A FUGA PELAS MONTANHAS

Abandonar e sentir saudades, sem tortura, sem mágoas. É uma escolha dolorida, mas é uma escolha que só pode ser tomada por quem é livre.

Denatiel flutuava com suavidade, amparando o grande comandante que tão valorosamente lutara. Muitos não estavam mais ali, como sabia que muitos outros não conseguiriam chegar às terras baixas.

Olhou para o alto, medindo as hordas de demônios que os caçavam com inflexível impiedade. Haviam perdido a cidade, e agora eram empurrados montanha abaixo.

Enquanto olhava e se esforçava na descida dois demônios conseguiram ultrapassar as defesas e vinham de cima, rápidos em sua direção.

Denatiel, sem qualquer barulho, parou. Com suavidade deixou Ematiel solto, que flutuou tranquilo até o chão como se fosse uma pena que descia por um ar parado. No momento em que soltou Ematiel ele se moveu. Com um golpe violento cortou um dos demônios de cima abaixo enquanto o outro estacou de súbito em suas garras. A criatura remexeu-se desesperada, os olhos de brasa fixos nos seus, tentando se livrar das garras que a mantinha presa, sua essência escapando para o ar.

Então o demônio parou de se mexer e tombou sobre as garras de Denatiel.

Com desprezo o anjo o jogou para longe.

Olhando para a confusão de sons viu que a horda de demônios engrossava e ganhava terreno, tentando envolver e sufocar seu exército retirante.

Sem muita gentileza voou rápido e tomou Ematiel, que não emitiu qualquer sinal de protesto.

Por horas lutaram em ravinas e escarpas, cada vez empurrados mais para baixo nas montanhas. Lentamente foram descendo, até que os demônios chegaram num ponto em que não conseguiam mais passar, por mais que urrassem e tentassem. Era como se houvesse uma linha, ou um muro feito de uma finíssima e instransponível lamina de ar. Os anjos, protegidos do outro lado do invisível muro, sorriram.

- Eles aqui não podem entrar – Denatiel falou alto, pois vira que alguns o olhavam confusos. – Eles não têm permissão para entrar.

Os anjos, lentamente, deixaram para trás o burburinho irritado dos demônios e reuniram-se num pequeno vale inclinado na junção de duas montanhas portentosas. Ao longe, como um grosso sussurro exasperado, ainda podiam ouvir as imprecações e provocações dos demônios.

Denatiel ficou observando acima ao longe os demônios frustrados, que se batiam e se forçavam contra a barreira invisível que os impedia de avançar.

Dois guerreiros se postaram ao seu lado, observando os demônios.

Os demônios atacavam com grande rapidez pontos diferentes da barreira, como se a estivessem experimentando. Denatiel abanou a cabeça.

- Eles estão tentando desviar nossa atenção. Alguns entes aliados deles conseguiram atravessar a barreira. Estão escondidos no mato. Vocês os veem?

- Sim, estou vendo – confirmou um deles, mantendo sob vigia um ser de grandes olhos escuros. Ele tinha uma cara pequena e redonda. O nariz era quase como uma linha. O que chamava a atenção era que aquele rosto era quase tomado por uma boca gorda e carnuda, que ocultava uma grande quantidade de dentes afiados como agulhas.

- Também – confirmou o outro, a atenção em quatro criaturas escondidas no mato, poucos metros dentro das terras proibidas. – Através deles os demônios estão tentando obter permissão para entrar nessas terras.

- Mesmo assim vai ser difícil os demônios passarem, sem autorização dos que realmente podem reivindicar essas terras.

- Tudo bem, ao que sabemos – aquiesceu Denatiel. – Não quero correr qualquer risco. Não sabemos o que eles podem ter conseguido, ou que criaturas eles estão mandando. Se um deles for dos que detém essas terras, alguns conseguirão passar. Eles não podem ficar  – sentenciou. - Quero dois pequenos destacamentos – falou Denatiel. – Quero caçadores – avisou.

Os dois guerreiros assentiram e se afastaram para o meio do exército.

Sem alarde, pequenos destacamentos angélicos se separaram do corpo principal e passaram a caçar cada um dos enviados dos demônios. O ódio deles aumentou ainda mais ao verificarem que seus emissários, assim que ultrapassavam a linha imaginária, eram rapidamente perseguidos e mortos. Cada vez se frustravam mais por não conseguirem nem uma única permissão.

