|2| U M P A S S O M A I S E S C U R O

  IVI ESCORREGOU EM UMA POÇA DE LAMA pela enésima vez.

— Ora... malditos acontecimentos climáticos. Há algo malditamente errado sobre isso tudo... — ela chutou lama pra longe enquanto arrumava seus cachos ruivos em baixo da boina rosa novamente. — se eu der mais um espirro, vou me desequilibrar e acabar com a bunda bem em cima de uma dessas poças ridículas.

Pisquei contra o vento frio, que soprava meu cabelo em todas as direções, menos para a direção certa. Com as mãos enfiadas em punho nos bolsos do casaco, eu tentava digerir pelo menos metade das coisas que vinham acontecendo em minha vida. Patético.  Ao fim da tarde, os cafés ao ar livre que costumavam estar sempre cheios de gente bebericando coca gelada, agora era só um amontoado vazio de cadeiras geladas. Os únicos ambientes habitados, eram os interiores das lanchonetes, onde pessoas tomavam seus chocolates quentinhos ao redor de enormes lareiras.

— Isso já nem parece mais a Califórnia... está parecendo mesmo o início de outra grande Era Glacial... — Ivi resmungou entre dentes enquanto eu tentava constratar aquela cena congelante com minha fissuração bizarra por fogo. Talvez fizesse algum sentido. Talvez... — EVE!!! — Ivi berrou em meus ouvidos de repente, me fazendo pular onde estava.

Foi mais o menos como acordar de um transe.

— Que foi? — minha voz baixa repercutiu em meio ao vento que chicoteava de um lado ao outro, levantando folhas secas do chão.

— Droga. Eu estou aqui falando sozinha a mais de uma hora. Será que dá para me dizer pelo menos uma vez na vida em que você está pensando?

Ivi havia parado no meio da calçada, me encarando com seus enormes olhos castanhos brilhantes e suas bochechas rosadas enquanto segurava seus cadernos com a outra mão enluvada. Engoli nervosismo enquanto refazia a pergunta mentalmente. Em que eu estava pensando?

Nem eu mesma sabia. Era estranho me perder em mim enquanto eu nem percebia de que forma estava perdida. Droga. Até quando eu teria aquela sensação esquisita de não estar totalmente acordada? Até quando haveria uma parte de mim malditamente adormecida, me deixando ver as coisas apenas pelo modo paralelo?

Era como se uma parte de mim tivesse ficado dormindo naquela cama, impossibilitada de acordar e focar as lentes embaçadas de minha visão.

Gaguejei alguma coisa sem sentido enquanto pensava em algo que não fizesse me sentir tão estranha.

— Havana. — soltei o primeiro nome que me veio à mente.

As sobrancelhas de Ivi se uniram.

— O que tem a sua mãe?

— Eu... sinto falta dela. Ás vezes...

Ivi me fitou por um momento, como se decidisse mentalmente se acreditava ou não, e depois de dar um suspiro profundo com ar de “tanto faz”, me deu um leve empurrão enquanto recomeçávamos a caminhar. Ela pareceu divergir no assunto.

— Tudo bem. Eu entendo. Deve ser difícil pra você não poder contar com sua mãe pra nada...

— Isso não é verdade... eu posso...

—Tudo bem, escute, — ela levantou uma mão — De qualquer forma, não foi isso que eu quis dizer. Só ia dizer que lamento que Havana não tenha muito tempo pra você. Eu mesma sei o significado de precisar constantemente de uma companhia materna. — ela suspirou — Mas Havana faz o que pode pra manter sua família de pé, e eu a admiro muito por isso... você sabe.

Lhe concedi um leve sorriso.

— Obrigada. É a mesma coisa que eu costumo pensar... por isso ás vezes eu acho que... droga, acho que não faço o suficiente pra ajudar... eu não faço nada pra ajudar...

Ivi me olhou de forma estranha.

— O que você quer dizer com isso?

