Capítulo 1

Acordei com um susto. Em um segundo, estava numa clareira na floresta; no outro, estava encarando um teto de madeira branca e com tinta lascada. Sentei-me na cama e olhei ao redor, reconhecendo meu quarto. O quarto no qual dormia desde quando fui adotada aos nove anos. Suspirei e passei a mão na testa, limpando o suor que fazia meu cabelo pregar em meu rosto. Meu pescoço estava ainda pior.

Levantei e fui ao banheiro para me enxaguar e me acalmar um pouco. Eu podia ouvir meu coração batendo, a pulsação latejando em meus ouvidos. Peguei uma toalha no cabide e a molhei, passando pelo meu rosto e toda a minha nuca.

Fazia dois anos que estava tendo o mesmo sonho: eu, numa versão mais nova, correndo na floresta até chegar a uma clareira de grama seca e com uma toalha de piquenique no chão. Então eu acordo, sempre. Eu nunca vi o final, mas em todas as vezes, enquanto durmo, eu sou invadida por esse sentimento de urgência e perigo, como se meu subconsciente estivesse tentando me avisar de algo. Eu só nunca descobri do quê.

Da primeira vez que tive tal sonho, a cena me pareceu vagamente familiar, mas a cada dia que se passava, ela fazia menos sentido em minha cabeça. Era como se uma nuvem tampasse meus pensamentos sempre que tentava encontrar uma explicação racional para estar tendo tais pesadelos. Talvez eu esteja enlouquecendo, pensei pesarosamente.

Suspirando, voltei para o quarto e olhei na janela. O sol já ameaçava aparecer no horizonte, colorindo o céu com um laranja avermelhado como se fosse uma aquarela. O dia estava começando, mas ainda era cedo para trabalhar. Talvez eu devesse arrumar as coisas para não atrasar meu pai na venda de hoje, ponderei.

Fui até o armário, peguei uma roupa e minhas botas pretas, deixando-as na cama, e me dirigi novamente ao banheiro. Abri a torneira da banheira e esperei-a encher com água quente enquanto eu escovava os dentes e me despia. Quando estava prestes a transbordar, fechei o registro e afundei meu corpo, deixando a temperatura quente me envolver e acalmar minha mente. Fechei os olhos e lembranças me atingiram.

Socorro! Socorro! — eu gritava enquanto corria por entre a plantação. — Alguém me ajude!

Um homem que trabalhava nos vinhedos me ouviu e correu em minha direção, deixando para trás sua enxada e luvas. Eu tropecei em um galho grande enquanto tentava chegar à casa, e o fazendeiro chegou a tempo de me segurar, impedindo que eu caísse no chão e me machucasse.

O que aconteceu, menina? Quem é você? — ele perguntara, me examinando e procurando por ferimentos. Sua expressão me dizia que estava assustado, provavelmente pelo carmesim presente em minhas roupas. Mas aquele sangue não era meu. Uma vez que confirmou isso, o homem retornou a fazer perguntas. — De onde você veio?

Por favor... Você tem que me ajudar. Eu não sei onde estão meus pais, eu não sei o que fazer — eu dissera, tentando controlar as lágrimas.

De quem é esse sangue? — o fazendeiro me perguntara, claramente chocado com o fato de uma criança de nove anos ter aparecido na porta de sua casa, com um vestido caro ensopado de sangue.

Eu não sei... Eu não sei o que aconteceu. Eu... Eu não me lembro.

Sentei-me abruptamente na banheira, ofegando. A memória de como eu havia chegado à minha atual casa sempre me assombrava, e era a única coisa que eu conseguia lembrar nitidamente da infância que tive antes de ser adotada. Quando tentava me concentrar para voltar em minhas lembranças do passado, tudo ficava confuso e só o que conseguia eram flashes sem sentido de uma casa grande e uma coroa brilhante em um quarto mal iluminado.

Provavelmente eu havia sonhado com isso alguma vez e a imagem ficara em minha mente. Não há explicação lógica para o que acontece em meu subconsciente quando se trata das lembranças do meu passado. A única coisa que sei é que sou adotada e que Luke Fairway é o único pai que conheci.

