mesa.

E não foram só as palavras que deixaram de fazer sentido, mas minha respiração também pareceu ficar desbotada, presa nos pulmões. Isso porque eu sabia quem era. Aquela sensação estranha que me dominava quando ele estava por perto acabava de correr por minha espinha, dedos insistentes dançando toques ousados.

Ergui os olhos para ele, que me observava curioso.

— Algo me diz que você não está lendo.

Era estranho como nada daquilo combinava com ele.

Eron havia cruzado seus braços poderosos no tampo da mesa, e semicerrava seus olhos verdes por baixo dos cílios escuros. Era incrível como tudo parecia bizarro ao seu redor. Tudo parecia... errado. E a forma com a qual ele desparecia e reaparecia do nada...

— Você também não me parece estar... — eu contra ataquei, dando de ombros enquanto fingia estar perfeitamente a vontade... mesmo que minhas pernas estivessem tremendo por baixo da mesa como a preleção do início de um infarto.

Foi a sua vez de dar de ombros.

— Eu não sou muito do tipo que segue regras.

Eu não pude deixar de sentir um calafrio em relação a sua afirmação.

— Por falar em seguir regras... — eu comecei — Você não precisava ter dito aquilo na frente de todo mundo hoje.

Ele ergueu as sobrancelhas escuras. Será que ele tinha a mínima ideia do que causava nas pessoas quando fazia aquilo?

— Se queria falar comigo em particular deveria ter me avisado antes, Eveline.

Eu quase engasguei. Mais do que já estava engasgada. Havia algo no modo como ele falava meu nome. E não era só por que ele preferia me chamar pelo meu nome inteiro. Era algo que perfeitamente me fazia engolir com dificuldade.

— Você entendeu o que eu quis dizer. Você fez de propósito, não é?

— O quê? — ele abriu mais os olhos verdes de maneira inocente, me fazendo mesmo achar que ele falava sério.

— Nada. Esqueça.

Ele estreitou mais os olhos, enquanto os dançava por mim, violando meu espaço pessoal com todo aquele verde ousado. Ele achava divertido. Devia achar muito engraçado a forma que eu procurava um lugar adequado para por as mãos, por exemplo.

— O que foi? — não resisti de perguntar, cínica.

Ele apenas deu de ombros.

— Eu não sei... é só por que você é a pessoa mais séria que eu já conheci... e sensata, talvez. — seus olhos foram da minha agenda para meu rosto, e eu descobri não estar me sentindo muito confortável sobre o julgo daquele mapeamento de território visual — sabe, se fosse como as pessoas que eu conheço, já teria dado uma boa surra naquela garota...

Eu pigarreei. Sabia muito bem de quem ele falava.

— E como são as pessoas que você conhece? São de alguma gangue? São Assassinos? — lamentei ter pego pesado demais, mas ele não pareceu perceber.

— Chega, eu já falei demais... digamos apenas que eles são... bem, de matar. — ele ergueu as sobrancelhas escuras enquanto abria mais os olhos. — Opa! Piada de funeral...

Chacoalhei a cabeça. Qual era o problema dele? Ele não era exatamente um doce, então porque todas as meninas não conseguiam parar de babar por ele? Provavelmente por que nenhuma delas havia conversado com ele.

E foi aí que percebi. O bonitão que estava deixando as garotas loucas estava falando comigo. De novo. Talvez fosse por isso que Hanna estivesse louca da vida, no fim das contas.

Será que eu deveria me aproveitar da situação?

Droga. Eu realmente gostaria de ser um gênio quando situações assim exigissem um pouco de inteligência.

Quando decidi invocar o poder de minhas células cinzentas, ele se desprendeu da mesa, se recostando na cadeira, e perceber que seus ombros ficavam mais destacados quando ele fazia isso não fez maravilhas para minha atenção. Foi um golpe na minha concentração. Tanto que a lapiseira caiu de meus dedos, rolando até seu lado da mesa. Ele a arrebatou antes que eu tivesse a oportunidade, a rolando nos dedos enquanto observava o tubo cor de rosa como se ele fosse impressionante, e esperei que ele não percebesse que a ponta dela estava pateticamente roída e mordida.