— Olhe para mim. Eu podia ajudar com pelo menos... bem, pelo menos se não lhe trouxesse tantos problemas... talvez isso já estivesse bem.

Quando achei que Ivi não ia reagir ao meu comentário patético, ela soltou uma pequena gargalhada.

— E quem foi que disse que adolescentes nunca iriam trazer problemas? Sua mãe provavelmente sabia disso... mas a quis mesmo assim.

Eu também sorri. Pensar na ideia me trazia certo prazer.

— Ora, Eve, você sabe... não dá pra simplesmente ficar longe de problemas. Você sabe que eles sempre encontram a gente de qualquer forma. Quanto mais você foge do perigo, mais ele te persegue. Então não se culpe por entregar atrasados os livros da biblioteca e nem por colar na prova do Sr. Encharpe... — ela riu da própria piada, mas depois, o riso morreu, e percebi que meu sorriso também tinha empalidecido.

E antes que eu me desse conta do que estava fazendo, percebi que havia me encolhido mais dentro do casaco, e um dedo insistente cutucou minha mente, me dizendo que não tinha nada a ver com o frio a nossa volta.

— Você acha que ele ficou doente ou algo do tipo? — Ivi foi a primeira a se manifestar na causa divergente e desagradável do assunto — Talvez... o conselho tenha lhe dado uma dura ou sei lá...

Arfei ar gelado por um instante, mordendo o lábio.

— Parecia ser mais do que isso. Ele parecia... — engoli em seco — possuído.

— Certo. Não vou discordar de você dessa vez... mas foi assustador.

— Não gosto da forma como ele olha pra gente... e também não gosto da forma como ele fala. Não gosto da forma como ele menciona as leis, regras e nomes das estrelas, como se estivesse falando de algum deus... eu... não gosto. — balancei a cabeça com desgosto, me lembrando da sensação horrível de estar olhando pra dentro de um buraco negro ao olhar dentro de seus olhos.

Ivi me olhou de uma maneira esquisita, e depois, pensativa. Quando baixou os olhos para as mãos, estava determinada.

— Eve, você é minha melhor amiga. Uma irmã, e eu seria capaz de qualquer coisa por você. — ela sentenciou me encarando de maneira tangente — sabe que pode me contar qualquer coisa, não é?

Pisquei por alguns instantes, absorvendo o calor em suas palavras. Havia um toque de verdade abrangente e quente em cada uma delas, e os olhos de Ivi confirmavam toda a sua afirmação repentina. Meu peito se inflamou de carinho por Ivi. Era ela quem sempre estaria ali, me impedindo de cair e me ajudando a me levantar. Ivi era aquela que nunca me deixaria, e não importava o quanto as coisas estivessem ruins... ela sempre estaria exatamente ali, me oferecendo tudo que ela tinha. Sorri, meus cabelos se embolando em meu rosto enquanto eu assentia de maneira desajeitada.

— Claro.

Ivi também sorriu, aquele sorriso lindo que deixaria qualquer um abobalhado, e me ofereceu o dedinho mínimo, com sua enorme unha cor de rosa se sobressaindo por baixo do tricô da luva.

— Isso é um trato, certo.

Eu sorri enquanto lhe oferecia o meu, entrelaçando-os naquele pacto antigo de crianças.

— Certo. Eu ainda levo isso a sério.

O ar cheirava sutilmente a cinzas e folhas caindo. As ruas antes cheias de casquinhas de sorvete agora estavam cheias de folhas secas voando e rodopiando por todos os lados. Era incômodo observar o novo aspecto da cidade, e perturbador comparar ás águas congeladas do chafariz do Greenvillea com o que costumava ser um chafariz quente e cheio de moedas da sorte. Onde haviam pessoas correndo, pulando e jogando disco com seus cachorros, agora havia apenas poucas pessoas escondidas em casacos e cachecóis, se escondendo ao máximo dentro das roupas pesadas. Mas eu não precisava dizer nada disso para Ivi. Ela observava as mesmas cenas enquanto caminhávamos em direção à biblioteca, e provavelmente sentia as mesmas coisas também.

Mas talvez não sentisse o frio na espinha que eu senti ao nos aproximarmos da entrada interditada do agora destruído Vienna.

Um beco longo e soturno nos separava da Inglewood Ave, que dava para os enormes portões pontiagudos e cercados pela fita zebrada, mas ainda assim, eu me senti perto demais, e não consegui acompanhar as passadas firmes de Ivi, que prosseguiu em frente. Aos fundos, as armações pontiagudas do teto das torres e das construções dos brinquedos agora destruídos se pronunciavam inabaláveis no horizonte. Em um momento, toda a reprise se tornou ácido em meu âmago, me obrigando a voltar no único momento que eu queria esquecer que havia vivido. Os gritos, coisas caindo, se rachando, partindo-se ao meio, e tudo desmoronando. A voz da jornalista no noticiário no dia seguinte, “Muitos mortos.”, “Não sabemos ainda qual foi a causa do desastre.”. Assim que a noite ficara conhecida nas redes de jornais de todo o país. “A Noite do Desastre”. A palavra ecoou em minha mente, se repetindo tanto a ponto de me deixar momentaneamente tonta. Desastre, desastre, desastre, desastre, desastre...

Eu devia estar morta. Eu devia...

Um aperto em meu braço me sobressaltou.

Com um leve pulo, dei com os enormes olhos castanhos de Ivi me examinando. Eu estava parada no meio da rua que levava para o beco, com as duas mãos enfiadas nos bolsos, revirando nos dedos o novo pingente que tia Peg me dera.

Soltei o ar, não me lembrando do momento em que o havia prendido.

— Tudo bem? — Ivi perguntou.

Chacoalhei a cabeça enquanto suspirava.

— Não. Você sabe que não. Já faz muito tempo que nada está bem.

Os dedos de Ivi afagaram meu braço, e com relutância ela encarou o parque destruído.

Ela também parecia ter dificuldades em olhar tudo aquilo.

— Ouvi dizer que ele jamais vai funcionar novamente. Alguns estragos são permanentes e ninguém quer voltar a se divertir no lugar onde desgraças demais aconteceram numa noite só. Os investidores Venezianos voltaram à Itália. Essas fitas jamais serão tiradas daí...

Minha voz endureceu alguns tons.

— Acho muito melhor assim.

Ivi concordou com um aceno de cabeça.

— Acha que existem fantasmas aí?

Sibilei para Ivi.

— Você sabe, — ela se apressou em explicar — Como no Hotel Califórnia. Dizem que as pessoas que morreram presas no elevador, ainda estão lá. Dizem que se você ousar entrar lá dentro, nunca mais poderá sair... — ela cruzou os braços de repente — Credo... aquela musica dos Eagles me causa calafrios... e não do tipo bons...

Não consegui impedir que um calafrio de medo também balançasse minha espinha.

— Não. Não acho que existam fantasmas aí... Eu não queria voltar ao X da questão. Não queria voltar a cutucar no assunto de sempre, não queria voltar a perguntar “Por que você acha que eu não morri”, quando obviamente, deveria ter sido uma das muitas vítimas fatais. Não queria perguntar a ela se achava estranha todas as coisas que vinham acontecendo comigo, porque queria me convencer de que não era nada. Vai passar... — garanti a mim mesma pela enésima vez — Tudo vai ficar bem. Tudo vai ficar perfeitamente bem, como sempre foi...

Agarrada a essa esperança mais uma vez, eu quase sorri.

— Vamos, — eu a cutuquei com o cotovelo nas costelas. Ivi reclamou — Ainda temos que terminar a nossa coluna HCDF.

Ela elevou os olhou para cima, como que agradecendo, e deu meia volta na mesma hora. — Puxa, até que enfim. É tão bom pensar em fazer alguma coisa normal novamente e lembrar que o mundo ainda é completamente normal e nada assustador... Nada de Hotéis da Califórnia e nada de Parques amaldiçoados... apenas uma coluna para nossa escola sobre uma Hanna Cabeça de Fuinha e uma paixão secreta pelo gostoso do Musk... — ela sorriu aliviada — que vida perfeita...

Mas eu ainda não havia conseguido me mexer nenhum milímetro, e por uma fração de segundos, as palavras de Ivi ricochetaram em minha mente. Parques Amaldiçoados...

Mesmo a contra vontade, meus olhos se elevaram uma última vez em direção aos restos do parque antes de me mover também, e com uma assombrosa disparada no coração, pude jurar que vi uma das cortinas da torre do Castelo da Cinderela se movendo. Arregalei os olhos, engolindo a respiração e acelerando o passo logo em seguida.

Tudo vai ficar bem. Tudo vai ficar perfeitamente bem, como sempre foi...

Apertei meu novo amuleto da sorte entre os dedos enquanto reforçava a afirmação mentalmente e ignorava a sensação esquisita e desconfortável de frio ao redor do umbigo. Medo e alguma outra coisa golpeando meus joelhos.

— Olá Sra. Hernessa. — Ivi cumprimentou quando adentremos na biblioteca.

— Olá, garotas... — ela cumprimentou sem desviar seus olhos do livro aberto a sua frente.

Hernessa era uma velha sem rugas de cabelos brancos, que usava óculos quadrados e muito grandes para seu rosto pequeno e pálido. Seu nariz estava sempre soterrado em algum livro, daqueles romances de época que geralmente traziam caras seminus nas capas, com músculos saltando por todos os lados. Eu costumava pensar que ela era muito bonita, e que nem de longe representava ter a idade que a brancura de seus cabelos delatava. Ela já estava acostumada com a nossa presença constante na biblioteca, o que já era de se esperar, considerando que os amontoados de mesas redondas estavam sempre vazias e sem vida. Se não fosse por nós duas, provavelmente aquela biblioteca já havia fechado por falta de uso há muito tempo. Ivi gostava de procurar sinônimos nos livros, saber mais sobre os lugares dos quais escrevia, saber mais dos assuntos sobre os quais falava, e por isso suas matérias eram sempre impecáveis. Ivi era a melhor colunista de todos os tempos do jornal George’s Cometa.

Fora que o ar quente do sistema de ar condicionado do local convidava qualquer um a ficar ali o dia todo.

Suspirei de satisfação enquanto tirava o casaco mais pesado e o descansava no encosto de uma das cadeiras da nossa mesa preferida. Ivi depositou seus materias de trabalho em cima da mesa e também tirou seu gorro, luvas e blusas.

— Seria tão mais incentivador se nossa sala de aula também tivesse ar condicionado... — ela se lamentou, a ponta de seu nariz completamente vermelha. — Pena que nenhuma alma piedosa pensou nisso ainda... — ela caiu na cadeira com um suspiro, e me alojei a sua frente.

— Eu concordo.

Ela sorriu ao me olhar novamente.

— Então, já se decidiu o que vai querer de presente de aniversário?

Eu apenas sorri de volta, chacoalhando a cabeça.

— Vamos... sabe que não vai poder fugir disso para sempre... mamãe já está trabalhando nos preparativos de sua festa, e não diga que não, — ela apontou o dedo para meu nariz assim que percebeu que eu estava prestes a negar — por que essa festa vai acontecer da mesma forma... lamento.

Chacoalhei a cabeça novamente.

— Ivi, você sabe que eu não gosto de festas... eu preferiria apenas ver um filme e comer um cupcake.

Ela rolou os olhos.

— Por que os librianos tem que ser tão infernalmente teimosos?

— Porque somos librianos... — eu brinquei enquanto ela sorria, abrindo sua agenda de anotações.

— Tanto faz... apenas escolha seu presente a tempo de eu poder comprá-lo.

— E qual seria a graça? A graça de receber um presente está em não saber qual é o presente. Aí você abre a caixa e faz aquela cara de surpresa. Essa é a essência de ganhar um presente. — eu pisquei para ela.

Ela entortou uma sobrancelha.

— Quando você aprendeu a ser tão sarcástica?

— Ontem.

Ivi chutou meu tornozelo por baixo da mesa.

— Ora, vamos lá... deixe-me trabalhar.

Eu sorri enquanto me espreguiçava na cadeira. Eu não seria de grande ajuda enquanto apenas a olhasse enquanto escrevia e colocava sua mente brilhante para trabalhar, de forma que mirei as fileiras de livros e me dirigi para qualquer uma delas. Eu gostava desses momentos. Momentos em que eu não precisava pensar em nada, nem precisava me lembrar de coisas desagradáveis. Ali, eu podia ser qualquer pessoa que eu quisesse. Era eu e os livros. Eu gostava de bisbilhotar volumes que não conhecia, eu gostava de descobrir coisas novas, fatos que mudassem minha concepção geral de tudo... gostava apenas de esquecer que eu vivia em uma dimensão completamente diferente. Nesses momentos eu não precisava me preocupar com quem eu era ou como andava minha vida. Nesses momentos eu podia apenas esquecer, ser outra pessoa, viver em um outro tempo.

Os livros empoeirados estavam quase em decomposição nas prateleiras velhas, pelo seu pouco uso. Eram essas prateleiras que eu preferia. Andei mais algumas fileiras, procurando pelos títulos mais velhos possíveis, aqueles que provavelmente não eram abertos há anos. Deslizei pelo carpê cor de creme da biblioteca, mal escutando meus próprios passos surdos enquanto tateava as capas poeirentas com folhas amareladas. Uma enciclopédia sobre Gatos, Recortes do Mundo dos Répteis, Um Abecedário das Feras mais Perigosas do Planeta, Cinco Curiosidades da Galáxia, Uma Verdade Sobre Raios, Consequências de Uma Tempestade, O Significado de um Trovão, Os Elementos Naturais, Substância do Fogo...

Arqueei as sobrancelhas, curiosa, percebendo que eu nunca havia estado naquela estante de livros antes. Era a última fileira, na estante mais retirada do restante da biblioteca. Muito aos fundos, eu podia visualizar Ivi debruçada sobre sua agenda, visivelmente distraída com sua matéria, e Hernessa nem piscava enquanto corria os olhos por seu livro, absorta em sua leitura e na fantasia do modelo musculoso.

Me pus de joelhos, acompanhando com os olhos o restante dos títulos mais próximos ao chão. Havia tanta coisa que parecia absurda, mas parecia ter uma dose de fundamento. Havia até um encarte dos Sete Pecados Capitais. Chacoalhei a cabeça, me abaixando mais enquanto tentava acompanhar cada título de livro com os dedos. Um Guia Completo sobre A Ordem chamou minha atenção, fazendo com que eu me arqueasse mais, no mesmo instante que a luz em cima de minha cabeça piscou por um instante. Com um sobressalto, me esquivei com o susto, empurrando sem querer a fileira de livros, que despencou silenciosamente para o lado, o baque resultante abrindo uma espécie de pequena passagem para o interior da estante, bem aos pés da enorme prateleira. Aquela pequena parte colada ao chão, que sustenta toda a estrutura da estante, aquela que todo mundo acha que é selada.

Mas aquela não era.

O pedaço retangular de madeira havia caído aos meus pés, revelando a textura áspera e empoeirada de um encarte volumoso e escuro.

Apreensiva, levantei a cabeça para visualizar Ivi e Hernessa, mas ambas estavam longe demais para terem conseguido captar o barulho.

Estiquei o braço para pegar o livro, o parando no meio do caminho enquanto mordia os lábios, com aquela sensação esquisita de que eu estava fazendo alguma coisa que não devia. E não devia mesmo. Por qual outra razão aquele livro estaria escondido? Ou talvez... talvez tivesse apenas sido esquecido ali quando construíram a enorme estante de livros... talvez tivesse caído e permanecido ali... talvez... talvez eu apenas não devesse mexer.

Mas minha curiosidade era maior e se sobrepunha a qualquer outro pensamento.

Dane-se isso...

Alcancei o livro pesado, o encaixando em meus dedos e o arrastando das sombras. Seu peso denunciava suas muitas páginas, e sua estrutura atemporal denunciava seus muitos séculos de existência. O que uma coisa daquelas fazia escondida em uma das estantes da biblioteca? Haviam três trancas em forma de cinto entrelaçadas na estrutura do livro, e as letras em alto relevo se sobrepunham a imagem danificada de uma balança, “O PUNHO DE CINCO DEDOS, A ORIGEM”. Meus olhos dançaram pelas dimensões esquisitas do livro, saboreando o momento em que eu tentava abrir as trancas complicadas e um tanto enferrujadas, como se a qualquer momento, o livro fosse pular de meu colo e sair correndo.

Suas páginas eram grossas e amareladas, com um aspecto engordurado e manchado. Velino. Um papel construído a partir de pele de carneiro. Havia um cheiro desagradável de mofo se desprendendo das linhas escuras traçadas com algum tipo muito velho de tinta. Um símbolo estranho ocupava todas as páginas, uma espécie de catavento de três pontas, torcido para dentro nas extremidades, dividido em três espirais no sentido anti-horário, ligados a um triângulo pequeno no centro. O símbolo esquisito chamou minha atenção, junto com mais um segundo título entrelaçado em si, recriando o nome do livro, “O Punho de Cinco de Dedos, A Origem”.

Os textos que se seguiam nas próximas páginas, eram repletos de símbolos estranhos e rabiscos que pareciam ter sido extraídos de textos muito antigos, como se tivessem sido traduzidos ou recriados.

“Caminhantes das Estrelas

Os Maoris sempre consideraram as estrelas uma proteção poderosa contra o mal. Elas se relacionam de forma direta com a ida dos guerreiros à batalha. Povos como os nativos da Nova Zelândia, sempre tiveram suas portas decoradas com astros, simbolizando a proteção e a arte. Assim como guerreiros marcados mediando entre o a terra e o Mundo de Cima, pois as tatuagens são mais que um amuleto, são a essência de cada Caminhante, que se põe entre os tangata whenua e as trincheiras do....”

Um arrastar de cadeira me fez erguer os olhos, ansiosa por algum motivo. Era apenas Ivi se ajeitando em sua cadeira. Ela enrolou seu cabelo em um coque, enfiando um lápis no meio enquanto se dependurava melhor no assento. Depois de um suspiro, ela virou a folha e continuou a escrever. Apressei minha leitura folheando as páginas do livro e dando uma olhada rápida nos símbolos pintados nas descrições. Arqueei as sobrancelhas ao me deparar com um desenho em particular da deusa da Justiça, a deusa Têmis. Com os olhos vendados, ela segurava a balança com a mão esquerda, e a espada com a direita. As descrições do desenho eram muitas, espalhadas pela folha desbotada, e entre elas, apenas algumas frases saltavam em minha direção. “Pesado na balança”, “Pese na balança, e veja qual lado pesa mais”, “Pesado fostes na balança, e fostes achado em falta.”.

A medida que ia virando as páginas, ia me deparando com símbolos, símbolos e mais símbolos, naufragando minha mente na brusquidão de um mar de paradigmas. Algo em tudo aquilo me fazia querer gritar. Quando dei por mim, eu já estava sentada no chão, com as pernas cruzadas em estilo borboleta, com o livro no colo, o cabelo desgrenhado e o pescoço dolorido.

“Os Maoris sempre viveram numa relação íntima e estreita com a natureza, por isso plantas e animais faziam parte dos rituais e do cotidiano desse povo. Outra importante contribuição da cultura Maori, é no tocante as tatuagens...”

— Ei, Eve, pode trazer seu traseiro até aqui por um momento? — a voz sinfônica de Ivi cortou o silêncio da biblioteca, chegando até mim como o disparo de uma arma, me fazendo sobressaltar-me em meu lugar.

— Ahn... estou indo.

Fechei o livro as pressas e ponderei sobre onde guardá-lo. Depois de pensar por alguns instantes, o enfiei em seu lugar de origem, me pondo de pé e chutando a lasca de madeira em seu lugar, o trancando novamente dentro da estante de livros. Se era ali que ele devia estar, era exatamente ali que ele permaneceria.

Caí a sua frente na mesa novamente, ainda tonta com a imagem de tantos símbolos, tentando focar minha atenção em alguma coisa normal outra vez. Talvez normal como a embalagem amassada de um sonho de valsa que Ivi havia acabado de descartar no tampo da mesa, a arremessando para perto de mim. Ignorei como as características das coisas ao meu redor pareciam gritantes de repente, óbvias demais. Talvez eu devesse procurar um hospital psiquiátrico no fim das contas. Não há nada de anormal em admitir que de repente, você já não se sente mais normal.

Concentre-se, implorei a mim mesma, batucando o tampo da mesa enquanto perguntava a Ivi qual era o problema. Ela não notou meu estado torpe, apenas ergueu seu caderno a frente do rosto enquanto analisava sua resenha.

— Que tal isso: nossa heroína com certeza prefere ficar o dia todo ouvindo Justin bieber do que se dignar a estudar pelo menos três minutos por semana de qualquer algo sobre geografia, razão de ela ter tirado um zero tão redondo com o Sr. Encharpe numa prova surpresa, dá desculpas de ensaios da Turma de Animadoras de Torcida justamente no dia do treino dos Tigres da ASAGL apenas para poder ver nossa estrela do time de basquete, Itham Metodins, em seus plenos abdominais sem camisa... e olha só! — ela completa com um ar chocado, como se estivesse contando um segredo que ninguém suspeitaria que um dia ouvisse — Parece que pelo menos um terço de todo aquele cabelo cheio de gliter é apenas aplique, como afirma sua cabeleira particular, Emêraise Sheeton! — ela sorriu triunfante, erguendo as sobrancelhas com um ar de vitória.

Não consegui impedir o riso.

— Parece que você se sai muito bem nessa coisa sem mim — admito —, e de onde tirou a história do aplique de cabelo, afinal de contas?

Ivi deu de ombros, um certo orgulho se desenhado em suas linhas faciais muito limpas e bonitas.

— Ah, você sabe. Tenho meu jeito de descobrir coisas; aliás, essa é velha... acho que eu estava apenas esperando por uma boa oportunidade de usar essa informação. E que oportunidade melhor do que uma coluna no jornal da escola, onde todo mundo vai ler? Eu sei, menos Gringer, apenas sei que sou estupendamente brilhante! — ela deu um beijo estalado na ponta dos dedos, um segundo antes de um espirro poderoso abalar toda a sua estrutura esteticamente ruiva. — Raios! — ela xingou.

Analisei seu trabalho por um instante, pensando em todas as coisas horríveis que Hanna poderia nos fazer se sentisse pessoalmente ofendida.

— Acha que ela vai se ofender? Sabe, por ter chamado ela de burra e de assediadora sexual pervertida?

Os cantos da boca de Ivi se abaixaram um pouco.

— Provavelmente? Talvez ela meio que pire apenas pela história do aplique mesmo... talvez devêssemos acrescentar também que a loja que ela frequenta está lhe vendendo minissaias cada vez maiores... você sabe, pela massa que ela está acumulando gradativamente na cintura...

Foi o momento em que eu verdadeiramente ri, lembrando-me de tê-la chamado de gorda ainda naquela manhã, no momento em que ela quase me assassinou com sua bolsa de quinhentos dólares.

— Essa foi boa, — gesticulei para Ivi — Talvez ela realmente se sinta ofendida...