Luke me adotou quando eu tinha nove anos. Bom, ele não teve muita escolha, já que eu havia aparecido na porta de sua fazenda, sozinha, faminta e desesperada. Ele me dera comida, água, um teto, uma cama para dormir... e amor. Qualquer um poderia ter me recolhido, me alimentado, e me colocado em um orfanato logo em seguida. Não era sua obrigação me manter consigo, mas foi sua escolha.

Meu pai sempre me dizia que nunca pensou em ter um filho, que eu fui uma enorme surpresa para ele, mas que foi, também, a melhor coisa que já havia lhe acontecido. "Eu passei a te amar no instante em que te vi", costumava dizer. E eu sabia que nunca poderia duvidar desse amor, pois ele continuou ao meu lado, me apoiando e me protegendo mesmo quando descobriu sobre... meus poderes.

Outra das duas únicas coisas que carrego de minha infância é o fato de que, basicamente, eu posso controlar a natureza, através dos quatro elementos: água, ar, fogo e terra. Eu consigo incendiar algo, fazer as plantas crescerem, provocar uma chuva ou uma rajada de vento. Apesar de já ter treinado bastante minhas habilidades, eu tenho meus limites: mudar o curso natural das coisas exige muita energia e sempre me deixa exausta. Mas, é um ótimo jeito de ajudar Luke na fazenda. Nós cultivamos uvas para produzir vinhos e, com meus poderes, posso acelerar o crescimento da plantação. Mesmo que apenas consiga usar um pouco de magia, é o suficiente para sempre nos manter abastecidos e com uma vaga no mercado, enquanto outros comerciantes e fazendeiros lutam para sobreviver normalmente. Não posso negar que há um pouco de trapaça nisso, mas de que outra forma poderia ser útil?

Meus pensamentos me levaram tão longe que não havia percebido que o sol já havia despontado no céu, iluminando meu quarto, e a água da banheira havia esfriado. Levantei-me e enrolei-me em uma toalha, me dirigindo à minha cama, onde havia deixado a roupa pronta para depois do banho. Vesti a calça surrada e a camiseta, calcei a bota e me dirigi até o andar de baixo. Entrei na cozinha, que estava escura devido à cortina que não deixava o sol entrar, e abri o armário.

Bom dia, flor do dia — alguém disse, me fazendo dar um pulo.

Minha nossa senhora! — exclamei, me virando com um pulo e colocando a mão no coração. Meu pai estava sentado na cadeira da cozinha, segurando uma xícara de louça na mão. — Você me assustou! O que está fazendo no escuro, pai?

Você se assusta muito fácil — Luke disse, soltando uma risada abafada. — Não queria te acordar. Estava pensando em algumas coisas.

Bom, estou acordada há um tempo. Que tipo de coisas estava pensando? — indaguei, enquanto abria a cortina.

Pesadelo novamente? — ele questionou, sem responder à minha pergunta.

Suspirei e balancei a cabeça afirmativamente. Fui até o armário e peguei um pedaço de pão, oferecendo a ele, que recusou.

— Alguma coisa diferente das outras vezes? — meu pai perguntou, curioso. Ele sempre fazia essa pergunta quando eu dizia que havia tido outro pesadelo. Eu contara a ele da primeira vez, pois imaginava que ele ao menos teria ideia do que se tratava, mas Luke sabe tanto quanto eu, e isso quer dizer... nada. Sentei ao seu lado, deixando o pão na mesa.

Não. Mas, vamos, me conte o que você estava pensando.

Eu... Eu recebi uma carta hoje de manhã — ele começou, hesitante.

É mesmo? Outra encomenda? — indaguei, interessada. Peguei um pedaço de pão e coloquei na boca.

Não... Era uma carta do palácio.

Parei de mastigar.

Você está falando sério?

Escute, não é como você pensa...

Pode parar por aí, pai. Eu não vou participar desse negócio.

Levantei-me e peguei um cacho de uvas na fruteira, me dirigindo para a porta.

Por favor, Catherine... Escute-me. Nós não temos escolha...

Há sempre uma escolha, pai, e essa é a minha. Eu não vou para aquele castelo. Esse tipo de coisa vende as mulheres, e elas são estúpidas o suficiente para acreditarem que foram escolhidas para algo muito importante, só porque é um príncipe.

Há centenas de anos, no século XVI, um rei chamado Carlos VIII criou uma lei que dizia que, quando o príncipe sucessor do trono fizesse vinte anos, ele deveria se casar com a futura rainha, e esta deveria ser uma camponesa escolhida por ele, para mostrar ao povo que os monarcas estavam do nosso lado — é claro, não passava de uma ferramenta política, pois todos sabiam que quem realmente escolhia a futura rainha era o rei, e não o príncipe, baseado em seus próprios interesses pessoais.

De qualquer jeito, alguns meses antes do aniversário do herdeiro, quinze jovens camponesas são "escolhidas" aleatoriamente para participarem de uma rígida seleção no castelo, durante a qual essas mulheres desfrutam de algumas semanas de estadia no palácio real, comendo e bebendo o quanto podem, e aproveitando a companhia do jovial príncipe. O propósito é: excluir uma a uma da competição até que sobre apenas uma, que se casará com o futuro rei e será coroada rainha do reino de Cannehor.

Quando eu era criança, meu sonho era ser escolhida para ser uma dessas jovens e me tornar uma rainha, mas então eu cresci e percebi que esse era apenas um jeito que a corte havia achado de basicamente vender essas mulheres para o príncipe.

Você sabe que não é tão simples...

Bom, se o príncipe quer uma esposa, por que ele mesmo não sai da bolha de conforto dele e trata de conhecer alguém aqui fora, no mundo real? — soltei, com raiva, me virando para ele.

Catherine, pare com isso. Você sabe que é muito perigoso para o príncipe aqui fora, a família real corre perigo há anos. Eles não podem arriscar. Você sabe que essa lei foi abolida, o motivo foi o mesmo pelo qual você não gosta dela, mas teve que ser reimplantada há uma década. Eu tenho certeza que você se lembra de quando a princesa foi raptada e seus pais foram mortos.

Sim... Sim, eu me lembro — admiti, baixando a cabeça.

Alguns anos atrás, na mesma época que fui adotada por meu pai, a aliança matrimonial que o rei e a rainha fizeram com uma família nobre de Cannehor foi quebrada, pois a criança dessa família havia sido sequestrada e seus pais haviam sido mortos. Ninguém nunca achou a menina, e então essa lei estúpida teve que ser readotada, para que o reino continuasse tendo seu rei e sua rainha.

Mas, se foi por isso, por que...

Um barulho vindo de fora da casa impediu que eu terminasse de falar. Pareciam cascos batendo contra a pedra da estrada ao lado de nossa fazenda. Isso poderia parecer normal em qualquer outro lar. O problema era que... Ninguém vinha aqui. Nunca.

Corri para a janela e avistei uma carruagem dourada sendo guiada por cavalos brancos maiores que eu, que pararam alguns metros antes do portão de madeira, incapazes de continuar devido à cerca que havia em volta da casa. Uma vez estacionada, a porta da carruagem foi aberta e de dentro desta saiu um guarda com armadura de ferro, cuja feição não conseguia ver muito bem, graças à distância. Mas, do pouco que se podia distinguir, eu sabia que era um guarda do exército do rei. Virei-me para meu pai, furiosa.

É a Guarda Real! — sussurrei. — Você os chamou antes de falar comigo?

Não! Na carta dizia que eles viriam buscar a jovem, digo, você, mas... Não pensei que fossem vir tão cedo!

Nós precisamos dar um jeito nisso. Eu não quero ir para aquele castelo! — choraminguei, ainda mantendo a voz baixa.

Qualquer coisa que meu pai tivesse para falar foi interrompida pela batida na porta que soou pela casa silenciosa. Não precisávamos perguntar quem era, portanto, apenas me dirigi para a porta e a abri, dizendo em seguida:

Pois não?

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