— Você sempre escreve com tanto entusiasmo durante as aulas? — ele perguntou me devolvendo a lapiseira e observando minha reação.

— E você sempre finge que estar prestando atenção com tanto empenho durante as aulas? — foi mais forte que eu, e quando percebi, as palavras já haviam encontrado caminho pela boca e saído sem permissão.

Ele entortou a boca num sorriso, e Ivi desmaiaria se estivesse por perto.

— Do que você está falando, Eveline?

Bem... eu havia começado. E o desafio que ele havia lançado claramente dizia “Pare”.

Eu estava sendo uma completa suicida em entrar no jogo.

— Me diga você. Você não se comporta exatamente como um aluno novo. Você... nem se comporta como um aluno, e essa é toda a coisa. Quero dizer, não é como se você estivesse particularmente interessado nas coisas que os professores dizem. Um aluno novo normal estaria mais preocupado em pegar a matéria e acompanhar os conteúdos. Algo sobre ter algo a dizer nas provas...

Ele analisou minha teoria enquanto ponderava seriamente minhas palavras, balançando a cabeça e fazendo com que uma mecha de cabelo escuro caísse a frente de seus olhos.

— Me parece uma pessoa intensamente observadora. Diga, por acaso você tem me analisado? Talvez me procurado entre a multidão em alguns momentos... Sonhado à noite comigo?

Meu rosto imediatamente se avermelhou.

Merda, Eve! Por que você não enfia de uma vez a cabeça no microondas e deixa torrar? Esfumaçar e depois pegar fogo?

— Ahn... eu... não, não. Não foi isso que eu quis dizer... eu só... — parei quando percebi que estava gaguejando demais.

Merda, merda, merda.

— Escute. — resolvi abrir o jogo quando percebi que seu sorriso estava aumentando, se divertindo mais do que o normal com a situação em que ele próprio havia me colocado. Então eu ia ser honesta. Ele precisava saber que eu não caia de amores por ele como as outras. Eu apontei o indicador em sua direção — Eu sei que tem alguma coisa errada com você, certo?

Eu não acredito que acabei de dizer isso.

E antes que eu pudesse prever seu movimento, ele já havia se debruçado novamente sobre a mesa, em minha direção, segurando meu pulso e me impedindo de me afastar, seu rosto a poucos centímetros do meu, violando a distância entre nós. Bebi de sua proximidade com uma onda de choques correndo pelas veias.

— Então me diga o que há de errado. Tem tantas coisas sobre mim que eu gostaria de saber. Tantas coisas que eu gostaria de entender...

Mas não foi sua proximidade que me fez saltar, mas o seu toque. Porque de repente, me lembrei do sonho que havia tido naquela mesma madrugada.

— Você... — eu sibilei, olhando para seus dedos longos e bronzeados envoltos em meu pulso, para onde ele também desviou o olhar surpreso.

Seu toque era quente. Fervente. Mesmo com o clima frio, sua pele era extremamente... escaldante. Me perguntei se esse era o motivo por ele nunca estar usando blusa, o que me fez expelir a próxima pergunta idiota.

— Você não sente frio?

Sua expressão endureceu. Agora ele estava sério. Não havia nada de zombador em sua expressão... havia apenas uma frieza latente, por mais que ele fosse extremamente quente... de várias formas, eu tinha que admitir.

— É costume por aqui responder perguntas com outras perguntas? — foi a única coisa que ele disse.

Me permiti olhar dentro de seus olhos por um segundo, me arrependendo instantaneamente do ato. Aquele brilho que havia por trás de suas íris, como se houvesse algo queimando lá no fundo, parecia estar mais forte que nunca. Era como se... eu estivesse sendo absorvida para dentro de uma órbita distante, e não havia nada em que eu pudesse me agarrar para impedir, mergulhando naquele verde infinito e imergindo na solidez quente e irreconhecível de seu interior... submersa nele de uma forma que enviou vertigens para dentro de meus olhos. Era como se ele pudesse transpassar cada camada fina de minha mente até chegar aos meus pensamentos, e só quando uma voz soou acima de minha cabeça, me tirando daquele transe perturbador, percebi que eu também havia me debruçado sobre a mesa, e ambos estávamos muito próximos um do outro... próximos de um modo intimidante.