— Obrigada, mas o gênio aqui foi você, Eveline. Afinal de contas, foi ideia sua chamá-la de balofa na frente da classe inteira...

— E o que mais eu podia fazer? Adolescentes traumatizadas pela tortura constante de uma chefe de torcida tem que aprender a sobreviver num mundo como a Academia...

Ivi da um meio sorriso.

— Itham a odeia por isso. Ele jamais se envolveria com aquela ratazana de antenas.

Caras como Itham tinham o que chamamos de “status indesejável”, ou seja, ele era o galã sem querer realmente sê-lo, e podia ter qualquer garota que quisesse, entre elas a garota mais popular da escola, Hanna, mas ele apenas fingia que nada do que acontecia ao seu redor tinha realmente algo a ver com ele. E Itham era o tipo de garoto que tinha o coração puro demais para sequer olhar para alguém como Hanna. Eu o admirava muito por isso. Qualquer outro garoto estaria usufruindo de sua posição de maneira bem pouco honesta. Caras viraram bad boys por muito menos.

— Eu sei, — dou de ombros — e fico feliz por saber disso. Itham merece coisa melhor.

O olhar de Ivi se estreitou um pouco em minha direção, a fazendo se debruçar sobre o tampo da mesa enquanto batucava a ponta do lápis no tampo de mogno.

— Exatamente. Eu absolutamente concordo com você — detectei de repente um sorriso cínico nas veiradas de seus lábios perfeitos — quero dizer, ele realmente merece uma boa garota, que seja altamente inteligente, capaz de responder questões impossíveis à calouros sobre o Universo, e capaz de se defender de ameaças de líderes de torcida iradas, e que também tenha um bom e puro coração.

Uma pontada de reconhecimento em sua definição fez com que meus olhos se abrissem mais, saltando as órbitas, e não pude impedir que a surpresa invadisse os espaços curtos de minha voz ao fitá-la:

— O que você está querendo... Ai!!! — dei um pequeno salto antes que pudesse terminar a frase, sentindo um cutucão na ponta de meu dedo indicador, como se uma agulha o tivesse cutucado, uma espécie de choque explodindo pelos tendões de meu braço, profundo demais para ter sido causado por algo tão pequeno.

Não apenas pequeno, mas insignificante e sem sentido.

Eu havia aproximado os dedos demais da embalagem do bombom sonho de valsa descartada de Ivi, e ao chocar meu dedo indicador acidentalmente com seu papel laminado lambuzado de chocolate, uma corrente elétrica desembocou entre as duas matérias, lambendo meu braço todo em uma dor lânguida e dormente. Os pelos de minha nuca estavam arrepiados, minha respiração indo e vindo com rapidez.

Os olhos de Ivi semicerraram-se enquanto ela observava minha reação estranha:

— O que foi?

Percebi rápido demais que eu me sentia impotente de explicar o que havia acontecido, porque nem mesmo eu havia entendido direito.

— Eu... um choque. Parece que enfiei o dedo na tomada...

Os olhos de Ivi passaram de meu dedo à embalagem amassada do bombom, e depois pararam em mim novamente.

— Hum, o que é? Está me dizendo que agora embalagens vazias de bombons dão choque ou são radioativas?

Esperei por uma explicação lógica, que claramente não veio. Desisti de tentar explicar alguma coisa, porque de repente percebi que eu nem queria pensar em uma. Pior que isso, eu nem mesmo sabia se havia algo pra ser explicado. Escondi o rosto nas mãos, cansada demais para dizer mais alguma coisa, e Ivi imediatamente percebeu que eu não estava bem. Que não havia estado bem há muito tempo...

— Tudo bem, hora de voltar... — ela disse fechando sua agenda e guardando suas coisas com pressa — você precisa de um bolinho de cenoura de Tia Peg e sua cama. Vai estar novinha em folha amanhã...

Eu chiei pra Ivi. Queria que fosse assim tão simples.

Algo lá no recanto não mapeado de meu coração apenas me dizia que as coisas estavam bem prestes a só piorarem.

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