Por fim, não tendo mais homens, pessoas ou mesmo animais de que pudessem lançar mãos, os demônios desistiram de avançar e passaram a gritar insultos e impropérios para os anjos, tentando atraí-los para o seu lado da linha imaginária.

Os anjos apenas os olhavam com desprezo.

Quando sol começava a tombar para o horizonte os demônios sumiram das vistas, apesar dos anjos saberem que os espreitavam das pedras e das profundas cavernas.

Denatiel, vendo que a situação estava tranquila e segura, foi ter com Ematiel, protegido por vários anjos sobre uma plataforma. Com atenção o examinou e viu o quanto o esforço da fuga consumira o amigo.

As pessoas, nefelins, todas as aves e anjos se reuniram em volta de Ematiel como uma silenciosa homenagem.

O silêncio era respeitoso e pesado.

Apesar de muito ferido logo surgiu o grande Azaxel ao lado, preocupado com Ematiel.

- Que bom que vocês estão aqui – sussurrou Ematiel para todos os que o rodeavam. – Não é bom morrer longe dos amigos.

- Nunca estará só – falou Azaxel, a voz baixa e tranquila.

- Os bonecos de barro, estão protegidos? – perguntou com sua voz, usando o primeiro nome dado por Tupã às caveiras de cristal. A voz parecia um vento correndo pela floresta, calmo e tranquilo, mas que ia se enfraquecendo, perceberam.

- Sim, Ematiel, estão protegidos. Durante a batalha, como você tinha ordenado, eles foram despachados por portadores para serem ocultados por toda a extensa terra lá embaixo. Há muitos lugares mágicos e poderosos por lá, onde eles ficarão bem. Também estamos elevando alguns totens de poder.

- Que bom...

- Gostaria que estivesse conosco nesta terra – falou Denatiel preocupado.

- Os dias continuarão após nós, meus amigos – sussurrou Ematiel baixinho, a dor entrecortando sua fala. - Se não somos nós que fazemos os dias surgirem, somos nós que fazemos os dias serem. Lutamos bem, somos merecedores desse dia.

Ematiel tossiu, um som rouco e quebrado. A dor parecia ter aumentado. Azaxel olhou na direção das costas do amigo, onde uma leve penugem prateada escapava. Sentiu uma dor apertando o seu peito.

> O que fizemos aqui foi para que outros de nós continuem após nossa partida – continuou Ematiel com dificuldade, - e em terras distantes continuem nossa luta. Talvez lá sejam confundidos e mal-entendidos, talvez lá tenham que se esconder, mas, tal como a vitória e a derrota, tudo é passageiro. Dia virá em que prevaleceremos.

Ematiel fechou os olhos, a agonia marcada no rosto.

- Eu a senti, com o demônio. Canhestra estava lá... – gemeu, quebrando o pequeno silêncio.

- Sim, eu também a senti – confirmou Azaxel, os olhos tristes e a voz num sussurro.

Então, com dificuldade, Ematiel apoiou as garras no chão e se forçou para cima. Os amigos, vendo o esforço dele, o ajudaram. Ele ficou sentado, os olhos perdidos na imensidão luminosa e verde do cerrado que se via muito ao longe, bem abaixo do nível em que estavam. Havia alegria ali, e paz.

> Que bom... – suspirou por fim.

Com simplicidade sorriu, e se foi.

Lentamente, na tarde que avançava, Ematiel se desfez em fina nuvem luminosa, que rapidamente se dispersou no ar.

Os amigos ficaram em silêncio, olhando o ar, sentindo saudades.

- Sabe que estão nos espreitando, não? - perguntou Denatiel, observando os flancos das montanhas.

-Sim, eu também os sinto - concordou. - Não está pensando em voltar, não é?

- Confesso que estou tentado. Mas não é isso, sei que estamos muito enfraquecidos.  Só que estes que estão por aqui, vocês sabem que não irão embora e que irão tentar penetrar nessas terras, vez após vez, após vez, até se matarem tentando. Eles receberam sua missão e não irão descansar na perseguição das mutas. Não seria uma ótima oportunidade para reduzir ainda mais as forças dos demônios? – sorriu confiante.

Em resposta à ideia os seres começaram a se mexer, satisfeitos com a possibilidade de atacar os demônios.

Por longas horas planejaram e teceram planos. Nenhum dos demônios poderia sair vivo daquelas encostas, onde quer que estivessem, decidiram.

- Considerando que estamos livres de um encargo pesado, que são as nove rainhas, e ainda que muitos dos nossos já se afundaram nas terras abaixo, onde também estão protegidos, acredito que estamos em ótimas condições para uma boa caçada - conjecturou Maliel.

- Concordo! Vamos caçar então - falou um ellos guerreiro de aspecto feroz, as tatuagens parecendo mais fortes e pulsantes, empunhando sua longa espada.

- Vamos nos preparar para uma grande caçada, então. Montem grupos com não mais que sete seres – orientou Azaxel. - Precisamos ser ágeis, pois não vamos enfrentá-los diretamente, mas vamos emboscar um a um. Que sintam o medo das sombras. Nenhum deles deve ter a possibilidade de voltar para seus covis.

Azaxel e Denatiel ficaram observando o acampamento, que rapidamente se organizava de forma tão discreta que poucos saberiam que algo importante estava sendo preparado.

- Seria bom se Ematiel estivesse aqui - Denatiel quebrou o silêncio olhando montanha acima, onde os demônios se escondiam. - Era um guerreiro incrível.

- Sinto por nós, por ele não estar mais aqui – concordou Azaxel.

- Ele tinha muita força, muita determinação. Sabe, confesso que não sei se eu poderia fazer tudo o que ele fez, enfrentar tudo o que ele enfrentou, tal como ele enfrentou.

- Quase sempre me pergunto como teria me saído, se tivesse sido eu o enganado por Canhestra – falou. – Erramos ao não dar muita atenção ao senso de independência e volubilidade delas.

- Talvez... Os planos do destino não são só os nossos. Há outros jogadores no universo. Mas, e quanto a Canhestra, onde será que ela está agora?

- Lógico que está com o senhor que escolheu, com Escuridão.

- Isso se já não tomou outra decisão – ponderou Denatiel.

- Não, não. Eu a senti quando me bati com Escuridão lá em cima. Aposto que Ematiel também a sentiu, quando ela fez a escolha.

Um silêncio caiu entre os dois, os olhos perdidos na paisagem que se espraiava até o horizonte.

- Canhestra, a traidora – suspirou triste Denatiel. – Talvez um dia volte para nós.

Azaxel ficou pensando, e não achou que Denatiel estivesse certo. Canhestra não era uma traidora. Ela era apenas uma das treze, de vontade própria, independente. Ematiel sempre fora muito afeiçoado a ela, lembrou. Mas ela sempre fora problemática, porque estava enraizada nela uma força em desequilíbrio que só podia ser controlada se ela estivesse próxima de Maestra, a caveira central, a detonadora de todo o terrível poder do conjunto. Escuridão deve ter conseguido tocá-la e corrompê-la, em algum momento em que ela se denunciara, exposta por sua curiosidade.

Perdido em seus pensamentos relembrou as memorias que Ematiel compartilhara com o grupo: alguns dias antes do início do ataque à cidade eles conseguiram emboscar Ematiel, provavelmente com a ajuda de Canhestra. Houve uma grande batalha entre Ematiel e Escuridão. Ematiel, como sempre fizera antes, para se fortalecer, ligou sua energia com Canhestra, porque Ematiel acreditava nela. Mas, enquanto se batia com Escuridão, repentinamente Canhestra também se ligou com o demônio, e juntos tentaram corromper Ematiel. Perigosamente enfraquecido Ematiel resistiu, e só não morreu porque era um excelente e aguerrido guerreiro. Só com muito esforço, apesar de muito ferido, conseguiu escapar dos dois.

- Eu acho que não teria conseguido resistir – cismou Denatiel levantando-se. – Vamos então? Temos que dar cabo bem depressa desses demônios, porque estou curioso sobre essa terra nova e sobre esses novos seres. Há aqui guerreiros fantásticos e seres incríveis, como nunca tinha visto.

- Está certo, está certo... Então, meu amigo, vamos caçar? – riu Azaxel, elevando-se rapidamente no ar.

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