— Hum. Eu espero não estar interrompendo nada... — a voz de Ivi me trouxe novamente a realidade.

Eu alinhei minha coluna rapidamente, engolindo em seco enquanto percebia que eu havia agido como uma idiota. Sua otáriaCertifique-se de nunca mais olhar dentro dos olhos desse cara de novo...

— Interrompendo? Não, não está interrompendo NADA... — eu guinchei rápido demais, aumentando a voz algumas oitavas na última parte. Porque eu estava irritada. Comigo mesma. — Nós estávamos apenas...

— Eveline estava me contando um pouco mais sobre a cidade. — inacreditavelmente, Eron já estava recomposto, sorrindo para Ivi, um sorriso que a fez ficar abobalhada por alguns instantes, quase agindo como uma ilhama imperativa — A propósito, eu sou Eron, você deve ser Ivileine, certo?

Ivi se deixou cair ao meu lado, numa cadeira vaga.

— Sim, sou eu — ela sorriu dopada, piscando de uma forma que me deixou ainda mais desconfortável.

Como ele conseguia mudar tão rapidamente de expressões? Primeiro era o bad boy que achava graça em tudo, depois, era o garoto que me metia medo apenas por ter endurecido o olhar, depois, era uma espécie de portal, me sugando para tudo que havia de mais errado e perigoso com uma única piscada, e agora, era o garoto novo completamente amável que sorria para minha melhor amiga. É sério, eu estava começando a ficar maluca.

— Bem, eu vou indo... — ele disse se levantando — foi um prazer conhecê-la — ele disse para Ivi, e depois se dirigiu a mim— Nos vemos por aí, Eveline.

Eu espero que não.

Ele sorriu como se tivesse ouvido.

Ele meio que soprou meu nome, e o resultado foi levemente perturbador pelas costelas... e todo o resto do corpo.

Ivi e eu o acompanhamos com o olhar enquanto ele sumia pelo corredor.

E então, eu soltei o ar, não percebendo qual fora exatamente o momento em que eu o havia prendido nos pulmões.

— É sério. Eu não consigo entender o que você vê de tão ruim nele... — Ivi disse enquanto se abanava com o livro que tinha nas mãos — Dá um calor só de lembrar daquele sorriso... e olha que não foi a única coisa impressionante que eu vi.

Eu não ousei discordar, porque eu sabia que era verdade. Só que o tipo de calor que eu sentia sobre isso era diferente. Pelo menos em alguns níveis de temperatura. Ivi não fazia ideia de como estava certa quando dizia como ele era quente.

Mas resolvi não comentar sobre isso.

Porque ela não ia acreditar em nada do que eu falasse. Não enquanto estivesse tão abobalhada e sob o efeito de sua presença.

— Afinal de contas, sobre o que vocês estavam falando? Oh céus, Eve, você simplesmente tem que me contar. Totalmente preciso de uma história para fantasiar nessa noite...

Eu suspirei enquanto guardava minha agenda.

— Não era nada de muito importante.

— SEI. — ela chiou enquanto me encarava, irritada — vocês estavam muito absortos numa conversa para não estarem falando de nada muito importante quando eu cheguei...

Eu sorri para Ivi, como se estivesse tudo bem, e como se eu fosse apenas uma garota normal e idiota que também o achava simplesmente um gato e que estaria fantasiando com os nomes dos primeiros filhos nas próximas semanas. Isso, ao menos, faria com que Ivi parasse de perguntar.

— Foi como ele disse. Eu estava lhe contando um pouco sobre a cidade. E quer saber? — eu persisti na farsa — Você tinha razão... ele não é tão ruim assim...

O sorriso de Ivi clareou enquanto ela erguia as mãos num gesto agradecido..

— Puxa, finalmente! Parece que minha amiga finalmente vai começar a agir como uma pessoa normal...

Eu sorri para Ivi.

— Claro.

Mas só depois que eu descobrir que merda é essa que está acontecendo por aqui...

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo